Opinião

Sobre a estabilização de decisões liminares proferidas em ADIs

Autor

  • Camilla Mattos Paolinelli

    é advogada doutoranda e mestre em Direito Processual pela PUC Minas coordenadora do curso de Direito da PUC Minas - Serro professora de cursos de graduação e especialização da mesma instituição e membro da Comissão de Processo Civil da OAB/MG.

17 de maio de 2019, 7h04

O CPC/2015 foi estruturado com o propósito de estabelecer “verdadeira sintonia fina com a Constituição Federal”, mediante a adoção de referências normativas para a consolidação de um processo democrático. Afinado às garantias processuais fundamentais do contraditório na acepção dinâmica de influência e não surpresa, isonomia, ampla defesa e dever de fundamentação racional e legítima das decisões, o CPC procurou delinear soluções para a morosidade dos procedimentos que tramitam no Judiciário brasileiro.

Atento ao objetivo de traçar estratégias eficazes de combate aos efeitos perniciosos que o tempo causa ao processo e aos direitos materiais discutidos, o CPC estruturou o sistema de tutelas provisórias — que cuida das técnicas diferenciadas aplicadas aos mais diversos tipos de procedimento —, para a produção de provimentos antecipatórios fundados em urgência ou evidência. Daí as duas espécies de tutelas criadas pelo legislador: as tutelas de urgência e as tutelas de evidência. Nenhuma grande novidade até aí.

A fonte de polêmicas fica por conta do instituto da tutela de “urgência” antecipada requerida em caráter antecedente: denominada pelo legislador simplesmente de tutela antecipada antecedente (artigos 303 e 304, CPC).

É que o instituto, este sim novidade do CPC/2015, estruturado à semelhança de ordenamentos estrangeiros, vem agregado à chamada “estabilização”. Para muitos concebida como medida de monitorização do procedimento comum brasileiro, para outros modalidade de negociação processual, a estabilização é técnica que promove a extinção prematura dos procedimentos, com a conservação dos efeitos da tutela concedida, seguindo a diretriz de sumarização dos procedimentos como estratégia para o contingenciamento de demandas.

Será possível quando houver decisão concessiva de tutelas antecipadas requeridas em caráter antecedente e desde que não haja impugnação por parte do requerido. A estabilização é, assim, técnica que promoverá a extinção do procedimento antecipado antecedente quando o provimento antecipatório for concedido, não for impugnado mediante recurso pelo réu e não houver interesse na prolação de sentença definitiva de mérito por parte do autor. Com a estabilização da tutela concedida, o procedimento antecedente será extinto por sentença terminativa, conservando-se os efeitos materiais e jurídicos do provimento provisório proferido. Extinto o procedimento antecedente com a estabilização dos efeitos da tutela concedida, qualquer das partes dispõe do prazo de dois anos para ajuizar ação destinada a rever os efeitos da tutela estável. Findo o prazo, consuma-se a decadência, sem formação de coisa julgada. A estabilização, neste caso, dá lugar a uma espécie de “superestabilização”.

Vale destacar que, para que a estabilização ocorra, há que se preencher, obrigatoriamente, requisitos indicados em lei. E, nessa via, hão de ser fixadas algumas premissas:

1ª) O legislador do CPC reserva a utilização da técnica da estabilização às tutelas (“de urgência”) antecipadas antecedentes, expressamente requeridas nos termos dos artigos 303 e 304. Portanto, não existe autorização legal para ampliação da estabilização para outros tipos de pronunciamentos provisórios, como tutelas antecipadas incidentais fundadas em urgência ou evidência, ou mesmo tutelas cautelares. Até porque se trata de instituto de sumarização do contraditório, que implica em restrições de direitos fundamentais do devido processo. Sendo, assim, medida que restringe o exercício de direitos, a ampliação de sua utilização para casos não previstos em lei exigiria alteração normativa, sob pena de ativismo judicial.

2ª) A estabilização só poderá ser aplicada quando, além de ser expressamente requerida pelo autor, não houver impugnação por parte do réu. Neste ponto, vale destacar que, apesar da disposição legislativa sinalizar para o sentido de só ser possível que tal impugnação se dê mediante recurso, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.760.966/SP, já teve oportunidade de se manifestar sobre a questão, permitindo que também contestações afastem a extinção prematura dos procedimentos.

3ª) Nos termos do parágrafo 5º artigo 303, CPC/15, é necessário que o autor requeira a aplicação dos benefícios decorrentes da tutela antecipada requerida em caráter antecedente. Isso significa que é preciso que o autor não tenha interesse na prolação de sentença de mérito definitiva, optando, expressamente, na inicial, pela possibilidade de estabilização, caso a tutela concedida não seja impugnada pela parte contrária.

Fixadas as premissas, é preciso, agora, avaliar se a estabilização é técnica aplicável às liminares concedidas em ADI.

A ADI prevista no artigo 101, CF/1988, cujo procedimento é regulado pela Lei 9.868/99, é procedimento especial, de caráter objetivo, natureza declaratória e dúplice, que tem por finalidade obter a declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos federais ou estaduais que contrariem a CF/88. Trata-se de procedimento de competência originária do STF, no exercício de controle concentrado de constitucionalidade.

Os artigos 10 a 12 da Lei 9.868/1999 dispõem sobre a possibilidade de concessão de medidas cautelares em ADI. A normativa indica que “a cautelar na ação direta será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal, observado o disposto no art. 22, após a audiência dos órgãos ou autoridades dos quais emanou a lei ou ato normativo impugnado, que deverão pronunciar-se no prazo de cinco dias” (artigo 10).

Muito embora o texto legal aponte para a possibilidade de concessão de “medidas cautelares” em ADI, cumpre apontar para a sua imprecisão. A normativa indevidamente confunde diferentes espécies de tutela de urgência. De acordo com Neves, “a pretensão do autor com a chamada “medida cautelar” prevista nos artigos já mencionados é a declaração imediata de ineficácia da lei ou ato normativo impugnado” (2013, p.29)Flagrante, assim, sua finalidade de satisfazer, de forma antecipada, a pretensão de mérito formulada na ADI. Contudo, destaca Neves que: “Apesar da nítida natureza de tutela antecipada, o STF entende que a concessão da “medida cautelar” na ação direta de inconstitucionalidade depende da presença dos tradicionais elementos cautelares do fumus boni iuris e do periculum in mora” (2013, p.31).

Logo, para a concessão da medida cautelar em ADI, como regra, são examinados os mesmos fundamentos tradicionalmente utilizados no processo civil para a concessão de cautelares: fumus boni iuris e periculum in mora, hoje traduzidos como probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Todavia, vale advertir que o STF já concedeu medida cautelar em ADI por critérios de conveniência, como substituto da presença de perigo de dano (ADI 2.314 MC/RJ). Em regra, a cautelar é concedida pelo Pleno do STF e com quórum de maioria absoluta, gerando, também como regra, efeitos erga omnes e vinculantes.

Traçadas as características gerais das cautelares em ADI, resta saber se a técnica da estabilização é compatível com seu procedimento.

Conforme a primeira premissa levantada no texto, a estabilização é técnica reservada às tutelas antecipadas antecedentes. Sua aplicação a outras espécies de tutelas provisórias, sem que haja previsão legal, não deve ser admitida, já que se trata de modalidade restritiva de garantias processuais fundamentais, sobretudo ligadas ao contraditório dinâmico, com limitação da cognição, sob a justificativa de sumarização dos provimentos.

Assim, a primeira conclusão a que se chega é que, compreendendo-se as liminares proferidas em ADI como cautelares, jamais se admitirá aplicação da estabilização. Ora, a intenção da estabilização é promover a extinção prematura dos procedimentos, proporcionando a conservação dos efeitos do provimento antecipatório concedido, que está satisfazendo todos os envolvidos na lide. Logo, a tendência da estabilização é a definitividade, finalidade que conflita com os propósitos das cautelares que são temporárias e conservarão seus efeitos apenas enquanto persistir a situação que justificou sua necessidade. Portanto, aderindo-se à interpretação literal das disposições da lei, não há que se falar em aplicação do instituto da estabilização.

Há que se analisar, porém, a posição que sustenta se tratar de medidas de natureza satisfativa. Nesta senda, deve-se avaliar: quais são os fundamentos exigidos pelo STF para a concessão da liminar? Probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo; ou “critérios de conveniência”?

Definido o fundamento da tutela antecipada, é preciso indagar: em que momento procedimental o requerimento foi formulado? A título antecedente ou incidental? A partir daí, serão possíveis respostas para o problema.

Se se concebe liminares concedidas em ADI como espécies de tutelas antecipadas, sendo o fundamento exigido pelo STF os “critérios de conveniência” como substituto do perigo de dano, estar-se-á diante de hipótese de tutela de evidência. Nesse caso, não se deve admitir a estabilização. E isto não apenas pelo fato de não haver previsão legal atrelando a possibilidade de estabilização dos efeitos da tutela concedida às hipóteses de “evidência” do direito. Mas, sim, porque a estabilização está, atualmente, atrelada à exigência de urgência contemporânea à propositura da ação. Desta feita, se a tutela de evidência é aquela que dispensa a demonstração de urgência, não haverá estabilização. Ademais, as tutelas de evidência serão, de acordo com o código, sempre requeridas incidentalmente.

Em contrapartida, caso se considere as liminares concedidas em ADI como espécies de tutelas antecipadas de urgência, por exigirem a prova da probabilidade do direito e o perigo de dano, deve-se avaliar se foram requeridas em caráter antecedente ou incidental. Apenas os requerimentos antecedentes admitem estabilização, repete-se. Os incidentais, por estarem acompanhados dos pedidos principais, exigem que o Judiciário observe a garantia de inafastabilidade da jurisdição. Requerida a título incidental, ainda que não impugnada a decisão que concede a liminar antecipatória em ADI, não há permissivo legal que autoriza a aplicação da estabilização de medida. Afastada, então, a possibilidade de extinção prematura do procedimento. Mas e os requerimentos liminares de tutela antecipada (de urgência) antecedente em ADI?

A princípio, o fato de a ADI ser regulamentada por procedimento especial não obsta a aplicação residual de técnicas previstas no CPC. Isso porque, nos casos de omissão, desde que haja compatibilidade com o sistema, os artigos 15 e 1.049 do CPC/2015 e o próprio STF (durante o julgamento da ADI 5.316 MC/DF, por exemplo) admitem tal aplicação. Portanto, a princípio, a ausência de permissivo legal na Lei 9.868/99 não é fator que impede a aplicação da estabilização. Mesmo porque o próprio STF já se pronunciou favoravelmente à aplicação subsidiária das normas do CPC às ações de controle concentrado.

A questão que persiste é a seguinte: existe compatibilidade entre o procedimento antecedente previsto nos artigos 303 e 304, CPC e as liminares que declaram provisoriamente atos normativos e leis como inconstitucionais?

Primeiramente, há que se destacar que, via de regra, a cautelar na ADI deve ser concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do tribunal, caso presentes pelo menos oito ministros. Concedida a medida, o STF publicará a parte dispositiva da decisão e solicitará informações à autoridade da qual tiver emanado o ato impugnado. Sucessivamente, deverá ouvir o AGU, o PGR, seguindo-se o julgamento. Não existe referência normativa quanto à possibilidade de o procedimento ser instaurado em caráter antecedente. Fato é que concedida a medida que suspende os efeitos da norma declarada inconstitucional por decisão liminar, via de regra, tomada com contraditório prévio, esta será publicada, e as autoridades responsáveis pela edição da norma são convocadas a prestar informações.

Por se tratar de procedimento objetivo, não é possível se atribuir a nenhum dos órgãos ou pessoas que participam do procedimento da ADI a qualidade de réu. É por isso que, com o acolhimento da alegação de inconstitucionalidade da lei na cautelar concedida pelo STF, a autoridade produtora da norma não é convocada para se defender, mas para prestar informações. Logo, não há propriamente oportunidade para recurso ou outra forma de impugnação (como a contestação) tal qual admitido pela 3ª Turma do STJ.

Tratando-se de medida concedida por acórdão proferido pela maioria dos membros absoluta dos membros presentes do tribunal, com quórum mínimo de seis votos, as ditas cautelares são irrecorríveis, ressalvada a possibilidade de manejo de ED. Há que se convir, assim, que não existe meio adequado para obter a revisão de entendimento. Mecanismo capaz de afastar a estabilização com extinção prematura do procedimento. Assim, não havendo aos interessados disponibilização de mecanismo apto à impugnação dos efeitos da tutela concedida na ADI, sua estabilização seria quase que automática, uma vez que, em limitadíssimas hipóteses, eventuais ED manifestados viriam a importar em reforma da decisão.

Ademais, em razão do interesse público subjacente à declaração de inconstitucionalidade, além da repercussão erga omnes e vinculante dos seus efeitos, tanto o aditamento da petição inicial de ADI quanto a prolação de decisão de mérito seriam consequências que se imporiam no procedimento. Isso em razão do fato de que, no procedimento de ADI, atuará, obrigatoriamente, o PGR, quando não for autor, na qualidade de fiscal da ordem jurídica, bem como será admitida a manifestação de amicci curae.

Dessarte, diante do interesse público na declaração de inconstitucionalidade, salvo na hipótese de inépcia da inicial, o aditamento da petição inicial com a consequente formulação do pedido de tutela final e a decisão de mérito serão atos obrigatórios. Até porque o procedimento de ADI expressamente não admite desistência. Nesse caso, então, havendo desistência ou abandono do autor da ADI, em interpretação analógica ao disposto no parágrafo 3º, artigo 5º da Lei 7.347/1985, deverá MP assumir a titularidade da ação, viabilizando o aditamento da inicial, caso a tutela antecipada tenha sido requerida em caráter antecedente.

Por todas as considerações, a conclusão a que chego é a seguinte: conquanto seja possível cogitar a adoção do procedimento da tutela antecipada antecedente expressamente formulada nos termos do artigo 303, CPC/2015 às liminares concedidas em ADI dada a finalidade satisfativa dos seus provimentos, a aplicação da técnica de estabilização é incompatível com o modelo de controle concentrado adotado nestas ações, regido pela Lei 9.868/99.

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