Observatório Constitucional

O Supremo e a figura do spoudaios, o "homem magnânimo"

Autor

23 de fevereiro de 2019, 8h03

Spacca
As últimas eleições presidenciais não só inauguraram um novo rumo político do país com uma relevante renovação do quadro parlamentar. É importante destacar que esse processo democrático também ressoou no STF, uma vez que o tribunal, de fato, exerceu forte protagonismo político nos eventos e na construção das narrativas que alimentaram o desejo do eleitor brasileiro. Não me refiro propriamente a uma mudança abrupta de sua jurisprudência ou a uma nova orientação jusfilosófica imediata de sua linha de decisão.

É inegável que a corte parece ter se recolhido um pouco mais, após uma crescente onda de críticas, especialmente ao seu ativismo e à tentativa de construção de uma aparente autoimagem messiânica diante do caos político que se avolumou após 2013 no país.

É possível que esse movimento — ainda bastante acanhado — seja a representação do ideário apresentado pelo ministro Dias Toffoli quando de sua posse na presidência do tribunal em setembro de 2018, no lugar da ministra Cármen Lúcia. De fato, em seu discurso de posse, o ministro Toffoli destacou a importância do diálogo institucional, da harmonia entre os Poderes e do papel conciliador e pacificador que o Poder Judiciário também precisa desenvolver. Nessa linha, cravou que “por isso, nós, juízes, precisamos ter prudência”[1].

Essa conclamação do óbvio, entretanto, é uma novidade, especialmente na presidência de um tribunal que se acostumou a se projetar — até com certa presunção — para além dos demais poderes e a julgar pejorativamente a posição conservadora que parece ser a majoritária entre a população e parlamentares acerca de questões morais.

De qualquer forma, a posição externada do ministro Toffoli — e que parece ser mesmo a pauta de sua presidência — identifica que os gargalos do STF estão menos na recriação de seus procedimentos de trabalho ou práticas administrativas de processamento e julgamento das lides e mais nas características que devem, em sua opinião, fazer parte da referência de um juiz ou de um ministro do STF.

De fato, julgar monocraticamente um tema polêmico que, em princípio, deveria ser avaliado pelo Plenário, não é propriamente um erro do regimento interno que, para alguns, deveria proibir tais práticas. Também não é problema de falta de regulamentação a opção de um ministro julgar, dentro de certas regras, um caso com temática nova na turma ao invés de no Plenário. Sequer é problema de funcionamento do tribunal o acúmulo de processos na pauta quando, ao mesmo tempo, o próprio tribunal se dedica a “gastar” três ou quatro sessões plenários no julgamento de apenas um caso. E, finalmente, alguém acha que o respeito à própria jurisprudência e a garantia da segurança jurídica é um problema procedimental? Todas essas situações são opções humanas, decisões pessoais de procedimentos e de atuação dos ministros. Na mesma linha dessa avaliação está a discussão em torno da alteração da natureza do tribunal (que, para alguns, deveria ser típica corte constitucional) ou na polêmica em torno da forma de indicação dos ministros.

A questão que finalmente emerge é que, para o sucesso institucional do STF, mais importante do que a reavaliação de seus procedimentos e regras regimentais, é o contínuo exame das pessoas que o compõe.

Os critérios constitucionais do “notável saber jurídico” e da “reputação ilibada” (artigo 101, caput, da CF), infelizmente, tornaram-se insuficientes para uma boa escolha de ministro. É preciso algo a mais, é preciso pincelar na multidão de opções a personalidade diferenciada e que se “encaixe” na institucionalidade do STF. Ser ministro parece ser mais uma vocação do que um prêmio. E, acima de tudo, é preciso que o olhar vigilante do presente do tribunal possa alimentar os cuidados com a próxima indicação.

Há um erro muito comum na comunidade jurídico de supervalorizar a “celebridade” do Direito, o conhecimento técnico e o destaque acadêmico, no momento de se avaliar uma vaga[2]. É comum, nessa linha, que nas pesquisas informais de opinião, ganhem destaque para ocupar uma vaga o autor de livros, o professor palestrante, o polemista, esquecendo que, mais importante do que o seu domínio técnico, é o seu perfil, sua biografia pessoal e privada, sua personalidade austera, discreta e reclusa, sua capacidade de reverenciar a memória do STF.

Aqui está outra lacuna importante na hora de se avaliar a atuação de um ministro. Pouco se conhece da história do STF: suas realizações, suas omissões e mesmo seus momentos difíceis. Afinal, o que levou João Mangabeira, em 1943, a afirmar, examinando o STF, que o Judiciário era “o poder que mais falhou na República”[3]? Também não se sabe dos ministros passados, do trabalho que desenvolveram, de seus perfis e das encruzilhadas políticas ou institucionais que tiveram que enfrentar. Cada vaga aberta no STF é também a oportunidade de perceber a voz, o estilo e a personalidade de todos aqueles que já ocuparam aquela cadeira e fizeram com que o tribunal se torna-se uma “concreção histórica, que não se descontinua em sua integridade institucional diante da descontinuidade das sucessivas Constituições”[4].

Essa homenagem à memória dos ministros que também escreveram capítulos no STF não significa uma submissão, mas, ao contrário, uma veneração ao passado e um ato de humildade com o estilo e com o método de trabalho daqueles que ajudaram a construir o tribunal.

A cadeira do ministro Alexandre de Moraes, por exemplo, embora criada só em 1965 com a edição do Ato Institucional 2, já foi ocupada pelo histórico ministro Aliomar Baleeiro e por outros ministros de peso como Alfredo Buzaid e Sydney Sanches. A vaga da ministra Cármen Lúcia já pertenceu a figuras emblemáticas de forte consciência política como Castro Nunes, Luiz Gallotti, Cordeiro Guerra e Célio Borja. O mesmo se pode dizer da mais longeva linha sucessória do STF com nomes como Philadelpho e Azevedo, Ribeiro da Costa, Adaucto Cardoso, Aldir Passarinho e que hoje é ocupada pelo ministro Roberto Barroso. Já o ministro Marco Aurélio é sucessor de nomes do quilate de Carlos Maximiliano, Hahnemann Guimarães, Themistocles Cavalcanti e Bilac Pinto, além do grande Pedro Lessa, provavelmente um dos maiores ministros que o tribunal já teve.

Qual é o peso e a responsabilidade de sentar em uma cadeira como essas? Certamente, para um ministro consciente de seu papel, esse peso é imenso e muito maior do que poderia parecer as complexidades e polêmicas dos casos que julga diuturnamente. O passado do tribunal precisa reverberar sobre a consciência do ministro que hoje ocupa cada cadeira.

Qual é esse perfil que procuramos para o ministro do STF? Que perfil deve se elevar ao ponto de se tornar paradigma a ser seguido pelos atuais ministros?

Nenhuma ideia pode representar melhor a modelagem ensaiada aqui do que a figura do spoudaios, o homem maduro que Aristóteles queria formar quando escreveu a sua Ética a Nicomaco. Spoudaios é o “homem excelente”, o “homem magnânimo”[5], comedido, experiente, que desenvolveu as suas potencialidades, se conheceu e se dominou, também na esfera das paixões e sentimentos. “Não guarda rancor por ofensas que lhe façam”, “tampouco é dado a conversas fúteis, pois não fala nem sobre si mesmo nem sobre os outros, porquanto não lhe interessam os elogios que lhe façam nem as censuras dirigidas aos outros”. Trata-se da excelência do caráter humano por meio da virtude ética e do conhecimento pela experiência. Nas palavras de um dos maiores cientistas políticos do século XX, Eric Voegelin, spoudaios “é o homem que realizou ao grau máximo as potencialidades da natureza humana, que formou seu caráter na realização das virtudes intelectuais e éticas”[6].

Esse modelo de homem virtuoso é um conceito-chave na tradição da cultura ocidental, que perpassou a história desde o período antigo com os gregos e romanos, fortalecendo-se com a perspectiva dos ideais morais da religião cristã, a ideia do cavaleiro cordial durante a idade medieval[7], o estudo da virtus durante o humanismo cívico na Renascença[8]. Modernamente, esse modelo ainda continua a irradiar seus efeitos formando, assim, os grandes arquétipos da vida contemporânea, especialmente na figura do juiz. Richard Posner, por exemplo, se utiliza da noção de “sábios anciãos” (wise elders) para edificar o seu modelo de juiz[9]. Richard Rorty, em sua abordagem neopragmatista, ancora-se na ideia de “homens e mulheres decentes” para sustentar sua defesa acerca do que se trata serem juízes que merecem nossa admiração[10].

Para alguns, essas são ideias deveras genéricas e antigas (talvez ultrapassadas) para ajudar a pensar no STF de hoje. Entretanto, não poderia haver argumento mais falso. Gastou-se muito tempo — e ainda se gasta — perquirindo acerca da autoridade técnica de cada um dos ministros. O critério do “notável saber jurídico” — que vem em nossa tradição desde o parecer do Senado da lavra do João Barbalho e aprovado pela “Comissão de Justiça e Legislação” em sessão de 24/9/1894 para rejeitar a judicatura de Barata Ribeiro (já que a Constituição de 1891 apenas se referia a “cidadãos de notável saber e reputação” em seu artigo 56)[11] — não pode ser entendido como o exaurimento dos requisitos necessários para o exercício da judicatura constitucional. Ao contrário, trata-se de característica quase que suplementar, uma vez que o seu elemento “como condicionante” já se exaure com a demonstração de que o candidato à vaga é formado em Direito.

O conhecimento técnico-jurídico, em realidade, é um instrumento à disposição de uma mentalidade, de uma personalidade e de um caráter, e é essa dimensão formativa e estrutural do ser humano que precisa ser avaliada pelo presidente da República e foco de constante autojulgamento e avaliação dos atuais ministros.

Essa imagem do “homem virtuoso”, entretanto, é um ideário que deve se colocar como uma projeção permanente na tela ou como um peso a ser suportado pelos ministros. A falta dessa representação, que também é causada em larga medida por uma certa ignorância da própria história do tribunal, ajudam a comunidade jurídica a cometer o erro de pensar o STF apenas como uma instância de excelência técnica, e não se apercebendo que o mesmo instrumental jurídico pode ser bem utilizado em um sentido ou no outro.

Após anos acompanhando o trabalho do STF e suas diversas formações do colegiado, dedicando tempo e pesquisa ao levantamento bibliográfico, à história da corte, à reminiscência de sua memória, à reconstrução de sua experiência institucional e à sua posição política, não posso deixar de reconhecer que o modelo de crítica ao tribunal por meio da análise casuística de seus erros contingentes e da discordância em cada julgamento realizado chegou a um tipo de esgotamento. Tornou-se circular e ineficaz focar na crítica da decisão em si, especialmente diante de um tribunal que sequer conserva ou preserva a sua própria jurisprudência. A prática e a doutrina do Direito Constitucional parecem andar, a passos largos, para uma espécie de dizimação ou destruição, exatamente porque não há mais referência, não há mais fundação ou ancoragem dos institutos do Direito Constitucional e de seus princípios hermenêuticos mais tradicionais. Esse “direito constitucional líquido” construído pelo STF (ou seria, “destruído”?) escorre pelas mãos, já que não apresenta consistência, firmeza e coesão. Advogados publicistas, professores de Direito, juízes e público em geral não tem onde se basearem porque o Direito Constitucional desaparece como ciência, como estilo e como método.

Diante desse quadro devastador, parece que se tem de começar do início e a principal tarefa da comunidade jurídica — especialmente das fileiras do Direito Constitucional — é a edificação de uma mitologia na área, a construção de alegorias e modelos referenciais que possam, antes de fiscalizar a técnica, controlar as mentalidades, escolher o caráter e selecionar a personalidade dos que futuramente ocuparão as cadeiras do tribunal.


[1] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/discurso-toffoli-posse-presidente-stf.pdf.
[2] O então candidato à Presidência da República Fernando Haddad chegou a defender em campanha que indicaria “ministros acadêmicos” para os tribunais superiores. https://www.conjur.com.br/2018-out-24/haddad-academicos-nao-militantes-cortes-superiores.
[3] MANGABEIRA, João. Ruy, o Estadista da República. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1943.
[4] VILLANOVA, Lourival. Conferência de 12.09.1978. In: Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, pág. 27.
[5] De que nos fala Aristóteles no Livro IV, capítulo 3 de “Ética a Nicomaco”: “Igualmente próprio do homem magnânimo é não ambicionar as coisas que são vulgarmente acatadas, nem aquelas em que os outros se ditinguem; mostrar-se desinteressado e abster-se de agir, salvo quando se trate de uma grande honra ou de uma grande obra, e ser home de poucas ações, mas grandes e notáveis”.
[6] VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. Brasília: Editora da UnB, 1985, pág. 56.
[7] DAWSON, Christopher. Criação do ocidente: a religião e a civilização medieval. Tradução de Maurício Righi. São Paulo: É Realizações, 2016, pág. 179 e ss.
[8] SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Tradução de Renato Janine e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 105 e ss.
[9] POSNER, Richard. Pragmatic adjudication. In: Cardozo Law Review. Vol. 18:1, 1996-1997, pág. 11.
[10] RORTY, Richard. Pragmatism and law: a response to David Luban. In: Cardozo Law Review. Vol. 18:75, 1996-1997, pág. 83.
[11] CAVALCANTI, João Barbalho Uchôa. Constituição Federal Brasileira (1891). Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002, pág. 230; BALEEIRO, Aliomar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, pág. 25.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!