Opinião

Prescrição e certeza do Direito: o caso Eldorado

Autor

  • Andrea Marighetto

    é advogado doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito summa cum laude pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

25 de dezembro de 2019, 6h03

A ratio do instituto da prescrição — como tradicionalmente entendida — se fundamenta na necessidade de garantir, de um lado, a segurança das relações jurídicas e, de outro, a exigência da garantir a certeza do Direito [principalmente contra quaisquer modificações retroativas da lei em relação a quanto já decidido pelas cortes][1].

O conceito, ou melhor, a finalidade da certeza do Direito responde, no entanto, à tradição da “funcionalização” do Direito, entendido qual instrumento para regulamentar e garantir a tutela e a dignidade do indivíduo: em outras palavras, o Direito desenvolve a função de guiar as condutas humanas, e por isso, precisa ser claro, certo e reconhecível.

Para que o Direito seja claro, certo e reconhecível, hão de ser garantidos os pilares da segurança jurídica, ou seja: (i) a observância das normas por partes dos seus destinatários; (ii) a acessibilidade das prescrições à ciência dos seus interessados; (iii) a efetiva cognição do direito por parte dos consociados; (iv) a univocidade das qualificações jurídicas; (v) a possibilidade de prever a intervenção dos órgãos de aplicação e de execução; (vi) a previsibilidade do conteúdo das decisões do Juiz; (vii) o controle dos processos decisórios; (viii) a estabilidade da regulamentação jurídica no tempo; (ix) a incontestabilidade das relações jurídicas exauridas; (x) a irretroatividade da lei; (xi) o próprio principio de legalidade; (xii) a separação dos poderes etc[2].

Em outras palavras, o instituto da prescrição representa o pilar da segurança jurídica que mais representa a efetividade temporal dos interesses e direitos subjetivos previstos e regulamentados pela Carta Constitucional e pela lei em geral, contra eventuais comportamentos arbitrários e ilegítimos que poderiam ser cometidos para conseguir interesse pessoais e partidários.

É importante destacar que a prescrição é instituto de direito material que limita a pretensão daquele que teve direito violado dentro de determinado prazo estabelecido, independentemente da forma processual através da qual o direito for acionado.

A própria Constituição reconhece a segurança jurídica na garantia (veja-se o artigo 5º, XXXV, Constituição) por meio da qual a lesão ou ameaça a direito não serão afastadas da apreciação do Poder Judiciário, que tem o poder e o dever de fundamentar suas decisões em conformidade com os dispositivos normativos e os institutos do direito aplicável.

Em relação ao caso Eldorado[3], é possível sintetizar a questão no mérito — sic et simpliciter — na possibilidade de impugnar (pedindo o cancelamento) a ata da assembleia geral datada de 30 de novembro de 2011, que deliberou a incorporação da Florestal Brasil pela Eldorado Celulose e Papel, cujo resultado implicou na redução (e asserido prejuízo) da participação acionaria da MJ Participações.

No especifico, com relação ao caso de impugnação de atas societárias, imediatamente há de se destacar que a Lei da S.A., no artigo 286, frisa a disciplina geral em matéria de impugnação de atas societárias estabelecendo que “a ação para anular as deliberações tomadas em assembleia-geral ou especial, irregularmente convocada ou instalada, violadoras da lei ou do estatuto, ou eivadas de erro, dolo, fraude ou simulação, prescreve em dois anos, contados da deliberação”.

A explicita e especifica previsão normativa da Lei da S.A. há ser lida juntamente à normativa geral do Código Civil, que, ao disciplinar o instituto da prescrição, dispõe que: “Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes” (artigo 192), deixando bem claro que os prazos da prescrição, próprio pela finalidade de garantir certeza e segurança jurídica, são exclusivamente estabelecidos e regulamentados por lei.

A consagrar a importância da finalidade da prescrição e a sua função de promover a manutenção da garantia da certeza e segurança jurídica, a Lei 11.280/2006 introduziu a possibilidade de o juiz suprir, ex officio, a alegação da prescrição. Em síntese, é o próprio juiz que deve garantir o funcionamento do instituto da prescrição.

Esta importante previsão deve ser lida de acordo com as novidades normativas também introduzidas pelo Código de Processo Civil, o qual prevê que o juiz — sem prejuízo para as partes poder renunciar à prescrição — possa conceder às mesmas contraditório preventivo e eventualmente manifestação de renúncia[4]. Ainda, cabe sempre ao juiz a obrigação de regulamentar as condições de exercício do instituto da prescrição.

Em outras palavras, para impugnar qualquer ata societária de sociedade anônima, a lei prevê um prazo prescricional de dois anos a partir da data da deliberação, podendo o juiz alegar a prescrição do direito substancial, desde que tenha concedido às partes a possibilidade, a respeito dos prazos da prescrição, de se manifestar.

A rigor, e para enfatizar a importância do prazo (sempre para garantir segurança e certeza das relações jurídicas e do próprio ordenamento jurídico), parte da doutrina mais consolidada chega a considerar o prazo dos dois anos mais um prazo de decadência que um prazo de prescrição[5].

Veja-se também recente interpretação jurisprudencial, que [evidentemente para não deixar duvida de sistematização] até especifica: “Mesmo as deliberações contrárias aos ditames legais ou estatutários convalescem após o transcurso do lapso prescricional/decadencial, notadamente porque a deliberação encerra a vontade da maioria, sendo de pressupor-se que, não obstante eventualmente infringente das disposições normativas, foi concebida por ser considerada benéfica à sociedade e, de forma indireta e reflexa, também aos sócios”[6].

Lembrando o ensino do professor Agnelo Amorin Filho sobre decadência e prescrição: “O efeito imediato da decadência é a extinção do direito, ao passo que o da prescrição é a cessão da eficácia da ação (entenda-se pretensão)”[7]. Ou seja, independentemente da interpretação sobre a natureza jurídica do prazo (prescricional ou decadencial), após transcorridos dois anos da data da deliberação, o reclamante não tem mais o direito (material, no nosso modesto entendimento) a impugnar a ata, independentemente da gravidade do vicio! Sic et simpliciter.

Quando o óbvio arrisca tornar-se banal, e a incerteza das relações jurídicas arrisca superar qualquer certeza, resta unicamente apelar à celebre frase do mestre Calamandrei na sua célebre obra Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados (tradução da obra Elogio dei giudici scritto da um avvocato): “A Justiça existe, precisa que exista, quero que exista. Vós, juízes, têm que me escutar”![8]

[1] BODIN DE MORAES, Maria Celina. Prescrição, efetividade dos direitos e danos à pessoa humana, em civilistica.com, a.6.n. 1. 2017.

[2] BERTEA, Stefano. Certezza del Diritto e argomentazione giuridica. Catanzaro, Rubbettino, 2002, p. 54.

[3] Veja-se, https://www.conjur.com.br/2019-dez-08/desembargador-inova-interpretacao-lei-sas.

[4] Veja-se parágrafo único do artigo 487 do CPC: “Parágrafo único. Ressalvada a hipótese do § 1º do art. 332 , a prescrição e a decadência não serão reconhecidas sem que antes seja dada às partes oportunidade de manifestar-se”.

[5] AZEVEDO, Erasmo Valadão; FRANÇA Novaes. Temas de Direito societário, falimentar e teoria da empresa. São Paulo, Malheiros Editores, 2009.

[6] Conforme AgRg no AREsp 752.829/SP, Min. Rel. Marco Buzzi, j. 19.4.2016).

[7] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, vol. 300, São Paulo, RT, 1961; Matéria já abundantemente tratada pelo Consultor Jurídico https://www.conjur.com.br/2018-abr-16/direito-civil-atual-distincao-entre-prescricao-decadencia-direito-privado e pela revista Direito Contemporâneo (Prof. Otavio Luiz Rodrigues Junior) http://www.direitocontemporaneo.com/wp-content/uploads/2014/02/prescricao-agnelo1.pdf

[8] CALAMANDREI, Pietro. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, São Paulo, Ed. Pillares, 2013.

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  • é advogado, doutor em Direito Comercial Comparado e Uniforme pela Universidade de Roma La Sapienza (Itália) e doutor em Direito, summa cum laude, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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