Opinião

O arbitramento e a suposta falta de individualização de valores em contratos

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13 de maio de 2019, 7h03

Não é raro, atualmente, um contribuinte firmar simultaneamente mais de um contrato com uma mesma parte, cada qual envolvendo uma relação jurídico-comercial própria (caracterizando ou não a figura da coligação de contratos). O contribuinte, então, aplica a cada qual seu tratamento tributário próprio, sendo que um pode ser mais oneroso do que o outro. Muitas vezes a Administração Fiscal discorda da divisão dos valores envolvidos em cada relação jurídico-comercial. Para ela, teria sido alocada uma parcela desarrazoadamente pequena justamente à relação jurídico-comercial com tratamento tributário mais oneroso.

Também não é incomum uma empresa firmar um só contrato com um fornecedor e a Administração Fiscal concluir, em sua revisão, que haveria mais de uma relação jurídico-comercial e lavrar autuação impondo à integralidade da operação o tratamento tributário mais gravoso. Para tanto, alega que o contrato firmado não teria sido suficientemente claro para individualizar os valores que corresponderiam a cada relação jurídico-comercial.

Em um ou em outro caso, a Administração Fiscal alega que o tratamento tributário dado pelo contribuinte não estaria correto: haveria inadequada distribuição de valores entre as relações jurídico-comerciais, concentrando-se a totalidade ou a maior parte dos valores envolvidos naquela menos gravosa do ponto de vista tributário.

Ocorre que a solução que a Administração Fiscal vem dando a essa situação é inapropriada. Independentemente de ser descabida a distribuição de valores, a Administração não pode, como tem feito, simplesmente concentrar a integralidade dos valores na relação jurídico-comercial com tratamento tributário mais gravoso.

Foi essa a orientação acolhida, por exemplo, na recente Solução de Consulta 74, emitida pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) em 20/3/2019. Havia dúvida a respeito de pagamentos enviados ao exterior e da aplicação do tratamento próprio de royalties ou daquele reservado à contraprestação por serviço prestado. Para a Cosit, a falta de clara individualização dos valores levaria a considerar a integralidade da remessa ao exterior como correspondente a serviços, exigindo-se o recolhimento de PIS/Cofins, que não incidem sobre a remuneração por royalties. Confira-se a ementa dessa Solução de Consulta:

ROYALTIES. PAGAMENTO A RESIDENTE OU DOMICILIADO NO EXTERIOR. LICENÇA DE USO DE MARCA OU PATENTE. SERVIÇOS VINCULADOS.

O pagamento, o crédito, a entrega, o emprego ou a remessa de valores a residentes ou domiciliados no exterior, a título de royalties, por simples licença ou uso de marca, ou seja, sem que haja prestação de serviços vinculada a essa cessão de direitos, não caracterizam contraprestação por serviço prestado e, portanto, não sofrem a incidência da Contribuição para o PIS/PASEP-Importação. Entretanto, se o documento que embasa a operação não for suficientemente claro para individualizar, em valores, o que corresponde a serviço e o que corresponde a royalties, o valor total da operação será considerado como correspondente a serviços e sofrerá a incidência da contribuição.

A Cosit, então, parece aceitar que os valores pagos se referiam parte a royalties e parte a contraprestação por serviços. No entanto, por entender que o documento que embasou a operação não seria suficientemente claro na individualização dos valores de cada operação, ela simplesmente impõe o tratamento mais gravoso à integralidade dos valores. Não há novidade nessa decisão, que apenas repete o entendimento já esposado pela Receita Federal em outros momentos, como na anterior Solução de Consulta Cosit 71/2015 [1].

A Administração Fiscal erra ao assim proceder. Como pretendemos demonstrar a seguir, o tratamento correto, imposto pelo Código Tributário Nacional, seria o de arbitrar os valores relativos a cada relação jurídico-comercial [2].

O arbitramento prescrito pelo artigo 148 do CTN e sua aplicação
A atividade de tributar se submete à realidade. Não pode ignorá-la ou dela distanciar-se. Tanto é assim que o Código Tributário Nacional proclama que para lançamento deve ser verificada a efetiva ocorrência do fato gerador (artigo 142). Ignorar ou distanciar-se da realidade levaria à violação dos mais comezinhos princípios e parâmetros que regem a atividade de tributar. Com efeito, sem se aferir com cuidado a realidade torna-se inviável saber se a capacidade contributiva foi respeitada e, no limite, até mesmo se a competência tributária autorizada pela Constituição foi exercida corretamente.

Ocorre que muitas vezes a realidade é de difícil ou inviável conhecimento pleno pela Administração Fiscal. Mesmo assim, porém, a tributação deve ocorrer, sob pena de se deixar de arrecadar tributos devidos e estimular práticas de má-fé de contribuintes, que procurariam omitir e esconder informações.

Surge a questão, então, de como compatibilizar a submissão à realidade com a necessidade de tributar, quando é inviável o pleno conhecimento da realidade.

O ordenamento jurídico dá a solução para esse aparente dilema. É o arbitramento, previsto no artigo 148 do CTN, o qual estatui:

Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.

Esse artigo 148 e a utilização do arbitramento devem ser entendidos a partir da Constituição Federal. Esta faculta à Administração Fiscal “(…) identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte” (artigo 145, § 1º). O exercício da fiscalização, pela Administração, é uma função pública, um dever-poder, como explica Celso Antonio Bandeira de Melo [3]. Mais do que simplesmente ter um poder de fiscalizar, a Administração tem o dever de fazê-lo, para bem conhecer a realidade e aplicar corretamente a legislação.

No exercício desse dever-poder, deve-se buscar a proximidade, ao máximo possível, da realidade, da verdade material. Isso porque o Poder Público deve receber tudo que lhe é devido a título de tributo, mas nada além do devido. É por todos percebido que a busca da verdade material, para exigir os tributos com fidelidade ao ordenamento, não é tarefa fácil, mas é imprescindível [4].

O arbitramento deve se dar nesse contexto. Como ensinou Souto Maior Borges, ele é técnica alternativa para apurar o quantu debeatur [5]. “O arbitramento é remédio que viabiliza o lançamento, em face da imprestabilidade dos documentos e dados fornecidos pelo próprio contribuinte ou por terceiro legalmente obrigado a informar” [6].

Tendo em vista que as condições concretas inviabilizam o conhecimento amplo da realidade, o arbitramento se impõe, como é claro o artigo 148: “(…) a autoridade lançadora (…) arbitrará (…)”. Não há autorização, não há discricionariedade. Há, sim, obrigação de fazê-lo, perante as circunstâncias de fato que a preveem. Bem o disse o saudoso Alberto Xavier: “O recurso ao arbitramento, nos casos previstos na lei, não é uma faculdade que o Fisco possa, ao seu livre critério, exercer ou não. (…) O arbitramento é, pois, um procedimento obrigatório, nos casos previstos em lei” [7].

É, também, o que já decidiu o Superior Tribunal de Justiça: “(…) caso se conclua pela inidoneidade dos documentos, a autoridade fiscal deverá arbitrar, com base em parâmetros fixados na legislação tributária, o valor a ser considerado para efeito de tributação” [8].

Por decorrência, arbitramento dista muito de arbitrariedade [9]. Também não se trata, em absoluto, de penalidade [10]. As eventuais faltas cometidas pelo contribuinte devem ser punidas com as regras próprias, geralmente as multas. No arbitramento não se pode, arbitrariamente, pretender impor o tratamento mais oneroso possível, como uma dissimulada penalidade.

Bem ao inverso disso, a exigência tributária decorrente de arbitramento precisa estar pautada pela razoabilidade. A autoridade fiscal deve louvar-se “(…) em elementos idôneos de que dispuser, dentro do razoável. (…) O procedimento há de ser racional, lógico e motivado” [11].

A aplicação dessas clássicas, mas atualíssimas manifestações, à hipótese aqui em análise leva a inferência de ser imprescindível que a Administração Fiscal procure – em casos em que a seu ver há mais de um contrato/relação, cada qual com seu regime tributário próprio – identificar corretamente a parcela que cabe a cada um. Sendo inviável o conhecimento pleno da realidade, deve aplicar o arbitramento, aproximando-se o máximo possível da realidade. Não pode ela afirmar que o contrato deveria ser “suficientemente claro” na individualização que corresponderia a cada relação jurídico-comercial (nos casos das Soluções de Consulta Cosit 71/2015 e 74/2019, entre royalties e prestação de serviços) e, não o tendo sido, “considerar” o valor total da operação como correspondente à prestação submetida ao tratamento tributário mais oneroso.

Agir assim é deixar de aplicar o Código Tributário Nacional que impõe o arbitramento. Como visto, este não é faculdade, é procedimento obrigatório quando as condições para tanto estão presentes.

Também é insustentável alegar que a Administração Fiscal estaria aplicando o arbitramento em casos como as das Soluções de Consulta aqui sob exame, apenas considerando que a integralidade dos valores devidos diz respeito à relação jurídico-tributária mais tributada. O arbitramento requer a atenção à realidade, ainda que não inteiramente conhecida, buscando aproximar-se dela, com atenção aos elementos disponíveis, de forma razoável e motivada. Ora, não é razoável, frente a coexistência de duas relações jurídico-comerciais, alocar a integralidade do valor da remuneração a apenas uma dessas relações.

Não pode ser tolerado usar do lançamento e da exigência de tributos para fazer às vezes de punição. Agir assim é incidir em desvio de finalidade. A finalidade do arbitramento é permitir a tributação o mais próximo daquela que vigoraria se a realidade fosse conhecida de modo suficiente. A finalidade não é punir o contribuinte que, voluntariamente ou por mero descuido, não fornece à Administração todos os dados necessários. Logo, punir com arbitramento é desviar-se da finalidade, da função deste.

A consequência desse recorrente equívoco de procedimento por parte da Administração é o cancelamento do lançamento. É o fruto inevitável da recusa ao exercício da função pública (dever-poder) de fiscalizar e de, com base nos dados disponíveis, arbitrar. O caminho mais fácil de impor o tratamento tributário mais gravoso não é uma opção. O reflexo indireto do agir incorreto da Administração é premiar o contribuinte que deveria recolher o tributo apropriado aos atos que realizou, mas termina favorecido pelo cancelamento do lançamento. A grande prejudicada é a sociedade, privada dos tributos devidos, que seriam destinados a seu bem-estar.

Conclusão
Em conclusão de todo o exposto, quando frente a mais de uma relação jurídico-comercial e entendendo incorreta a distribuição de valores entre elas feita pelo contribuinte, a Administração Fiscal deve adotar os cuidados devidos, para, sendo o caso, arbitrar as parcelas apropriadas à cada relação jurídico-comercial, tributando-as corretamente e não, arbitrariamente, pretender impor a todas as parcelas o regime tributário mais gravoso.


1Entretanto, se o documento que embasa a operação não for suficientemente claro para individualizar, em valores, o que corresponde a serviço e o que corresponde a royalties, o valor total da operação será considerado como correspondente a serviços e sofrerá a incidência da contribuição.

2 Não seria a COSIT o órgão adequado, nem a solução de consulta o instrumento apropriado para realizar o arbitramento. Este deve ocorrer mediante o conhecimento detalhado das peculiaridades da situação concreta, algo próprio de ocorrer em procedimento de fiscalização. De qualquer forma, a COSIT deveria orientar o tratamento apropriado e não adotar o equivocado.

3 MELO, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 62.

4 É o que dizia o Conselho de Contribuintes: “Os Auditores Fiscais da Receita Federal detêm, com exclusividade, a prerrogativa do lançamento tributário. Reconheço que a busca da verdade real é árdua e espinhosa, mas é a contrapartida ao poder conferido pela Lei exigida dos agentes do fisco. Só assim o lançamento gozará de presunção de certeza e liquidez.” (Ac. 107-08.282).

5Não significa, pois, o arbitramento a predominância de uma atribuição legal de liberdade (discricionariedade) administrativa, mas apenas um processo técnico alternativo e estrito de apuração do quantum debeatur”. (BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 337).

6 DERZI, Misabel Abreu Machado, em seus comentários à BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000, p. 819.

7 XAVIER, Alberto. Do lançamento: Teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 142 e 143.

8 Brasil. Superior Tribunal de Justiça – STJ, AgRg no REsp nº 968.321/MG. Igualmente: RMS 26.964/GO e RMS 18.677/MT.

9 “Verifica-se assim que o direito de arbitrar não se confunde com arbitrariedade pura e simples; logo, não se compagina também com uma atividade administrativa discricionária. Pois se assim o fosse, não poderia ser objeto de controle judicial, uma vez que o Poder Judiciário somente pode rever os atos administrativos sob a ótica da legalidade, e não no que atine à conveniência e oportunidade.” (NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima Nogueira. In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães e LACOMBE, Rodrigo Santos Masset. Comentários ao Código Tributário Nacional. 2ª ed. São Paulo: MP Editora, 2008, p. 1123).

10 Misabel Derzi afirma que o arbitramento teria “caráter sancionatório” (comentários contidos em: BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000,p. 820). Tal afirmativa é aceitável enquanto seja entendido como consequência do descumprimento de um dever legal tributário. Todavia, não tem natureza de punição. Arbitramento não é pena. É técnica para viabilizar o lançamento. A pena é a multa, que deve ser aplicada se preenchidos os requisitos para tanto, como o descumprimento de dever instrumental. Não se pode usar o arbitramento como punição.

11 BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense. 2000,p. 818.

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