Opinião

Escola sem Partido e a imparcialidade dos professores: os riscos da "verdade oficial"

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23 de maio de 2019, 6h29

Em dois artigos anteriores, tecemos críticas às concepções do movimento Escola sem Partido, em suas relações com o princípio da laicidade (leia aqui) e com a questão moral familiar e da Convenção Americana de Direitos Humanos (leia aqui). Completando a reflexão, desejamos debater outro aspecto central das propostas do movimento, talvez o elemento original de suas preocupações, referente ao combate à “doutrinação” e ao ensino “ideologizado”.

1. Ideologia, verdade e ciência
O movimento entende que existe um “dever de imparcialidade” dos professores, encampado no Projeto de Lei 7.180/2014 nos seguintes termos: “iv) ao abordar questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará as diversas versões com a mesma profundidade e seriedade”.

O problema evidente dessa proposta é admitir a possibilidade de uma neutralidade ideológica nas chamadas “ciências humanas”, como a história, a política, a sociologia ou a economia. Não negamos que se possa almejar a um ensino que dê lugar ao pluralismo de ideias e valores, mas as dificuldades epistemológicas que tangenciam a questão não permitem ou recomendam que se estabeleçam restrições legais, controle sobre os docentes e outras medidas pugnadas pelo movimento.

A ideologia pode ser concebida como um “sistema abrangente de crenças” que propicia fundamentos para a ação política e social; é “um esquema conceitual com uma aplicação prática” (BLACKBURN, 2008, p. 178, tradução nossa).

Segundo um outro sentido do conceito, que parece se originar nas obras de Marx, a ideologia não seria mero conjunto de crenças e valores, mas uma “falsa consciência”, uma visão distorcida da realidade. É nesse segundo sentido, contraditoriamente, que o movimento Escola sem Partido parece concebê-la. Simon Blackburn também o registra: “depreciativamente, a ideologia de outra pessoa pode ser vista como fantasias que distorcem e dissimulam o real status quo” (BLACKBURN, 2008, p. 178, tradução nossa).

Toda a dificuldade está em apontar o que seria uma visão distorcida da realidade, assumindo-se o ônus de apresentar uma outra que não padeça do mesmo vício, ou em considerar que determinada ideologia ou conjunto de crenças é superior ou verdadeiro em relação a outro. De uma forma ou de outra, acabamos resvalando na difícil questão da “verdade” no campo das humanidades, isto é, na filosofia moral, política, nas ciências humanas e sociais, na economia.

Seria exaustivo mapear aqui todas as correntes filosóficas que consideram problemático falar-se de “verdade” nas questões humanas. Iríamos do ceticismo pirrônico (LESSA, 1997), passando por Montaigne, Hume e o próprio Kant, até chegarmos, nas primeiras décadas do século XX, ao Círculo de Viena, inspirado nos trabalhos iniciais de Ludwig Wittgenstein (FONTES, 2019).

Mesmo entre os críticos do ceticismo, que afirmam a possibilidade de alguma verdade inclusive no campo moral e político, a dificuldade em estabelecê-la será reconhecida. Hilary Putnam irá abandonar o realismo metafísico para abraçar um “realismo de face humana”, que considera possível a verdade, mas não uma verdade absoluta que represente o “olho de Deus” sobre as coisas humanas (PUTNAM, 1990).

Para fazer a crítica e afastar determinado credo político das salas de aulas, corremos o risco de impor outros credos e concepções filosóficas e políticas. Correntes semelhantes ao Escola sem Partido nos EUA pugnam pela proibição do ensino do marxismo e pela demissão de professores assumidamente marxistas ou suspeitos de adotarem essa ideologia, numa espécie de macarthismo contemporâneo. Além da difícil questão constitucional atinente à liberdade de pensamento e expressão, temos aí uma espécie de adoção de uma “verdade oficial” no âmbito das ciências sociais, o que foi característica justamente de regimes totalitários como o comunismo, o nazismo etc.

Tomemos um exemplo singelo da nossa história política. O movimento de 1964 foi um golpe de Estado ou uma revolução? Como deverá o professor transmitir aos alunos essa informação? Se disser que “foi um golpe”, estaria transmitindo um posicionamento ideológico e, portanto, vedado, como quer o movimento em debate? Dizendo, ao contrário, que foi “uma revolução”, não estaria igualmente abraçando um posicionamento ideológico?

Com efeito, o movimento Escola sem Partido parece adotar uma concepção “objetivista” no campo das ciências humanas, que acredita na possibilidade de uma verdade sobre essas questões, inclusive no campo da sexualidade. Ao combater a chamada ideologia de gênero, defende uma concepção “naturalista” da sexualidade, que é criticada, inclusive, por um filósofo cristão como Gianni Vattimo; ele critica a Igreja Católica justamente pelo "erro naturalístico", que seria a tentativa de fundar normas éticas na natureza ou nas essências, em temas como a homossexualidade etc. (VATTIMO, 2016, pp. 65/68).

Por vezes é a “ciência” que é invocada para justificar posicionamentos, inclusive nesse campo do comportamento sexual. Contudo, devemos adotar uma concepção restritiva daquilo que é científico, para não emprestar referido status a pontos de vista ideológicos, concepções filosóficas e de moralidade.

Com efeito, a distinção básica é entre tudo aquilo que dependa de valores, a filosofia moral, política, o direito, a própria história e a economia, de um lado e, do outro, as ciências naturais baseadas na observação e no estabelecimento de leis gerais. Não é raro que determinada teoria no âmbito das humanidades pleiteie para si um status diferenciado, científico, como o “socialismo científico”, a psicanálise etc. Contudo, nesse âmbito, a pretensão de cientificidade é sempre problemática.

Talvez porque, nas questões humanas, as teorias, ainda que possuam um elemento científico qualquer, baseado na observação ou mesmo em cálculos, terão sempre também um componente valorativo que não granjeará a concordância geral. Trata-se da chamada “lei de Hume”, segundo a qual de um fato não se pode deduzir um valor, de um “é” não se pode chegar a um “deve” qualquer (FONTES, 2019, pp. 27-30; VATTIMO, 2016, p. 41 e 68).

Assim, pensamos que apenas e tão somente as ciências naturais, concebidas de maneira muito estrita, podem aspirar a um status epistemológico privilegiado capaz eventualmente de superar a liberdade de convicção e de expressão e se impor, por exemplo, em relação ao seu ensino nos currículos escolares. Instrutivas, nesse sentido, as decisões da Suprema Corte norte-americana que, baseadas no princípio da laicidade (establishment clause), proibiram o ensino do criacionismo como teoria científica, reconhecendo a preponderância e a obrigatoriedade do ensino do darwinismo (Epperson v. Arkansas, 1968; Edwards v. Aguilard, 1987; Kitzmiller v. Dover Area School District, 2005).

2. Liberdade e democracia: à guisa de conclusão
Todo o problema reside portanto nas dificuldades epistemológicas acima elencadas, que tornam dificultoso saber o que é ideologia, o que seria a postura ideológica vedada, em que consistiria o ensino imparcial e objetivo. O projeto cria a possibilidade de interferência e sindicância sobre a liberdade de expressão dos professores e a falta de critérios objetivos para fazê-lo coloca em risco esse princípio constitucional e o pluralismo político como um todo, fundamental para a democracia.

O Estado, seja através da administração escolar ou do Judiciário, será chamado, através de ações judiciais que já vêm sendo propostas, a dirimir questões de filosofia política, moral, ideológicas, e poderá fazê-lo em detrimento de quaisquer concepções, de esquerda ou de direita, a depender do momento político e das concepções dominantes.

Ao inserirem-se tais “deveres” na legislação, os professores serão passíveis de punições, seja no âmbito administrativo ou judicial, com o manejo eventual da ação de improbidade administrativa, por ofensa aos princípios da administração, como já aventou o movimento.

Em última instância, como dito, caberá ao Estado-administração ou ao Estado-juiz dizer se determinadas proposições, conteúdos e concepções ministradas em sala de aula representam quebra do dever de imparcialidade, se são ou não ideológicas, razoáveis e, tout court, verdadeiras. Seríamos levados de um sistema de liberdade de pensamento e opinião a um regime de “verdade oficial” que é marca de Estados totalitários, totalmente incompatível com os princípios constitucionais da liberdade de expressão, da liberdade de cátedra e da vedação da censura.

Por fim, como dissemos acima, o pluralismo de ideias na educação deve ser valorizado e defendido, por meio do debate público, acadêmico, da participação democrática dos professores na definição dos conteúdos curriculares e material didático; e, sobretudo, garantindo-se a própria liberdade de pensamento e expressão dos professores que, aliada à liberdade política e de imprensa, é ela própria o penhor contra a disseminação de qualquer pensamento único na educação.


Bibliografia
BLACKBURN, Simon. Oxford Dictionary of Philosophy. Oxford: Oxford University Press, 2008, 407 p.
FONTES, Paulo Gustavo Guedes. Neoconstitucionalismo e verdade: limites democráticos da jurisdição constitucional. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, 265 p.
______. Filosofia do Direito. São Paulo: Método, 2014, 158 p.
LESSA, Renato. Veneno pirrônico e outros ensaios sobre o ceticismo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997, 239 p.  
PUTNAM, Hilary. Qual é a Motivação de um Filósofo? In: Putnam, H. Realism with a Human Face.Cambridge: Harvard University Press, 1990. Tradução de Paulo Guiraldelli Jr. Disponível em: <http://www.uapi.edu.br/upload/filosofia/documentos/Putnam%20-%20Qual%20e%20a%20motivacao%20de%20um%20filosofo.pdf> Acesso em: 18/7/2016.
VATTIMO, Gianni. Adeus à verdade. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2016.

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