A capacidade postulatória dos defensores públicos e atribuição como limitadora
18 de junho de 2019, 8h00
O propósito do presente estudo é trazer algumas reflexões a respeito das normas que tratam da representação processual e compatibilizá-las com o regime de assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública, revestido de peculiaridades pouco observadas pelos personagens do processo.
Estabelecidas as premissas teóricas, a fim de compreendermos a representação processual, é necessário o estudo prévio da origem da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública, bem como os limites traçados pelas suas atribuições, previstas em lei ou atos normativos internos da própria instituição, a fim de compreender a extensão da representação institucional.
A capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública
Por definição, a capacidade postulatória consiste na aptidão a peticionar perante o Estado-juiz[1]. Essa capacidade é restrita aos advogados (públicos ou privados), membros da Defensoria Pública e do Ministério Público, estes apenas para o desempenho de suas funções institucionais.
O instituto, que ostenta a natureza de pressuposto processual, encontra-se regulamentado nos artigos. 103 a 107 do novo Código de Processo Civil, cujas normas pouco inovaram em relação ao antigo diploma adjetivo.
Não obstante a capacidade postulatória ser conferida a certos profissionais há situações em que o ordenamento jurídico amplia esta aptidão permitindo que qualquer pessoa possa se dirigir ao Estado-juiz independentemente de estar representado por profissional legalmente habilitado, tal como ocorre nas causas dos Juizados Especiais, a impetração de Habeas Corpus e algumas situações da Justiça do Trabalho.
O estudo da capacidade postulatória, como bem adverte Leonardo Greco, possui uma amplitude objetiva e subjetiva. Torna-se necessário reconhecer os elementos que permitem o profissional patrocinar determinada causa (aspecto subjetivo) e a extensão desta atuação (aspecto objetivo)[2].
Importa para nós, neste momento, analisarmos apenas o critério subjetivo, relativo a origem da capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública, uma vez que a extensão da atuação será tratada no tópico relativo a atribuição.
A grande controvérsia atual, que foge ao que é tratado no novo CPC refere-se à natureza da capacidade postulatória conferida aos membros da Defensoria Pública. Estaria ela prevista no artigo 3º, parágrafo 1º do Estatuto da OAB (Lei n. 8.906/94) ou sua base adviria de outro diploma normativo?
Dentre as inúmeras inovações no texto da Constituição podemos indicar a reorganização da Defensoria Pública no plano das funções essenciais à justiça, visto que a “Seção III – Da Advocacia e da Defensoria Pública”, integrante do Capítulo IV, trazia a falsa ideia de que a Defensoria Pública faria parte do mesmo regime jurídico da Advocacia, conforme modificação operada pela Emenda Constitucional 80/14
Na doutrina e jurisprudência persiste até hoje a reflexão acerca do enquadramento das funções de advocacia e Defensoria Pública, uma vez que o Estatuto da OAB (Lei 8.906/94), especificamente em seu artigo 3°, parágrafo 1º prevê que os membros da Defensoria Pública estão sujeitos ao regime jurídico ali estatuído.
Note-se que a Defensoria Pública sempre buscou se desvincular da Advocacia, constituindo função essencial autônoma, destinada à assistência jurídica gratuita organizada pelo Estado. Tanto que o artigo 4º, parágrafo 6º da Lei Complementar 80/94, assegura que a capacidade postulatória do Defensor Público é obtida por meio de sua nomeação posse no cargo, revelando a total desnecessidade de vinculação dos defensores públicos aos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ademais, a distinção entre as funções, sempre muito bem delineada no plano doutrinário, deixa claro que o regime de advocacia é totalmente incompatível com o modo de atuação da Defensoria Pública. A natureza estatutária do vínculo estabelecido entre o assistido e a instituição constitucional é um dos grandes pilares que contrastam o modelo de advocacia, que se pauta em um vínculo de natureza contratual existente entre o cliente e seu causídico.
Com a nova formatação introduzida pela Emenda Constitucional 80/14, criou-se uma nova seção destinada exclusivamente ao regramento da Defensoria Pública, demonstrando-se a sua total autonomia e desvinculação ao regime jurídico da Advocacia.
É por esta razão que a mudança do parâmetro constitucional nos leva a visualizar uma influência determinante no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.636, em trâmite no Supremo Tribunal Federal que somada às manifestações favoráveis da Procuradoria Geral da República e da Advocacia-Geral da União, no sentido da constitucionalidade do artigo 4°, parágrafo 6° da Lei Complementar 80/94, põem em xeque a pretensão da OAB.
Apenas para situarmos o leitor, a referida ADI pretende a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo acima destacado, de modo a tornar obrigatória a vinculação de defensores públicos ao regime jurídico da advocacia previsto em seu estatuto. O que o texto constitucional prevê hoje nada mais é que um reflexo da doutrina institucional e da jurisprudência que sempre encararam a Defensoria Pública como uma atividade distinta da advocacia.
Por consequência, depreende-se que a capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública é extraída do próprio regime jurídico da instituição, previsto no dispositivo da LC 80/94 que lhe confere plena extensão.
Isto implica reconhecer a autorização concedida ao membro da Defensoria Pública para presentá-la, quando a instituição é representante da parte ou nas hipóteses de legitimação extraordinária previstas em lei e com suporte no artigo 18 do novo código.
A atribuição como limitação da capacidade postulatória
Partindo-se da premissa de que os membros da Defensoria Pública têm a origem de sua capacidade postulatória na Lei Complementar 80/94, impõe-se a análise da atribuição como uma causa limitadora.
Qualquer defensor público dispõe de capacidade postulatória plena, o que significaria admitir um defensor público estadual oficiando perante órgão da Justiça Federal, ou um defensor público recém-ingresso na instituição se dirigindo ao Supremo Tribunal Federal e realizando sustentação oral em julgamento de recurso extraordinário.
O membro da Defensoria Pública, ao ser empossado e investido no cargo, dispõe de capacidade postulatória plena, podendo atuar perante todos os órgãos da Justiça brasileira, de todas as esferas federativas, pois esta é uma característica do direito processual brasileiro.
Entretanto, diferentemente do que ocorre em relação ao regime da advocacia, a legislação de regência da Defensoria Pública, seja no plano federal, seja no plano estadual, estabelece certas limitações à capacidade postulatória, a partir do momento em que são fixadas as atribuições do órgão de atuação.
Sendo a capacidade postulatória ampla, a Constituição Federal, a Lei Complementar 80/94, as legislações estaduais e os atos internos editados pelo Conselho Superior, traçam limites ao seu exercício, baseados em diversos critérios, a exemplo da separação entre as unidades federativas, divisão de trabalho sob a ótica funcional, otimização a ampliação do acesso à justiça, enfim, todos os critérios necessários a melhor consecução de suas funções institucionais.
Ao estudar o tema sob a ótica do Ministério Público, o professor Sergio Demoro Hamilton[3] encara a atribuição como pressuposto processual de validez da instância, visto que a atribuição interfere na competência dos órgãos jurisdicionais[4], cujo entendimento é compartilhado por Emerson Garcia[5].
Em reflexão sobre o tema, o professor Paulo Cezar Pinheiro Carneiro apresenta outra visão da atribuição, definindo-a como um requisito para o regular desenvolvimento da relação jurídico-processual[6].
Apesar das qualificações um pouco diversas, percebemos que o ponto comum das duas posições consiste no reflexo processual da atribuição, ou seja, a sua natureza jurídica como elemento que interfere na capacidade postulatória dos membros da Defensoria Pública.
É por esta razão que o instituto deve ser encarado como a pedra fundamental da instituição. Toda a essência da Defensoria Pública deve girar em torno de sua atribuição, não bastando apenas que haja um defensor público.
Em verdade, para que haja a regular atuação institucional, em respeito ao princípio constitucional da legalidade, o Defensor Público deve ter atribuição para prestar a assistência jurídica ao assistido, seja de natureza genérica, em razão do acúmulo de funções do órgão de atuação, seja em caráter específico, em razão de designação especial.
A divisão de atribuições, como já exposto, é matéria tratada na Lei Complementar 80/94, nas leis estaduais e atos normativos internos de cada Defensoria Pública. No entanto, observa-se que a própria Lei Nacional da Defensoria Pública permite que a Defensoria da União firme convênios com as defensorias estaduais (artigo 14, parágrafo 1º), permitindo que estas desempenhem atribuições que, por lei, são afetas àquela, o que reforça o fato de a capacidade postulatória de qualquer Defensor Público ser ampla.
Note-se também que o artigo 4º-A, inciso IV, da LC 80/94 contempla o princípio do Defensor Público natural, o encarando como um direito dos assistidos da Defensoria Pública. Esse princípio consiste na garantia de que o assistido deve ser patrocinado por um membro da instituição previamente investido de atribuição, evitando-se as ditas "designações casuísticas".
O respeito à atribuição significa a manutenção da ordem e da estruturação das defensorias públicas, sob risco de se perder o caráter institucional. No entanto, a grande questão que gravita em torno do universo da Defensoria Pública diz respeito a convalidação dos atos praticados pelo defensor público sem atribuição, nas situações em que se apresenta necessária a atuação em caráter de urgência, na tutela de um direito fundamental.
Há situações em que emerge o confronto natural entre as normas internas de organização da Defensoria Pública e a observância dos direitos fundamentais em respeito à função institucional de promoção dos direitos humanos[7] prevista no artigo 134 da Constituição, a exemplo da inexistência de órgão da Defensoria Pública da União em determinado município.
Seria possível, ao defensor público estadual, que pela Lei Complementar 80/94 não dispõe da possibilidade de atuação na Justiça Federal, leia-se atribuição, enquanto não firmado o convênio a que alude o artigo 14, parágrafo 1º da citada lei?
O ajuizamento de ações que versem sobre saúde (direito à vida), providências com intuito de combater ilegalidades de prisões (liberdade de locomoção), dentre a tutela de outros bens jurídicos prestigiados no artigo 5º da Constituição Federal e pela própria Convenção Americana de Direitos Humanos, estariam albergadas pela atuação desprovida de atribuição, quando evidenciado o seu caráter urgente, apesar de não se evidenciar um dever, mas verdadeira faculdade.
Assim, apesar de haver ineficácia na atuação do Defensor Público sem atribuição, torna-se possível que o ato seja convalidado pelo Defensor Público natural, a quem é conferida a atribuição para atuar no feito, desde que, na primeira oportunidade que ingressar no processo, concorde em ratificar expressamente os atos praticados pelo Defensor Público que o antecedeu[8].
Importante avanço se traduz na redação do artigo 104, parágrafo 2º do novo CPC que reconheça a ineficácia do ato praticado em favor de quem não estava representado no feito. Corrige-se o equívoco constante do artigo 37, parágrafo único do antigo CPC que afirmava a inexistência dos atos praticados se não houvesse a ratificação[9], o que nos levava a tratar a ausência de atribuição como verdadeira nulidade.
A regra geral do caput do artigo 37 do antigo CPC, permanece reproduzida no artigo 104 do novo CPC, sendo lícito ao advogado atuar em juízo sem procuração apenas para evitar a ocorrência de prescrição, decadência ou atos urgentes.
Do mesmo modo, o defensor público que atua sem atribuição na tutela de urgência de um direito fundamental deverá propiciar os meios necessários para que o ato praticado seja ratificado pelo membro da instituição que detém atribuição, considerando a inviabilidade de juntada de procuração a que alude o artigo 104, parágrafo 1º do novo CPC como forma de convalidação, ao que veremos no tópico seguinte.
Nesta linha de ideias, a realização de atos sem atribuição e fora dos restritos limites aqui ponderados (tutela de urgência de direitos fundamentais) significará a total ineficácia dos atos, inviabilizada a ratificação posterior, sob risco de fragilização do princípio do defensor natural.
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 17. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. P. 226.
[2] GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. P. 339.
[3] HAMILTON, Sergio Demoro. A dúvida de atribuição e o princípio da autonomia funcional, Revista do Ministério Público, nº 14, jul/dez, 2011, pág. 201/206.
[4] “Colocada a questão nestes termos, chega-se, de forma lógica, à conclusão de que sua falta vicia a relação processual sem a impedir de nascer. Dizendo de outra maneira: a relação processual existe, posto que viciada pela falta de atribuição do órgão do Ministério Público. Prosperando, conclui-se que a ausência de atribuição traz como consequência a nulidade do processo ou do ato processual, conforme o caso, desde que oficie no feito um promotor despido de atribuição.” (HAMILTON, Sergio Demoro. Op. cit., pág. 58/59)
[5] GARCIA, Emerson. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 365.
[6] CARNEIRO, Paulo César Pinheiro. O Ministério Público no Processo Civil e Penal, Rio de Janeiro: Forense, 2001, pág. 99.
[7] No plano material os direitos fundamentais e os direitos humanos se equivalem, pois buscam a tutela dos bens jurídicos mais sensíveis.
[8] Em sentido contrário é a opinião do professor Sergio Demoro: “A resposta para a indagação só pode ser uma: cogita-se de nulidade absoluta, portanto arguível a todo o tempo, mesmo após a ocorrência de coisa julgada formal (arts. 564, II c/c 572 do CPP), incumbindo ao juiz no momento em que a declarar, estabelecer os exatos limites de sua extensão (art. 573, § 2º do CPP).” (HAMILTON, Sergio Demoro. Op. cit., pág. 60/61).
[9] Como bem ponder Fredie Didier Jr.: “A situação não é de inexistência, mas, sim, de ineficácia do processo ou do ato em relação àquele que supostamente seria a parte, mas que não outorgou o instrumento de representação. A falta de poderes não determina nulidade, nem existência. Trata-se de ato cuja eficácia em relação ao suposto representado submete-se a uma condição legal resolutiva: a ratificação. Não há falta de capacidade postulatória, pois o ato foi praticado por um advogado, que a tem.” (DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil. 11. Ed. Salvador: Juspodivm, 2009. P. 225-226).
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!