Opinião

Risco de ingovernabilidade com o novo rito de medidas provisórias

Autor

  • Antônio Augusto de Queiroz

    é jornalista analista e consultor político mestre em Políticas Públicas e Governo pela FGV ex-diretor de documentação do Diap autor dos livros Por Dentro do Governo: como Funciona a Máquina Pública e RIG em Três Dimensões: Trabalho Parlamentar Defesa de Interesse perante os Poderes Públicos e Análise Política e de Conjuntura e sócio-diretor das empresas Consillium Soluções Institucionais e Governamentais e Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.

11 de junho de 2019, 14h40

O Congresso Nacional, por intermédio da PEC 91/2019, propõe mais uma modificação no rito de tramitação de medidas provisórias, de que trata o artigo 62 da Constituição Federal, desta feita para dividir o tempo de tramitação entre as Casas do Congresso, uma reclamação recorrente do Senado, que muitas vezes recebe os textos às vésperas de expirar ou de caducar.

A divisão do tempo de tramitação, destinando 40 dias para a Comissão Especial analisar a admissibilidade, a constitucionalidade e o mérito, 40 dias para a Câmara deliberar em Plenário sobre o texto aprovado na Comissão Especial, 30 dias para o Senado e mais 10 dias para a Câmara, caso o texto seja modificado pelo Senado, parece justo e adequado.

Entretanto, há um aspecto na PEC de regulamentação do rito de tramitação das medidas provisórias que, se não for alterado na apreciação da matéria no Senado, poderá trazer insegurança jurídica e até ingovernabilidade. Trata-se da regra que determina a caducidade, sem nem possibilidade de recurso, do conteúdo da medida provisória se a Comissão Especial não se manifestar nos 40 dias a ela destinados. Isso é uma temeridade, porque basta que o relator — por discordar do texto, por interesse econômico, por ressentimento ou qualquer outra razão — sente em cima do texto para que passe os 40 dias sem deliberação, levando à perda de validade da MP.

Note-se que esse prazo é maior que o que o constituinte de 1988 fixou para a validade de uma medida provisória: 30 dias. Contudo, embora a doutrina constitucional entendesse estar implícita a vedação de reedição, como foi reconhecido pela Corte Constitucional italiana, de onde veio a inspiração para as medidas provisórias, na prática, desde 1989 começou a ser adotada a prática da reedição, o que levou ao paroxismo de que o governo sequer tinha interesse em que elas fossem apreciadas, pois podia reeditá-las indefinidamente, o que só foi vedado formalmente em 2001, com a Emenda 32. Essa emenda, porém, sabedora do irrealismo de fixar um prazo tão curto, ampliou o prazo de vigência da MP para 120 dias.

O Senado precisa rever esse aspecto do texto para não interromper a vigência da MP em 40 dias após sua publicação, ou que, ao menos, seja permitido recurso para que seja transferido automaticamente ao Plenário a responsabilidade pelo exame dos aspectos de responsabilidade da comissão, caso ela não o faça dentro do prazo, ou outra solução que não coloque em risco a vigência de uma MP após 40 dias de sua edição.

Para compreender a importância deste ponto, é fundamental que analisemos o que é e para que servem as medidas provisórias, independentemente do uso que façam delas os governantes de plantão. É necessário agir com serenidade e razoabilidade e reconhecer que se trata de um instrumento fundamental para resolver situações emergenciais ou mesmo minimizar riscos de desfiguração de políticas públicas propostas pelo Poder Executivo. Se o uso for inadequado, que o Congresso modifique ou rejeite dentro do prazo de 120 dias de sua vigência, mas não pode criar para si, como está fazendo neste caso, uma tarefa ou responsabilidade — apreciar em 40 dias na comissão — que terá dificuldades para cumprir.

As medidas provisórias têm-se revelado instrumento útil para atender a quatro tipos de necessidade: a) alterar a legislação tributária, seja instituindo novos tributos ou contribuições, concedendo benefícios fiscais, alterando alíquotas ou outras medidas que requeiram efeitos imediatos; b) autorizar a realização de despesas urgentes, inadiáveis e imprevistas, por meio de créditos extraordinários; c) resolver problemas administrativos que não podem aguardar o trâmite normal de um projeto de lei, tais como criação de cargos, aumentos de remunerações de servidores ou alterações nas estruturas de órgãos e entidades; e d) veicular matérias que, por seu conteúdo polêmico ou capaz de atrair a atuação de grupos de pressão, não possa aguardar a tramitação ordinária, sob pena de modificações que as descaracterizem ou alterem o seu escopo e abrangência.

Entretanto, desde que o instituto da medida provisória, um recurso típico do parlamentarismo, foi adotado pela Constituição de 1988 e entrou em vigor, ele vem sendo utilizado do modo abusivo pelos presidentes brasileiros, tanto em relação à quantidade quanto ao conteúdo, de Sarney a Bolsonaro.

Teoricamente, a medida provisória, que tem força de lei e vigência imediata, só poderia ser empregada em situações excepcionais, caracterizadas pela urgência e relevância. Entretanto, todos os presidentes, de Sarney a Bolsonaro, passando por Collor, Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer, extrapolaram os limites constitucionais.

É verdade que as MPs não servem apenas para solucionar problemas urgentes e relevantes do governo que requerem lei em sentido material, mas também, em certa medida, para limitar ou reduzir a capacidade do Congresso de modificar o conteúdo da matéria, uma vez que as MPs recebem emendas apenas durante seis dias, são apreciadas por uma Comissão Especial, e não pelas comissões permanentes de cada Casa, e porque, ao obstruírem a pauta de votações a partir do 45º dia quando lida no Plenário, combinado com sua validade limitada a 120 dias desde a publicação, obrigam governo e oposição a construírem acordos com maior rapidez, sob pena da paralisia do processo legislativo ou da perda de eficácia da matéria.

O uso de medidas provisórias é tido, pelo próprio Congresso, como excessivo e injustificado, razão pela qual têm sido, sucessivamente, desde 2001, discutidas modificações nas regras para sua utilização. Com a EC 32, além da limitação temática — como a proibição do emprego desse instrumento em matéria de nacionalidade, cidadania, direito político, Direito Eleitoral, partido político, Direito Penal, processual penal e processual civil, confisco de poupança, temas reservados à lei complementar e orçamentário, exceto a abertura de crédito extraordinário etc. —, as MPs passaram a ter validade de até 120 dias, vedada expressamente a reedição, que era prática rotineira no período anterior.

Apesar da justa reclamação dos parlamentares sobre o uso abusivo de MPs, que são editadas diuturnamente sem o cumprimento dos requisitos de urgência e relevância, a PEC em tramitação não amplia as restrições sobre os temas que podem ser veiculados por MP nem modifica os critérios para sua edição, apenas reitera a proibição de reedição de MP no mesmo ano em que caduque ou tenha sido rejeitada e divide o tempo entre as Casas do Congresso. Ela explicita, ainda, que a MPV ou o seu projeto de lei de conversão não conterão matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão, acolhendo a jurisprudência do STF e a orientação já fixada em questões de ordem que visam impedir a prática dos “jabutis”, que tantos males já causou ao país.

Atualmente, as medidas provisórias, com força de lei, são editadas em situações de urgência e relevância e têm validade por 60 dias, prorrogáveis uma única vez por mais 60. Elas perdem a eficácia se não houver deliberação no prazo de 120 dias, excluídos desse cômputo os períodos de recesso, nos Plenários da Câmara e do Senado, sendo condição para sua apreciação nos Plenários das Casas a deliberação prévia na Comissão Especial. As comissões especiais, formadas por deputados e senadores, não têm prazo para deliberar, o que está sendo proposto na PEC de regulamentação do rito de MPs, porém de modo terminativo, de tal sorte que, se não deliberar no prazo de 40 dias, a MP perde sua validade.

Esta é a reflexão que deixo para o Congresso Nacional, em especial ao Senado Federal, que tem a responsabilidade de votar a PEC 91/2019. Se optar por manter a caducidade aos 40 dias, caso a Comissão Especial não delibere nesse prazo, estará criando um problema para o Congresso e ampliando a insegurança jurídica, além de ampliar o risco de ingovernabilidade. Imagine uma MP sobre majoração de imposto ou extinção de benefício fiscal, que deve observar o princípio da anterioridade, ou seja, deve ser aprovada num ano para vigorar no seguinte, e o relator em conluio com os setores afetados resolve sentar em cima e deixa passar os 40 dias sem deliberar? Isso pode inviabilizar políticas públicas e aprofundar a crise fiscal. Não é prudente manter esse dispositivo.

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