Opinião

Por que disputo a vaga de juiz estadual no Conselho Nacional de Justiça

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  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

29 de julho de 2019, 7h19

Poucos assuntos causaram tanta polêmica nos trabalhos da reforma do Judiciário quanto a criação do Conselho Nacional de Justiça. A ideia de instituir um “controle externo” esteve presente desde os primeiros projetos, mas recebia o repúdio quase generalizado da comunidade judiciária.

Quatorze anos depois, o CNJ apresenta uma significativa ficha de serviços prestados: o fim do nepotismo no Poder Judiciário, a regulamentação nacional dos concursos de ingresso, inclusive com a adoção das cotas raciais, movimentos para combater o grande encarceramento, desde a consolidação dos dados penitenciários à realização de mutirões carcerários da gestão Gilmar Mendes, com destaque para a implantação nacional da audiência de custódia, elaborada pelo ministro Ricardo Lewandowski.

Tudo indica que é justamente neste campo, o mais delicado considerando a tradicional contribuição dos juízes para o grande encarceramento, que a gestão do presidente Dias Toffoli colherá melhores frutos, por intermédio do programa Justiça Presente, que, em parceria com o Pnud, se dedica ao monitoramento do sistema penitenciário.

Pode-se dizer, ainda, que o CNJ minorou a desigualdade na questão disciplinar, em que juízes iniciantes eram punidos com severidade, e desembargadores gozavam de quase imunidade; contribuiu fortemente para a celeridade processual, por intermédio das metas e mecanismos de gestão, até então desconhecidos na Justiça, e vem estabelecendo métodos de uniformização de dados, desvelando o Poder que sempre fora conhecido como um grande arquipélago.

Acompanho a trajetória do CNJ desde antes de seu nascimento. Incluo-me entre aqueles poucos juízes que defendiam a existência de um controle externo, fundado na ideia de que políticas judiciárias poderiam (e deveriam) ser discutidas com a sociedade, considerando que o Judiciário é o único Poder que não é eleito e não se submete, periodicamente, ao crivo popular. Apresentei, em 1999, um esboço de Conselho de Planejamento e Ouvidoria, encaminhado formalmente ao Congresso como sugestão da Associação Juízes para a Democracia.

Estive no CNJ em 2005, na busca da preservação do princípio do juiz natural, esmaecido em diversos tribunais, que ainda concentravam liminares nas mãos de dirigentes da cúpula e mantinham regras de livre designação de juízes, esvaziando a garantia da inamovibilidade, elemento indispensável da independência judicial.

Na mesma tribuna, sustentei a anulação de concurso de ingresso da magistratura em relação ao qual pairavam suspeitas de parcialidade, repetição de provas anteriores e irregular procedimento, ante a ausência dos requisitos impostos em lei, como, por exemplo, a participação da Ordem dos Advogados. Foi o voto divergente do então conselheiro Alexandre de Moraes que, acolhendo nosso pedido, inverteu e consolidou o julgamento, abrindo espaço para outros questionamentos sobre concursos que vieram em seguida.

Voltei pela última vez à sede do órgão em 2017, para receber das mãos da ministra Cármen Lúcia a premiação que representou importante estímulo à assunção do juiz de seu papel de garantidor de direitos: o 1º Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos.

Sinto-me parte do projeto que desaguou na criação do CNJ e, por esse motivo, comprometido com os movimentos de sua consolidação. Tenho afirmado a necessidade de que o conselho abrace a defesa incondicional da independência judicial e, mais do que nunca, a preservação da imparcialidade, pedra de toque da jurisdição. E, afastando-se ainda do paradigma hierárquico que pouco tem a ver com a natureza da jurisdição, também cerre fileiras pela democratização interna do Poder.

A construção de um Judiciário permeável ao controle social, que efetive um verdadeiro serviço ao público e no qual o juiz assuma seu papel garantidor, deve ser objetivo de todos aqueles que intervêm no Poder. Para isso, nem devemos retornar às torres de marfim que nos mantiveram por décadas distantes da sociedade, nem abrir mão dos princípios em busca de popularidade. Nosso poder e nossa legitimidade residem na Constituição, não além dela.

Os juízes julgam de acordo com a lei e com as provas e não podem se subordinar a interesses outros, ainda que a eles instados pela opinião pública. É preciso entender, todavia, que não é o exercício da cidadania, mas justamente o da submissão que os projeta ao canto da sereia da vontade popular.

É no intuito de cumprir compromissos como estes que apresentei meu currículo ao Supremo Tribunal Federal para a indicação ao cargo que representa os juízes estaduais. Ofereço aliar a experiência de três décadas de magistratura, nos diversos ramos de atuação e instâncias do Judiciário (notadamente a jurisdição criminal de primeira instância e o Direito Público no Tribunal de Justiça), com a inquietude cidadã que tem marcado minha história institucional.

Seja na atividade associativa, docente, ou nos artigos com que discuto as questões mais candentes da jurisdição, a preocupação com os rumos do Judiciário é inarredável. Sinto-me compelido, assim, a tomar parte neste processo, especialmente em um momento em que as instituições estão sofrendo os mais perturbadores ataques, e os limites da lei se mostram cada vez menos nítidos.

Só a democracia nos protege do autoritarismo. É hora de fortalecê-la.

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