Opinião

Aspectos controvertidos sobre a relativização da coisa julgada no CPC

Autor

  • Augusto César Monteiro Filho

    é procurador federal em São Paulo e mestrando em Direito pela PUC-SP. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP em Processo Civil e em Direito e Economia pelas Escolas da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e da Advocacia-Geral da União e em Jurisdição Constitucional e Tutela dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa (Itália).

2 de junho de 2019, 7h21

Objetiva o presente artigo empreender uma análise sobre o instituto da relativização da coisa julgada, sob o enfoque de sua (in)admissibilidade constitucional, com o posterior enfrentamento de seus reflexos no campo processual civil, princípios regentes e condicionantes.

A problematização, como sensível, terá como pedra de toque o princípio da segurança jurídica e seu confronto com aqueloutros da proporcionalidade e razoabilidade, no mais das vezes invocados em sede jurisprudencial como alicerces autorizadores da relativização da coisa julgada, em sobrevindo decisão, pelo STF — guardião da Constituição Federal —, conflitante com a coisa julgada anteriormente proferida.

A doutrina processual civil brasileira, ao tempo em que atribui à coisa julgada sua indisputável importância jurídico-política como atributo marcante da jurisdição, reconhece, por outro vértice, a dificuldade em conceituar o instituto de maneira uníssona.

Demonstração eloquente desta dificuldade foi bem sintetizada pelo mestre Barbosa Moreira[1]:

Impossível pretender, na problemática da coisa julgada, uma convergência de orientações, se não há sequer unanimidade de vistas quanto à delimitação conceptual do objeto pesquisado. Como esperar que se harmonizem as vozes, antes de ter-se a certeza de que todas se referem a uma única e definida realidade?

Consigna, outrossim, que a coisa julgada ultrapassa os limites do interesse particular das partes e assume contorno em favor da própria existência do Estado:

O interesse na preservação da res iudicata ultrapassa, contudo, o círculo das pessoas diretamente envolvidas. A estabilidade das decisões é condição essencial para que possam os jurisdicionados confiar na seriedade e na eficiência do funcionamento da máquina judicial. Todos precisam saber que, se um dia houverem de recorrer a ela, seu pronunciamento terá algo mais que o fugidio perfil das nuvens. Sem essa confiança, crescerá fatalmente nos que se julguem lesados a tentação de reagir por seus próprios meios, à margem dos canais oficiais. Escusado sublinhar o dano que isso causará à tranquilidade social[2].

Malgrado a dificuldade conceitual aquilatada pela doutrina, Barbosa Moreira, uma vez mais, lucidamente, pondera: “A coisa julgada é instituto de função essencialmente prática, que existe para assegurar a estabilidade à tutela jurisdicional dispensada pelo Estado”[3].

A coisa julgada afigura-se um dos temas mais controversos do processo civil. Dessarte, a possibilidade de sua relativização não poderia se revelar de fácil e uníssono trato, como, de fato, não sucede.

O novo CPC não faz menção expressa ao tema, relevando pontuar, contudo, uma tendência, a nosso sentir, de prestígio ao princípio da segurança jurídica, de que são corolários a previsibilidade e a calculabilidade da atividade jurisdicional, inclusive mercê de outra nítida valorização trazida pela novel legislação civil adjetiva, qual seja, a dos precedentes judiciais.

Indisputavelmente, a flexibilização da coisa julgada sem um mínimo de objetivação e definição dos mecanismos e instrumentos para sua arguição e acolhimento ensejava, como sensível, um sentimento de insegurança jurídica e descrença na definitividade das decisões jurisdicionais, como externaram, com precisão técnica, inúmeros processualistas e constitucionalistas de escol.

Outros autores, não menos expoentes, defendem a relativização, baseados em premissas, em grande parte, arraigadas a conceitos jurídicos indeterminados, como, exempli gratia, o são justiça da decisão, dignidade humana, justa indenização, moralidade, razoabilidade, proporcionalidade, prevalência da verdade sobre a certeza etc.

Cândido Rangel Dinamarco, ao tratar da relativização da coisa julgada material, ressalta seu caráter constitucional. Confira-se:

A coisa julgada material não é instituto confinado ao direito processual. Ela tem acima de tudo o significado político-institucional de assegurar a firmeza das situações jurídicas, tanto que erigida em garantia constitucional. Uma vez consumada, reputa-se consolidada no presente e para o futuro a situação jurídico-material das partes, relativa ao objeto do julgamento e às razões que uma delas tivesse para sustentar ou pretender alguma outra situação. Toda possível dúvida está definitivamente dissipada, quanto ao modo como aqueles sujeitos se relacionam juridicamente na vida comum, ou quanto à pertinência de bens a um deles. As normas e técnicas do processo limitam-se a reger os modos como a coisa julgada se produz e os instrumentos pelos quais é protegida a estabilidade dessas relações — mas a função dessas normas e técnicas não vai além disso[4].

Sucintamente, se nos apresenta o seguinte cenário:

Alguns dos mais renomados doutrinadores se posicionaram a respeito e, para acalorar ainda mais o debate, com posições antagônicas. Para os defensores da impossibilidade de relativização da coisa julgada, os principais argumentos têm pano de fundo no princípio da segurança jurídica e apontam para a necessidade de que a atuação do Judiciário tenha por objetivo alcançar “um justo possível”, e não a utópica, subjetiva e variável definição de justo e injusto, a qual levaria à eternização das incertezas. Sob esse enfoque, pelas lições de Nelson Nery Junior, a relativização da coisa julgada seria medida incompatível com o Estado Democrático de Direito, premissa de regimes totalitários, de tal sorte que situações excepcionais não podem servir de escopo para a criação de tamanha insegurança.

Por outro lado, aos que entendem pela possibilidade de relativização da coisa julgada, tais como Dinamarco e Teresa Arruda Alvim Wambier[5], a premissa é outra: a efetividade e a justiça das decisões judiciais. Assim e ainda que, em alguma medida, a segurança jurídica seja afetada, a relativização da coisa julgada, se adequadamente utilizada — em situações excepcionais, propicia harmonia à ordem constitucional-processual, justiça social, e, ainda, leva à prevalência da moralidade e da legalidade sobre a coisa julgada, à medida que se encontra a “decisão justa”, o mais nobre dos objetivos do sistema jurídico processual[6].

O novo CPC lidou com a questão da revisão da sentença inconstitucional autorizando o manejo da ação rescisória lastreada no inciso V do artigo 966, mitigando o rigor do verbete sumular 343 do STF e mediante a previsão do parágrafo 12 do artigo 525, que trata da impugnação ao cumprimento de sentença, e do parágrafo 5º do artigo 535, no tocante ao cumprimento de sentença contra a Fazenda Pública.

Nessa linha de raciocínio, a previsão pelo CPC da ação rescisória como instrumento vocacionado a desconstituir o título judicial transitado em julgado, apoiado em norma declarada posteriormente inconstitucional pelo STF, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição Federal, em controle de constitucionalidade concentrado ou difuso, constitui indício de mitigação à relativização da coisa julgada, evitando a necessidade de revisão do julgado alegadamente inconstitucional sob qualquer fundamento ou por qualquer meio inominado, iniciativa que, estreme de dúvidas, revela-se louvável sob o ponto de vista de prestígio à segurança jurídica.

Nessa quadra, o ponto distintivo para a utilização da via da impugnação ao cumprimento de sentença (e não mais de ação de embargos à execução), tendente à alegação de inexigibilidade do título executivo judicial, reside na data da decisão do STF que houver pronunciado a inconstitucionalidade da norma em que alicerçado o título: se anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda, caberá a impugnação; se a decisão da corte for superveniente ao trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo decadencial de dois anos será contado a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo STF — inteligência dos artigos 525, parágrafos 14 e 15 e 535, parágrafos 7º e 8º.

O objetivo do legislador, nesse particular, foi o de não possibilitar a flexibilização ad aeternum da coisa julgada inconstitucional, no que coaduna-se com o prestígio constitucional ao valor segurança jurídica.

O termo inicial do prazo decadencial, nesta hipótese, por imperativo de logicidade sistêmica, será contado do trânsito em julgado da decisão paradigma do STF, consoante inteligência do artigo 525, parágrafo 15, do CPC.

Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, em trabalho sobre o tema, assim se pronunciaram[7]:

No caso da rescisória com o objetivo de desconstituir a coisa julgada que se forma sobre sentença proferida com base em lei posteriormente tida como inconstitucional em ação declaratória de inconstitucionalidade, o prazo só pode começar a contar a partir do julgamento da ação declaratória de inconstitucionalidade.

A questão atinente ao termo inicial do prazo para manejo da ação rescisória, em sobrevindo ao título judicial transitado em julgado declaração, pelo STF, em sede de controle concentrado ou difuso, da inconstitucionalidade da norma em que lastreada a decisão, certamente será objeto de intensas disputas e de relevante dissenso jurisprudencial.

Parece mesmo intuitivo que, uma vez mais, surgirão vozes apegadas ao princípio da segurança jurídica a inquinar de inconstitucional a fixação do termo a quo do prazo decadencial para ajuizamento da rescisória como acima referido e contemplado pelos parágrafos 15 e 8º dos artigos 525 e 535, respectivamente, preferindo o entendimento, mais garantista, de rescindibilidade ou anulabilidade da decisão observados as formas e prazos legais, conforme o caso.

Assim, na hipótese de rescindibilidade, preferirá, certamente, esta corrente mais garantista, que o termo a quo do prazo para o manejo da ação desconstitutiva seja o trânsito em julgado do decisum rescindendo.

Esse raciocínio foi encampado por voto proferido pelo ministro Celso de Mello, relator no RE 592.912, 2ª Turma, DJ de 22/11/12:

Ocorrendo tal situação [trânsito em julgado de decisão fundada em norma posteriormente declarada inconstitucional pelo STF], a sentença de mérito tornada irrecorrível em face do trânsito em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de uma específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória), desde que utilizada, pelo interessado, no prazo decadencial definido em lei, pois, esgotado referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, que se revela, a partir de então, insuscetível de modificação ulterior, ainda que haja sobrevindo julgamento do Supremo Tribunal Federal declaratório de inconstitucionalidade da própria lei em que baseado o título judicial exequendo.

Em reforço argumentativo, nessa ordem de ideias, o termo inicial do prazo decadencial para manejo da rescisória deveria ser o do trânsito em julgado da decisão rescindenda, e não da decisão do STF que vier a declarar a inconstitucionalidade da norma em que se funda o título judicial acobertado pela eficácia preclusiva da coisa julgada. Proferida essa quando já exaurido o prazo para rescisória, a decisão, ainda que inconstitucional, deveria prevalecer, consoante preconizam Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, para quem:

O risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de instaurar-se a insegurança geral com a relativização (‘rectius’: desconsideração) da coisa julgada[8].

Ainda, em tese, o dispositivo abre ensejo para que o ajuizamento da ação rescisória seja ad infinitum, pois define um termo a quo — trânsito em julgado da decisão do STF, sem indicar o termo ad quem — como faz o artigo 975.

O artigo 975, parágrafo 2º dispõe que, se fundada a ação rescisória no inciso VII do artigo 966, o termo inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o prazo máximo de cinco anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.

Numa interpretação sistemática do artigo 525, parágrafo 15 com o artigo 975, parágrafo 2º, pode-se concluir que o prazo para o ajuizamento da rescisória previsto no primeiro dispositivo deve ajustar-se ao limite temporal de cinco anos, contado o trânsito em julgado da decisão que constitui título executivo, previsto no segundo dispositivo referido.

Não ousaremos estabelecer, contudo, um entendimento estanque sobre os termos inicial e final do prazo decadencial para que seja aforada a ação desconstitutiva, na medida em que o tema afigura-se por demais espinhoso e, decerto, suscitará acirrados debates doutrinários e jurisprudenciais, até que se estabilize um entendimento sobre a questão.

Em remate, o CPC contempla um mecanismo para a desconstituição da coisa julgada na hipótese de superveniência de declaração de inconstitucionalidade pelo STF — no que avançou, em termos de segurança jurídica, em comparação com o cenário vigente sob a égide do CPC de 1973.

Nessa esteira, a desconsideração da coisa julgada inconstitucional não se dará automaticamente, pelo juiz de primeiro grau, sem maiores formalidades ou por diversos meios, inclusive inominados, havendo, ao menos, a previsão expressa do manejo da ação rescisória, remanescendo, como apontado, dúvidas de relevo relativamente ao prazo para seu exercício.

De toda sorte, parece ganhar espaço a imprescindível segurança jurídica, e, cedê-lo, a ideia de relativização da coisa julgada, a ser tratada, a nosso sentir, como um mal necessário a ser reservado a situações excepcionalíssimas, nas quais a perenização do julgado chegue a causar repugnância no seio social — situação inconcebível em virtude da magnitude da ordem constitucional.


[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Direito processual civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro, 1971, p. 133 apud MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro in Coisa Julgada e segurança jurídica, O Direito de estar em juízo e a coisa julgada: Estudos em homenagem a Thereza Alvim, coordenadores Arlete Inês Aurelli …(et al.). São Paulo, Ed: RT, 2014, p. 903.
[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Considerações sobre a chamada “relativização’ da coisa julgada material. RDCPC, n. 33, São Paulo, 2005, p. 13 (O itálico consta no original).

[3] Idem p. 908.
[4] DINAMARCO. Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material In Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 55/56.p. 29.
[5] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada: hipóteses de relativização. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 13.
[6] TEDESCHI, Thiago Conte Lofredo. A relativização da coisa julgada e seu reflexo no direito à prestação jurisdicional in O Direito de Estar em Juízo e a Coisa Julgada – Estudos em Homenagem a Thereza Alvim, Ed: RT, 2014, São Paulo, p. 1020.
[7] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. Hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003, p. 208.

[8] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 715-717, itens n. 28 e 30, e p. 1.132, item n. 14.

Autores

  • é procurador federal em São Paulo e mestrando em Direito pela PUC-SP. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela PUC-SP, em Processo Civil e em Direito e Economia pelas Escolas da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e da Advocacia-Geral da União e em Jurisdição Constitucional e Tutela dos Direitos Fundamentais pela Universidade de Pisa (Itália).

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