Opinião

Prefeituras descumprem lei do trabalho temporário e aumentam tributação

Autor

  • Filipe Mota

    é advogado procurador jurídico da Associação Brasileira do Trabalho Temporário (Asserttem) e pós-graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

6 de julho de 2019, 6h59

Em momentos de incerteza econômica, a contratação temporária é uma opção mais viável às empresas que precisam atender à demanda aquecida de datas sazonais ou necessidades transitórias, além de representar uma alternativa que garante os direitos trabalhistas em meio à forte informalidade no mercado de trabalho.

Mas, para que esse tipo de contratação ocorra e haja interesse por parte das empresas, é necessário que os municípios façam a aplicação correta da base de cálculo do ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) sobre a contratação do trabalhador temporário, feita por intermédio de agências credenciadas pelo governo federal. Em casos de incidência incorreta da base de cálculo do imposto, por exemplo, o aumento pode chegar até a 1.539%.

Assim, para que seja apurada a correta base de cálculo do ISSQN, antes se faz necessário compreender o regime do trabalho temporário, instituído pela Lei 6.019/74.

A Lei 6.019/74, em seu artigo 2º, assim define o trabalho temporário:

“Art. 2º – Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário, que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços”

Da leitura do dispositivo, verificamos que quem presta trabalho temporário é o trabalhador que é qualificado para exercer a função, e não a agência, que apenas administra o contrato temporário.

Trata-se de regime especial de contratação de trabalhadores, que por ter regramento próprio não deve ser confundido com outros contratos de trabalho, seja com prazo determinado ou indeterminado, previstos no texto consolidado, já que a norma de caráter geral (CLT) não prevalece sobre a lei especial (Lei 6.019/74).

A agência de trabalho Temporário presta serviços de intermediação de trabalhador temporário para a empresa tomadora de trabalho temporário, nos termos da definição da Subclasse 7820-5/00. Ou seja, tanto a Cnae (classe “N”) como a lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/03 (item 17) tratam as empresas dessas atividades como de “serviços administrativos”, e isso deve ser respeitado pelos municípios, não cabendo interpretação diferente.

Logo, a agência privada de trabalho temporário não se caracteriza como uma prestadora de serviço de natureza comum. Estamos diante de uma relação interposta entre (i) a agência de trabalho temporário (intermediadora), (ii) o trabalhador temporário e (iii) a empresa tomadora. Nítida atividade de intermediação de mão de obra que só pode ser realizada através destas, nos termos da Súmula 331, item I, do TST.

Para tanto, primeiramente a agência privada de trabalho temporário e a empresa tomadora/cliente firmam um contrato de prestação de serviços de intermediação e trabalhadores temporários, regido pela Lei 6.019/74, denominado de contrato interempresarial. Referido contrato é obrigatoriamente escrito e deve conter expressamente o motivo justificador da demanda de trabalho temporário, assim como as formas de remuneração pela prestação dos serviços, tal como determina o comando legal previsto no artigo 9º, da Lei 6.019/74[1].

Com a assinatura do contrato interempresarial, fica a agência autorizada e em condições jurídicas para recrutar, selecionar e registrar o trabalhador temporário. Neste momento, então, surge a figura do trabalhador temporário (o verdadeiro prestador do trabalho temporário), contratado nos termos do artigo 2º da Lei 6.019/74 já citado.

O objeto do contrato firmado entre as partes não é a prestação de um serviço específico e determinado (como ocorre na terceirização em geral — artigo 4º-A da Lei 6.019/74), mas apenas o serviço de colocar trabalhador temporário à disposição do tomador.

Já o contrato de trabalho temporário firmado entre a agência e o trabalhador também é obrigatoriamente escrito, constando os direitos conferidos ao temporário.

Com relação ao vínculo do trabalhador temporário, devemos ressaltar que, apesar de ser contratado pela empresa de trabalho temporário, ele não é empregado desta, já que, conforme preconiza o artigo 12 do Decreto 73.841/74, é vedado à empresa de trabalho temporário ter ou utilizar em seus serviços trabalhador temporário[2]. Além disso, a empresa tomadora ou cliente exerce, durante a vigência do contrato firmado com a empresa de trabalho temporário, o poder disciplinar, técnico e diretivo sobre o assalariado colocado à sua disposição. Desta forma, a subordinação e pessoalidade são transferidas à empresa tomadora de trabalho, o que não ocorre nas atividades regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (por exemplo, terceirização em geral).

Outrossim, o trabalhador temporário tem direito à remuneração equivalente à percebida pelos empregados da empresa cliente, e não dos empregados da agência de trabalho temporário, conforme artigo 12, alínea “a”, da Lei 6.019/74 supratranscrito, sendo, neste caso, custo a ser suportado pela empresa tomadora.

Os salários, encargos sociais e benefícios dos trabalhadores temporários intermediados são considerados mera entrada de caixa (reembolso), pois são valores legalmente comprometidos aos trabalhadores temporários, e sua retenção por parte da agência de trabalho temporário configura apropriação indébita. Esses valores não incrementam o patrimônio da empresa intermediadora. Essa atividade comissionada é uma peculiaridade das empresas intermediadoras de mão de obra temporária regidas pela Lei 6.019/74.

Por todo o exposto, a agência de trabalho temporário emitirá uma fatura contendo três valores, conforme exemplo abaixo, a saber: (i) reembolso de salários, (ii) reembolso de encargos sociais e (iii) o preço do serviço (taxa de administração), devendo o ISS incidir sobre a taxa de administração.

Dispondo sobre o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza, a União sancionou, em 31 de julho de 2013, a Lei Complementar 116, trazendo no artigo 1º a definição do fato gerador do imposto.

O artigo 7º da Lei Complementar Federal 116/2013 estabelece que a base de cálculo do ISS é o preço do serviço. Essa regra constitucional é de eficácia contida e encerra uma limitação constitucional ao poder de tributar dos municípios, campos próprios de atuação da lei complementar federal (Constituição Federal, artigo 146, inciso III, alínea “a”).

Normalmente, os códigos tributários municipais, ou legislação específica sobre ISS, trazem a seguinte redação para definir a base de cálculo do ISS: “por preço do serviço se deve entender a receita bruta dele proveniente, sem quaisquer deduções”.

Entretanto, como dito no início, não é raro a errônea interpretação/aplicação da legislação municipal pelo Fisco, em especial na locução “sem quaisquer deduções”. A locução “sem quaisquer deduções” refere-se à preposição anterior, qual seja, “receita bruta dele proveniente”. Conforme já exposto, o município deverá tributar a receita bruta do intermediador de trabalhadores temporários, qual seja a taxa de administração, que corresponde ao preço do serviço (valores que incrementam o patrimônio do intermediador, elemento novo e positivo).

As referidas legislações municipais, da forma como foram redigidas, padecem de imprecisão, dado o seu caráter abrangente, e, por conseguinte, dão azo a interpretação duvidosa, com o risco de que passem a compor a base de cálculo do ISS, na atividade em comento, valores diversos da taxa de administração percebida pela agência de trabalho temporário. E é exatamente isso que estamos repudiando no presente momento.

Citamos como legislação paradigma o município de Curitiba, que traz em sua legislação municipal (Código Tributário Municipal – Lei Complementar Municipal 40/2001)[3], de forma expressa, clara e minuciosa, que os encargos sociais, benefícios e salários dos trabalhadores temporários não integram a base de cálculo do imposto municipal. Vejamos:

“Art.13. Base imponível é valor ou preço total do serviço, quando não se tratar de tributo fixo.
Parágrafo único. O Poder Executivo poderá estabelecer critérios para estimativa de base imponível de atividade de difícil controle de fiscalização”.

“Art. 13-A. Não se incluem na base imponível do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, o valor da folha de pagamento e os respectivos encargos sociais do serviço descrito no item 17.05 da lista de serviços anexa. (Artigo acrescido pela Lei Complementar nº 58, de 22 de dezembro de 2005)”.

Assim, não poderá o Fisco municipal inserir valores na base de cálculo do ISS que não seja a receita bruta decorrente da prestação do serviço. Se o fizer, estará desvirtuando a base de cálculo do imposto.

No caso do trabalho temporário, os serviços prestados pelas agências privadas de trabalho temporário enquadram-se na hipótese descrita no subitem 17.05 (fornecimento de mão de obra, mesmo em caráter temporário, inclusive de empregados ou trabalhadores, avulsos ou temporários, contratados pelo prestador de serviço) da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/03. Essa lista encontra-se comumente repetida de forma idêntica no anexo das leis municipais.

Nessa atividade constará discriminado na nota fiscal o valor da (i) taxa de administração (preço do serviço), (ii) reembolso de salários e benefícios e (iii) reembolso de encargos sociais. Ou seja, há uma diferença gritante de valores se utilizarmos o valor total da nota fiscal como preço do serviço. Isso porque a base de cálculo do ISS é o “preço do serviço” de intermediação de trabalhadores temporários, e não o “valor total da nota fiscal”.

O artigo 2º da Lei 6.019/74 é claro no sentido de que quem presta o serviço temporário é uma pessoa física (trabalhador temporário) a uma empresa necessitada, e não a agência de trabalho temporário (que faz a intermediação), para atender a uma necessidade transitória e limitada.

Como já foi dito anteriormente, os trabalhadores temporários, por determinação legal, serão remunerados e assistidos pela empresa tomadora (artigos 4º e 12 da Lei 6.019/74). Porém, caberá à agência de trabalho temporário fazer o repasse de tais valores (Decreto 73.841/74, artigo 8º), sob pena de apropriação indébita.

Portanto, em consonância com os princípios constitucionais da capacidade contributiva, do não confisco e da legalidade tributária, verifica-se que o “preço do serviço”, que corresponde ao valor da “prestação do serviço”, é somente a taxa de administração, base de cálculo do ISS, recebida pela agência de trabalho temporário pela contraprestação do serviço de intermediação de mão de obra temporária (sua atividade-fim).

Não há previsão legal para a incidência de ISS sobre o valor total da nota fiscal, e sim pela taxa de administração. Uma vez que a receita da agência corresponde tão somente à comissão combinada entre as partes contratantes, sua receita bruta e seu faturamento, pois os direitos dos trabalhadores temporários não são benefícios econômicos que resultam em aumento do patrimônio líquido da agência. Conceito de receitas extraído da norma técnica do Comitê de Pronunciamentos Contábeis – CPC 30 (R1) e Normas Internacionais de Contabilidade – IAS 18 (IASB – BV 2012).

O município deverá tributar a receita do prestador de serviço (valores que incrementam o patrimônio do prestador, elemento novo e positivo), e não receita de terceiros, em que pese tenha transitado pelo caixa daquele.

Ao cobrar o imposto sobre serviços com base no valor bruto da nota fiscal, afrontam os princípios constitucionais que limitam o poder de tributar, quais sejam, a legalidade, a capacidade contributiva e a vedação de instituição de imposto com caráter confiscatório.

Impossível, em nosso regime tributário, subordinado ao princípio da legalidade, um dos sustentáculos da democracia, ampliar a base de cálculo de qualquer tributo sem previsão legal, ou seja, por mera liberalidade ou por interpretação jurisprudencial.

Ao incluir na base de cálculo do ISS valores que não compõem o preço do serviço (salário + encargos + benefícios), estar-se-á majorando a base de cálculo sem lei que autorize, qual seja, para 1.539%, em manifesta ofensa ao artigo 156, inciso III e artigo 146, inciso III, alínea “a”, ambos da Constituição Federal, e, ainda, violação ao artigo 7º da Lei Complementar Federal 116/2003. Restando configurado ainda a afronta aos princípios da capacidade contributiva (CF, artigo 145, parágrafo 1º) e da legalidade tributária (CF, artigo 150, I).

Nesse sentido, a Súmula 524, editada pelo Superior Tribunal de Justiça em 7 de maio de 2015, deixa clara a diferença entre trabalho temporário e fornecimento de mão de obra. Vejamos a redação da súmula:

“No tocante à base de cálculo, o ISSQN incide apenas sobre a taxa de agenciamento quando o serviço prestado por sociedade empresária de trabalho temporário for de intermediação, devendo, entretanto, englobar também os valores dos salários e encargos sociais dos trabalhadores por ela contratados nas hipóteses de fornecimento de mão de obra”.

Extrai-se da leitura da referida súmula que a base de cálculo do ISSQN no trabalho temporário incide apenas sobre a taxa de intermediação/agenciamento.

Verifica-se que a Súmula 524 pacificou o entendimento do STJ a respeito da base de cálculo do ISSQN relativo aos dois tipos de atividades empresariais, descritas no subitem 17.05 da lista de serviços anexa à Lei Complementar 116/2003.

“17.05 – Fornecimento de mão de obra (Lei nº 13.429/2017), [atenção para esta vírgula] mesmo em caráter temporário (Lei 6.019/74), inclusive de empregados ou trabalhadores, avulsos (Lei 12.023/2009) ou temporários, contratados pelo prestador de serviço”.

A vírgula após “fornecimento de mão de obra” faz toda a diferença, pois separa duas atividades distintas. Uma diz respeito à terceirização de mão de obra, atividade regulamentada pela Lei 13.429/2017, em que a prestadora fornece a sua mão de obra própria, empregados por ela contratados pelo regime celetista, para prestar serviços em empresas terceiras.

Já “em caráter temporário” está relacionado com o emprego temporário nos moldes da Lei 6.019/74, que não poderá ser fornecido, visto que a agência de trabalho temporário está proibida de contratar para si o trabalhador temporário, sendo a sua atividade única e exclusiva a de interposição (Decreto 73.841/74, artigo 12, II).

Diante de todo o exposto, os municípios, ao fazerem, abusivamente e sem respaldo legal, incidir ISS sobre valores que não correspondem ao preço do serviço (reembolso de salários, benefícios e encargos sociais dos trabalhadores temporários), acabam por ofender o artigo 156, inciso III, artigo 145, parágrafo 1º (princípio da capacidade contributiva), artigo 150, inciso I (princípio da legalidade tributária), artigo 150, inciso IV (princípio do não confisco), tudo da Constituição Federal, artigo 7º da Lei Complementar 116/2003 e artigo 4º da Lei 6.019/74.


[1] “Art. 9º O contrato celebrado pela empresa de trabalho temporário e a tomadora de serviços será por escrito, ficará à disposição da autoridade fiscalizadora no estabelecimento da tomadora de serviços e conterá:
I – qualificação das partes;
II – motivo justificador da demanda de trabalho temporário;
III – prazo da prestação de serviços;
IV – valor da prestação de serviços;
V – disposições sobre a segurança e a saúde do trabalhador, independentemente do local de realização do trabalho” (grifei).
[2] “Art. 12. – É vedado à empresa de trabalho temporário:
I – (…)
II – ter ou utilizar em seus serviços trabalhador temporário, salvo o disposto no artigo 16 ou quando contratado com outra empresa de trabalho temporário” (grifei).
[3] Disponível no site: http://www.curitiba.pr.gov.br.

Autores

  • é advogado, procurador jurídico da Associação Brasileira do Trabalho Temporário (Asserttem) e pós-graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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