Opinião

A aplicação do artigo 1.036 do CPC aos recursos repetitivos

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11 de junho de 2019, 6h39

O relatório Justiça em Números 2018, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, expôs que a despesa total do Judiciário brasileiro em 2017 foi de R$ 90,8 bilhões — 1,4% do Produto Interno Bruto —, dos quais 90,5% destinaram-se ao pagamento de recursos humanos (p. 31).

Sobre o Superior Tribunal de Justiça, destaca-se entrevista do ministro presidente daquela corte, publicada em 9 de março deste ano[1]:

O STJ bateu recorde em 2018: ultrapassou a marca de meio milhão de processos julgados, com média de 15,5 mil decisões por ministro, 1,4 mil por dia, 58 por hora. Julgar quase um processo por minuto não pode ser razoável para uma Justiça que se propõe célere e de qualidade. Presidente da corte, o ministro João Otávio de Noronha trabalha pela imposição de filtros mais apurados, o que não significa que formalidades processuais devam obstar a apreciação de causas, se elas forem socialmente relevantes. (…) Não há contradição entre esticar os limites para apreciação de recursos e impor mais filtros, como proposto pela PEC da Relevância, aprovada na Câmara e que tramita no Senado.

Para assegurar a eficiência do STJ como corte de precedentes, já está positivado um importante filtro: o artigo 1.036 do CPC/2015. Este demanda para sua plena eficácia que não haja “excesso de formalidades na interpretação das leis no que tange à admissibilidade do recurso”, salutar anseio bem expresso pelo ministro Noronha na entrevista supracitada. Essa temática constitui o objeto do presente estudo.

As informações acima denotam que, se de um lado são graves os problemas na administração da Justiça no Brasil, por outro há sérios limites orçamentários para sua solução em um país pobre. Tais informações também permitem a conclusão de que é impossível qualquer juiz no mundo efetivamente proferir decisões (com qualidade) em 58 processos por hora. Se a impossibilidade admite graus, pode-se dizer que isso é ainda mais impossível em uma suprema corte, como o Superior Tribunal de Justiça.

Diante desse quadro fático, não é de se admirar a criação da “jurisprudência defensiva” (em suma, posturas judiciais irracionais para levar à inadmissão de recursos[2]), que veio a ser tão combatida pelo CPC/2015. No entanto, sem que se altere uma realidade que leve ao colapso de um ser (inclusive um tribunal), não há lei que o impeça de procurar subsistir, seja continuando a produzir decisões com natureza “defensiva”, seja por outros meios como o uso de robôs exterminadores de recursos[3] e a indevida aplicação da Súmula 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”[4].

Esse cenário levou o Estado brasileiro a elaborar um novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) em vez de apenas reformar o código de 1973. Era preciso queimar os navios que poderiam nos transportar de volta ao regime marcado pelo livre convencimento do juiz cordial, pela jurisprudência lotérica e pela inexistência de um sistema apto a lidar com o fenômeno da litigiosidade em massa. Para isso, fez-se um novo código que objetiva uma maior racionalização da administração da Justiça, instituindo novos paradigmas, dentre os quais a vinculação a precedentes, a ênfase na fundamentação e os instrumentos para resolução de demandas repetitivas.

A esse desiderato do CPC/2015 pode-se opor uma crítica desanimadora: parece quimera buscar, “por decreto”, racionalizar o processo civil, à moda germânica, na terra do homem cordial, habituado a não curvar os desejos à razão[5], o que o leva, em pleno século XXI, a resistir a um dos produtos mais básicos do racionalismo jurídico iluminista: a obediência dos agentes do Estado — inclusive os juízes — à lei, o chamado rule of law, Rechtsstaat, Estado de Direito.

Se quimera ou não, o devir histórico o demonstrará. Fato é que a tradição de civil law do Direito brasileiro é marcada pela necessidade de que até mesmo obviedades venham a ser positivadas em lei[6]. Está em nossas raízes: “A rigidez, a impermeabilidade, a perfeita homogeneidade da legislação parecem-nos constituir o único requisito obrigatório da boa ordem social. Não conhecemos outro recurso”[7]. Nesse contexto cultural, a codificação de novos paradigmas foi um passo relevante e talvez indispensável a que eles possam se tornar realidade no Brasil.

E a aposta do legislador foi alta no fomento de racionalizar a administração da Justiça por meio de um novo CPC. Tanto que sua exposição de motivos expressamente reconhece, em sua nota 19, inspiração no Direito alemão, especialmente no instituto do Musterverfahren (processo-padrão). Nesse passo, o CPC/2015 instituiu o incidente de resolução de demandas repetitivas (artigos 976-987) e o seguinte preceito:

Art. 1.036. Sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições desta Subseção, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça[8].

§ 1º O presidente ou o vice-presidente de tribunal de justiça ou de tribunal regional federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso.

A Lei 11.672/2008 incluíra no CPC de 1973 disposição semelhante:

Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo.

§ 1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.

§ 2º Não adotada a providência descrita no § 1o deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.

Enquanto o artigo 543-C previa que apenas os recursos especiais deveriam ficar suspensos, o artigo 1.036 do novo CPC preceitua que o presidente ou vice-presidente do tribunal de segundo grau determinará “a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso”. Por sua importância, essa nova disciplina foi expressamente mencionada na exposição de motivos do novo código:

Criaram-se figuras, no novo CPC, para evitar a dispersão excessiva da jurisprudência. Com isso, haverá condições de se atenuar o assoberbamento de trabalho no Poder Judiciário, sem comprometer a qualidade da prestação jurisdicional. Dentre esses instrumentos, está a complementação e o reforço da eficiência do regime de julgamento de recursos repetitivos, que agora abrange a possibilidade de suspensão do procedimento das demais ações, tanto no juízo de primeiro grau, quanto dos demais recursos extraordinários ou especiais, que estejam tramitando nos tribunais superiores.

Observe-se também que o verbo “caberá”, no início do parágrafo 1º do antigo 543-C, permitia supor alguma discricionariedade na decisão de submeter os recursos à sistemática dos representativos de controvérsia. Já o artigo 1.036 do novo CPC é contundente quanto à obrigatoriedade de sua aplicação “sempre que houver multiplicidade”. Destarte, é peremptoriamente vedada a continuidade da praxe de tribunais de segundo grau enviarem ao STJ e ao STF milhares de recursos ou agravos em recursos sobre a mesma matéria[9].

A corte superior, por sua vez, também deve proceder de ofício, sistematicamente, à escolha de recursos representativos de controvérsia (artigo 1.036, parágrafo 5º) quando estes não tiverem sido selecionados já na segunda instância. E, ao receber recursos selecionados no segundo grau, ou quando os selecionar de ofício, deve determinar a suspensão dos processos com a mesma controvérsia em todo o território nacional (artigo 1.037, II).

Com essas providências na segunda e na superior instância, uma matéria que poderia gerar dezenas de milhares de recursos para o STJ, STF, ou para ambos (!), poderá ser julgada quando interposto um número (ainda) reduzido de recursos, até mesmo apenas uma dezena deles. E todos os processos sobre tal matéria ficarão suspensos em todos os órgãos judiciais, o que acarretará economia formidável de mão de obra e orçamento a serem empregados, pelo Poder Judiciário, na solução das demais causas, com qualidade e em menos tempo.

A decisão sobre a admissão do recurso especial ou extraordinário deve buscar ao máximo facilitar o acesso à Justiça e prestigiar a “solução integral do mérito” (CPC, artigo 4º). Nesse passo, cite-se novamente a exposição de motivos do CPC/2015:

Com objetivo semelhante, permite-se no novo CPC que os Tribunais Superiores apreciem o mérito de alguns recursos que veiculam questões relevantes, cuja solução é necessária para o aprimoramento do Direito, ainda que não estejam preenchidos requisitos de admissibilidade considerados menos importantes. Trata-se de regra afeiçoada à processualística contemporânea, que privilegia o conteúdo em detrimento da forma, em consonância com o princípio da instrumentalidade.

E nas palavras do ministro presidente do STJ, também na entrevista supracitada:

“A substância deve se sobrepor à forma” (…). “Questões menores não devem impedir o conhecimento de recurso especial quando a tese é relevante. Para a sociedade, é importante que o tribunal julgue determinadas causas, porque, ao julgá-las, ele traz pautas de comportamento”.

No mesmo sentido, Didier Júnior:

O art. 4º do CPC consagra o princípio da primazia da decisão de mérito: a decisão de mérito é sempre preferencial a uma decisão de inadmissibilidade. (…) Reafirmando ainda mais esse princípio, o §3º do art. 1.029 do CPC prevê uma regra específica para os recursos extraordinários: “§3º O Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave. (…) Mas o §3 º do art. 1.029 do CPC inova, em relação ao 932, parágrafo único, ao permitir que o tribunal [superior] desconsidere o defeito. (…) A regra atribui esses poderes apenas aos tribunais superiores. O Presidente ou Vice-Presidente do tribunal recorrido não pode aplicar o dispositivo, ao fazer o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário ou especial[10].

Ainda que o artigo 1.029, parágrafo 3º não se aplique ao juízo de admissibilidade no tribunal de origem, a mesma regra impõe, como consequência lógica, que, ao proceder ao juízo de admissibilidade, o presidente ou o vice-presidente considere que o tribunal superior é autorizado a relevar vícios processuais em razão da importância da matéria e, por isso e em prol da primazia do mérito recursal, convém não ser mais realista que o rei, sendo preferível submeter os recursos repetitivos ao regime do artigo 1.036 do Código de Processo Civil.

De todo o exposto, vê-se que o instituto previsto no artigo 543-C do código de 1973, nele introduzido pela Lei 11.672/2008, veio a ser alterado e “radicalizado” pelo disposto no artigo 1.036 da Lei 13.105/2015, uma peça na engrenagem de um novel sistema processual dotado de instrumentos que visam criar condições de fato para possibilitar a razoável duração dos processos e, ao mesmo tempo, mais qualidade à prestação jurisdicional. Faz-se mister conferir a maior efetividade possível a essa tão importante disposição do novo código.


[1] https://www.conjur.com.br/2019-mar-09/entrevista-joao-otavio-noronha-presidente-stj (acesso em 30/5/2019).
[2] Exemplo típico: considerar-se intempestivo o recurso interposto antes do início do prazo para recorrer, “entendimento” expresso na Súmula 418 do STJ e Súmula 434, I, do TST, ambas canceladas diante do que veio a dispor o artigo 218 do CPC de 2015.
[3] O uso de terminators de recursos foi chamado de jurisprudência defensiva robotizada por Lenio Streck. In: https://www.conjur.com.br/2019-mai-30/senso-incomum-venham-logo-intelectuais-ensinarem-aos-especialistas (acesso em 30/5/2019).
[4] A Súmula 7 tem o perigoso potencial de servir de aparente fundamentação de inadmissibilidade em todas as situações em que a matéria de direito se relacione com os fatos do processo, o que, pela natureza do direito subjetivo (filho do casamento do fato com a norma), tende a ocorrer em 100% das decisões objeto de recurso especial.
[5] Esse traço cultural pode ser a principal causa da não observância do dever de fundamentação há muito previsto na Constituição (artigo 93, IX, da CF de 1988): o homem cordial é refratário a deveres, especialmente um dever que exija a exposição de motivos objetivos para suas decisões. É fácil prever, portanto, o quão difícil será convencer o juiz brasileiro a decidir não de acordo com a interpretação própria, mas sim, à semelhança do common law, seguindo precedentes.
[6] Marcante nesse sentido é a previsão, no caput do artigo 37 da Constituição de 1988, dos princípios da moralidade administrativa e da eficiência. O artigo 8º do novo CPC também fornece exemplo da preocupação de tornar expresso em lei o conteúdo de normas jurídicas já existentes implícita ou expressamente no ordenamento jurídico, inclusive afirmando que o juiz deve seguir a legalidade (!).
[7] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2014, p. 212.
[8] No Regimento Interno do STF, a matéria é disciplinada nos artigos 328 e 328-A como parte da regulamentação da repercussão geral e ainda com referência ao CPC de 1973. O Regimento Interno do STJ disciplina detalhadamente essa temática nos artigos 256 a 256-X e 257 a 257-E.
[9] O Relatório do Banco Nacional de Dados de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios, do Conselho Nacional de Justiça, de 2018, denota pequena quantidade de processos sobrestados em razão do disposto da seleção de recursos representativos de controvérsia pelos tribunais de segundo grau. De 2.133.045 feitos sobrestados, apenas 45.657 são computados como representativos de controvérsia enviados aos tribunais superiores pelos tribunais locais (p. 24.).
[10] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 14. Ed. Salvador: Juspodium, v. 3, p. 368.

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