Segunda Leitura

Nas profissões jurídicas, "virar a mesa" pode esconder uma velada covardia

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

21 de julho de 2019, 10h26

Spacca
O uso popular da expressão “virar a mesa” teve início no campo das práticas desportivas. Assim, na definição mais conservadora, “Virada de mesa, ato ou efeito de virar a mesa, é a atitude antidesportiva de quem, ao estar sendo derrotado num jogo de cartas ou de tabuleiro, mistura propositalmente as cartas ou peças do jogo, impedindo o seu prosseguimento”. [1]

Ocorre que, com o passar do tempo, a expressão passou a ser usada para diversos fins, sempre representando a ideia de uma atitude inesperada, incomum, destinada a mudar o curso natural dos acontecimentos, favorecendo uma ideia ou determinada pessoa.

Nas diversas formas adotadas, o termo entrou na literatura, na música [2], no futebol [3] e até nas disputas das Escolas de Samba [4].

Nas profissões jurídicas, com a tensão existente nas formas de condução de negociações, audiências, julgamentos, as possibilidades, formas e uso de ações que, em última análise, signifiquem “virar a mesa”, tornaram-se mais comuns.

Na maioria absoluta das vezes, quem as pratica dá justificativas que declaram ou insinuam não suportar uma situação que lhes parece justa, chegando ao ato extremo numa inevitável explosão de sentimentos que incluem coragem, bons propósitos ou intolerância com o injusto.

Exemplos.

No dia 24 de junho de 2016, uma advogada de Curitiba, ingressou no 3º Juizado Cível de Curitiba com uma ação em causa própria, contra uma companhia telefônica, cujo título, em letras maiúsculas, era: AÇÃO DE FODA-SE VIVO, NÃO PAGO PORRA NENHUMA E AINDA QUERO UMA INDENIZAÇÃO. [5]

Tal explosão, com ou sem razão, pouco importa, é um autêntico ato de “virar a mesa” na área jurídica, só que da pior forma possível. Ao invés da busca da tutela do Estado Judiciário para a solução de um problema, a “virada de mesa” certamente dificultou-a ainda mais e criou para a subscritora, certamente, um processo administrativo junto ao seu órgão de classe. A companhia telefônica, certamente, gostou muito.

Advogados e agentes do Ministério Público, vendo contrariados seus interesses na produção da prova, na necessidade de aguardar o julgamento de um recurso [6] ou outra coisa qualquer [7], abandonam o Tribunal do Júri, em atitude que aparenta um ato de coragem e de discordância com algo injusto.

Esta forma de “virar a mesa”, que nada mais é do que uma das múltiplas consequências da quebra do respeito à autoridade que tomou conta do Brasil nos últimos 20 anos, é um ato de inúmeras consequências nunca avaliadas no seu conjunto. O inconformismo pode estar baseado em motivo justo.

Todavia, dele resulta a total afronta à dignidade da Justiça, já que todos que ali estão tomam ciência de que ao juiz só resta lamentar e marcar nova audiência. Os preparativos para o julgamento, os 21 jurados que ali compareceram, servidores que se dedicaram aos preparativos, tudo isto, que representa tempo e dinheiro, não é levado em conta. Quanto às vítimas, ao que parece não há maiores preocupações.

Então, o que há de fazer o profissional que se sente injustiçado? Cumprir seu papel no julgamento, registrando em ata seu protesto para, caso o julgamento o desfavoreça, reivindicar a nulidade do ato. Dir-se-á que então o julgamento no júri poderá ter sido inútil. Sim, poderá. Mas este é o risco com menor dano. Adiar depois de movimentar dezenas de pessoas e comunicar aos familiares que deverão aguardar o julgamento meses depois, é inadmissível.

Notícia de 15 de abril de 2019, com vídeo de audiência realizada por juiz de Direito da Vara Criminal da cidade de João Monlevade, MG, revela o descontentamento com o depoimento de uma testemunha. O que poderia ser resolvido com uma simples frase, tornou-se uma longa reprimenda com reiteradas observações de que ali quem mandava era o magistrado, presidente do ato. [8]

Este tipo de ação, com as admoestações reiteradas e em tom exaltado, nada mais é do que uma espécie de “virar a mesa”, ou seja, transmite uma ideia de que, no local, em hipótese alguma se tolerará o desrespeito. No entanto, do juiz se espera prudência e serenidade, o exercício da autoridade não é proporcional à altura da voz. Ao inverso, ela se revela mais forte quando expressada em tom normal e seguro. Imagine-se se acaso a testemunha se rebelasse em alta voz. Possivelmente a audiência seria suspensa, levada a testemunha a uma Delegacia de Polícia e instaurada mais uma inútil ação penal.

A sala de aula é local de grande risco. Conflitos podem ocorrer por motivos vários, desde a conduta desrespeitosa de um aluno até a arrogância de um professor, impondo desnecessária humilhação a quem dá uma resposta errada.

Notícia de 4 de outubro de 2017 dá conta que um aluno da Faculdade Faminas, em Belo Horizonte, MG, com 42 anos idade, advertido pelo professor de 31 anos de que sua prova seria anulada por estar colando, permaneceu no local 25 minutos e depois, sem conseguir uma segunda chance, chutou cadeiras em direção ao mestre e ameaçou “quebrá-lo” [9].

Este tipo de “virar a mesa” não tem uma segunda opção que se mostre coerente. Ela, tal qual um crime formal, se consuma com o simples resultado. No entanto, a vida do jovem professor talvez tenha até sido desviada com total desilusão com a docência.

Em suma, posições de poder, seja em locais institucionais como a Ordem dos Advogados do Brasil, seja em escritórios de advocacia, exigem equilíbrio e ponderação mesclados com firmeza. Bem lembra Max Gheringer em exemplo do mundo empresarial que se ajusta nas atividades jurídicas: “Se você demitir o colega e depois tiver de voltar atrás, você não durará muito como chefe”. [10]

Do que foi dito, chega-se à conclusão de que “virar a mesa” é muito mais uma demonstração de imaturidade e descontrole do que uma ação de coragem. O profissional competente, seja qual for a cadeira em que se sente, na audiência, na sala de aula ou no escritório, não levanta a voz, não tem explosões, nem critica alguém em público. Segue na sua conduta, mesmo que provocado, até o fim do que se propôs a fazer. E se a situação for insustentável, tentará minorá-la educadamente e só usará o ato extremo se frustrada a tentativa. Sempre na presença de testemunhas. Mas tomada a decisão, não voltará atrás.


[1] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Virada_de_mesa. Acesso em 29/7/2019.

[2] Goldston, Mark. A Receita para Virar a Mesa. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1995.

[3] “Começar de novo”, de Ivan Lins e Vitor Martins (… ter virado a mesa, ter me conhecido…).

[4] Escolas de samba viram a mesa no Grupo Especial e Imperatriz não é rebaixada. Disponível em: http://www.tupi.fm/entretenimento/escolas-de-samba-viram-mesa-no-grupo-especial-e-imperatriz-nao-e-rebaixada/ . Acesso em 20/7/2019.

[5] Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/advogada-usa-palavroes-em-acao-contra-vivo-vou-pagar-p-nenhuma.html. Acesso em 20/7/2019.

[6] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc21089902.htm. Acesso em 20/7/2019.

[7] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc21089902.htm. Acesso em 20/7/2019.

[8] Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI300346,81042-Juiz+se+exalta+com+testemunha+em+audiencia+cala+a+boca+que+eu+to.

[9] Disponível em: https://www.otempo.com.br/cidades/aluno-de-direito-agride-professor-ao-ser-pego-colando-em-prova-em-bh-1.1527685. Acesso em 20/7/2019.

[10] Gheringer, Max. Aprenda a ser chefe. São Paulo: Integrare Ed., 4ª. Ed., 2014 p. 236.

Autores

  • é chefe da Assessoria Especial de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!