Opinião

Futebol e arte: o mecanismo de solidariedade e o direito de sequência

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9 de junho de 2019, 6h24

Algumas semanas atrás foi anunciada a venda do jogador brasileiro Eder Militão para o poderoso Real Madri. O Porto, clube português detentor dos direitos sobre o jogador, receberá 50 milhões de euros pela transferência.

Mas outro clube, e aqui do Brasil, também comemora a negociação.

Isto porque o Regulamento de Transferência de Atletas da Fifa prevê, em seu artigo 21, o mecanismo de solidariedade, segundo o qual 5% do valor de cada transferência internacional deve ser reservado para recompensar e incentivar os clubes que participaram da formação do atleta.

No Brasil, a Lei Pelé (Lei 9.615/1998) também dispõe sobre o mecanismo de solidariedade em seu artigo 29-A:

“Sempre que ocorrer transferência nacional, definitiva ou temporária, de atleta profissional, até 5% (cinco por cento) do valor pago pela nova entidade de prática desportiva serão obrigatoriamente distribuídos entre as entidades de práticas desportivas que contribuíram para a formação do atleta”.

Os 5% devidos pela formação do jogador pode ser dividido por mais de um clube, já que a partilha é feita da seguinte maneira: 1% para cada ano de formação do atleta, dos 14 aos 17 anos de idade; e 0,5% para cada ano de formação do atleta, dos 18 aos 19 anos de idade. Assim, é possível que um atleta tenha vários clubes formadores, dentro do conceito legal.

No caso envolvendo o zagueiro Eder Militão, o São Paulo Futebol Clube foi responsável pela formação do atleta dos 14 aos 20 anos e poderá receber um boa bolada.

Coincidentemente, na mesma semana, outra grande negociação internacional também foi divulgada, mas desta vez sacudindo o setor de arte brasileira.

Tratava-se da venda de uma pintura de autoria de Tarsila do Amaral, vendida ao MoMA por estimados US$ 20 milhões de dólares, o maior valor já pago por uma obra brasileira.

Qual a relação da Lei de Direitos de Autor (Lei 9.610/98) com a Lei Pelé (Lei 9.615/98)? Os dois casos possuem muitas ligações entre si. Isto porque na arte também há um direito similar ao mecanismo de solidariedade que existe no futebol.

O direito de sequência, como é conhecido em Portugal e no Brasil — para onde foi exportado em 1973, poucos anos após ser implantado no país europeu (1966) —, destina pelo menos 5% da valorização nas revendas das obras de arte ao artista ou seus sucessores (durante o prazo de 70 anos, contado após a morte do artista). Ele está regulamentado no artigo 38 da Lei do Direito Autoral.

Entre os seus fundamentos na doutrina portuguesa, é reconhecido que:

“Na origem, a ideia era a de beneficiar o artista com as ulteriores valorizações da obra, permitindo-lhe ser compensado de um posterior reconhecimento do valor do seu trabalho. Vendida a obra muito cedo, no início da carreira, ou, de qualquer modo, antes de obtido o prestígio que mais tarde o artista viria a granjear, o direito de sequência satisfazia o propósito de lhe atribuir algum do valor gerado com a criação intelectual, na impossibilidade de auferir por inteiro do valor da transacção, por já haver alienado a obra anteriormente” (in O Direito de Sequência – José Alberto Vieira, Revista de Direito Intelectual nº 1, 1995, da Adpi – Associação Portuguesa de Direito Intelectual).

Atualmente, há uma linha mais ampla de fundamentação de sua existência e manutenção, calcada em princípios de repartição de renda, equidade, incentivo à criação artística e justiça, além da própria proteção ao autor.

Longe de ser visto como um privilégio, o direito de sequência, ou direito de seguir, expressão que parece ser mais adequada, é aquele que garante ao artista a prerrogativa de seguir suas criações. Equidade pura.

Afinal, parece equitativo fazer o autor participar dos frutos de sua obra e associá-lo ao enriquecimento que ela promove ao longo dos anos, a cada vez que ela muda de dono.

Isto porque a obra de arte é uma extensão da personalidade do indivíduo, sujeito-criador. Sem a indissociável vinculação ao autor, a obra perde a maior parte do seu valor econômico, não sendo reconhecida pelo mercado como valiosa.

Um quadro pintado por Picasso certamente terá pouco valor se não puder ser atribuído a ele.

Ou seja, o próprio mercado, ao estabelecer seus cânones que compõem a formação do preço das obras de arte, não só prestigia como também impõe a existência da autoria para que uma obra tenha valor.

Nada mais lógico que uma parte da riqueza produzida pela criação seja destinada ao criador.

São muitas as expressões para denominar este importante direito da arte: droit de suite (no Direito francês), derecho de participación (no Direito espanhol e da América Latina), diritto di siguito (no Direito italiano), artist’s resale right e resale royalty right (no Direito inglês), resale right (nos Estados Unidos) e folgerechte (no Direito alemão).

Em levantamento feito em 2015 pelo professor Sam Ricketson, da Universidade de Melbourne, foram listados 80 países aplicando o direito de sequência, embora alguns dos maiores mercados ainda não reconheçam o direito, como China, Estado Unidos, Japão e Suíça.

Quase todas as discussões envolvendo o direito de sequência atêm-se apenas aos seus aspectos e consequências patrimoniais, olvidando e contrapondo-se ao seu caráter mais relevante: o moral.

Combatido na maioria das vezes de forma velada — mas com alguma eficiência, o direito de sequência é ainda um assunto evitado.

Nota-se que o grupo de detratores do direito de sequência é quase que exclusivamente formado por aqueles obrigados ao pagamento do direito (negociantes e colecionadores-investidores), o que por si só já enfraquece a argumentação, diante do patente conflito com os próprios interesses econômicos, os quais normalmente se sobrepujam aos demais.

Do outro lado do balcão — o qual nem mesmo deveria existir, uma vez que as convergências de interesses são muito superiores à pequena divergência econômica — estão os artistas e suas famílias, que geralmente serão os sucessores na titularidade dos direitos autorais. 

Este grupo, por conta das idiossincrasias da profissão de artista, historicamente nunca foi organizado.

O trabalho solitário em um mercado muito escasso e disputado é uma característica presente desde os primórdios, favorecendo o isolamento e a dispersão. Não há até agora uma classe artística ativa para a defesa dos seus próprios direitos, infelizmente.

Porém, enquanto isso não acontece, um movimento incipiente iniciado há poucos anos mostra os primeiros resultados e os possíveis avanços num futuro próximo.

Em 2013, foi criado o Instituto Nacional de Propriedade Artística Visual (Inpav), a primeira entidade com atuação e ações concretas, focada na proteção, defesa e conscientização do direito de sequência no Brasil.

Em 2018, o Inpav consolidou um prestigiado quadro de associados e propôs um acordo às principais casas de leilão do país, representando todos os titulares de alguns dos mais importantes artistas brasileiros (Candido Portinari, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Tomie Ohtake, José Pancetti, Jorge Guinle Filho, Milton Dacosta, Maria Leontina, Oswaldo Goeldi e Otto Stupakkoff).

Algumas das 12 casas de leilão inicialmente notificadas já aceitaram o acordo proposto e fizeram os primeiros repasses neste início de 2019, inaugurando uma nova era quanto à distribuição de direitos autorais para artistas e seus sucessores.

Outra iniciativa, esta voltada exclusivamente para os artista vivos, é a certificARTE, empresa de registro de obras de arte e seus proprietários, que utilizando tecnologia blockchain se dedica exclusivamente para fins de direitos autorais (autoria, autenticidade, propriedade, arrecadação e distribuição de direitos de sequência).

O serviço, inédito no Brasil e já validado por mais de cem artistas e algumas das principais galerias do país, foi apresentado em 2018 na 1ª Conferência de Direito e Arte, que aconteceu em João Pessoa (PB), e está aguardando ajustes finais na plataforma digital, com previsão de lançamento ainda nos próximos seis meses.

Ambas inciativas são também um aceno de paz aos agentes do mercado.

As soluções que estão sendo construídas decorrem de um longo diálogo com os atores do mercado e mostram-se inovadoras ao preencher as supostas lacunas da lei preterindo onerosas disputas judiciais. E tudo isso antes dos aperfeiçoamentos legislativos e antecipando-se à jurisprudência que está se formando.

Vale destacar que, em paralelo a toda essa movimentação, corre na 4ª Vara Cível de São Paulo o maior processo de cobrança de direito de sequência de todos os tempos, movido por João Candido Portinari contra a Bolsa de Arte e seus leiloeiros. Um duelo de titãs.

Ao se evitar a desnecessária judicialização da questão, é gerada uma economia imediata equivalente a pelo menos 20% dos valores em disputa, custo este que seria suportado pelo próprio mercado (artistas, herdeiros, colecionadores, galeristas e marchands).

Economizando despesas com advogados, peritos, processos, custas e honorários de sucumbência, o dinheiro permanece nas mãos dos agentes do sistema, no “caixa” do próprio mercado, podendo ser utilizado nas mais diversas aplicações, como produção de obras, exposições, expansão e manutenção de acervos e coleções públicas e particulares etc.

É notório que a redistribuição destes ínfimos 5% (1/20 da valorização das obras) propiciará benefícios para todos os envolvidos. Será um novo oxigênio, trazendo maior confiança ao tão injustamente atacado mercado de arte.

O acordo conduzido pelo Inpav é o primeiro de uma série que certamente virá, envolvendo os demais agentes do mercado.

Já há um início de conversa com a Associação das Galerias de Arte do Brasil (Agab), que representa as principais galerias de arte do mercado secundário (revendedores), provocada por um dos leiloeiros notificados, que também possui uma galeria — prática esta cada vez mais comum e lógica.

Já a Associação Brasileira de Arte Contemporânea (Abact), por congregar galerias de mercado primário, às quais o direito de sequência não se aplica (já que não incide na primeira venda), acompanha a discussão a distância, enquanto boa parte das importantes galerias associadas assiste a tudo apoiando a causa em favor dos artistas, ainda que discretamente.

No caso da tela de Tarsila do Amaral vendida ao MoMA, os valores devidos à família da artista podem chegar a US$ 1 milhão. Seria o maior valor já pago em direitos autorais no Brasil.

Veja-se que neste caso são conhecidos todos os elementos formadores da “hipótese de incidência” do direito de sequência. Sabe-se quem vendeu, quem comprou, quem intermediou, quando e por quanto. É de fácil apuração.

Além disso, o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras é garantido constitucionalmente aos criadores, nos termos da alínea “b” do inciso XXVIII do artigo 5º da Constituição Federal.

Quiçá seja este episódio um marco emblemático na mudança de cultura do mercado nacional, demonstrando sua maturidade tão alardeada nos últimos tempos.

Sobre a tela recentemente vendida ao MoMA, um aspecto nem sempre lembrado é o incansável trabalho de bastidores dos titulares (foram sete anos de tratativas), liderados por Tarsila do Amaral (sobrinha-neta da artista que tem o mesmo nome da tia), para que a exposição de 2017 no MoMA acontecesse. Fato este determinante para o interesse do museu na aquisição da obra negociada e na fixação do preço recorde.

Nada mais justo que o dinheiro percorra esse ciclo virtuoso, retornando uma pequena parcela para a família, que tanto zela e trabalha pela preservação e valorização da obra da artista.

Diante de tantas frentes, finalmente vislumbra-se de forma concreta um início da aplicação e respeito ao direito de sequência no Brasil, quase 50 anos após a criação da lei. Uma vergonha que ainda incomodava este mercado que se considera tão distinto, honrado e sofisticado, como realmente o é, o mercado de arte.

Superada esta mácula, é certo que o sistema e o mercado ganham mais força e maior confiança, não só para aqueles que já o compõem, mas principalmente para todos os outros que estão de fora, desconfiados, mas muito tentados a entrar neste universo realmente encantador que é o mundo da arte.

Estudos recentes, conduzidos pelas professoras e pesquisadoras Joëlle Farchy, da Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne, e Kathryn Graddy, da Brandeis University, Boston, e endossado pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual, concluíram que a prática do direito de sequência traz muitos benefícios face ao pequeno desconto que promove sobre o lucro dos vendedores, valendo destacar a conclusão taxativa, que desmistifica por completo os poucos argumentos contrários:

“Não há evidências de efeitos negativos sobre o preço ou competitividade dos mercados onde houve o reconhecimento do direito de sequência”.

No Reino Unido, segundo maior mercado de arte do mundo, onde foi recém-implementado (2006 para artistas e 2012 para sucessores), os números do estudo mostram que:

  • o mercado continuou a crescer;
  • preços das obras subiram significativamente;
  • número de galerias quintuplicou;
  • de 2006 a 2007, o mercado inglês cresceu 7,8% a mais que o americano (onde não há o direito de sequência);
  • foram arrecadados mais de 50 milhões de libras esterlinas.

Na França os efeitos positivos não são diferentes:

  • em 2003, foram arrecadados mais de 12 milhões de euros;
  • foram beneficiados 1.938 artistas, 45% ainda vivos;
  • custo de gestão de apenas 0,027% do volume de vendas.

Também cumpre citar a experiência australiana, cujo modesto mercado apresenta interessantes indicativos:

  • US$ 5,6 milhões de dólares arrecadados;
  • 15,7 mil vendas geradoras de direito de sequência;
  • 1,5 mil artistas beneficiados;
  • 67% são aborígenes e receberam 38% dos pagamentos.

Por fim, merecem referência as conclusões sobre o direito de sequência contidas no Guia do Artista Visual (págs. 120-121), louvável e consistente documento produzido pelo Ministério da Cultura e recentemente (dezembro de 2018) disponibilizado ao público.

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