Diário de Classe

Quando a política abandona o Estado de Direito

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Isadora Ferreira Neves

    é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) como bolsista Capes/Proex e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

14 de dezembro de 2019, 8h00

No Brasil, certos políticos querem afastar o Estado de Direito para caminharem de mãos dadas com o terror. Querem exemplos? Em 2 de outubro de 2018, véspera da eleição, o candidato João Doria declarou que a partir de janeiro a polícia iria atirar para matar [1]. Após sua eleição para governador do estado de São Paulo, Doria não demorou muito tempo para cumprir sua promessa. Já no primeiro semestre de 2019, a polícia militar se destacou por matar uma pessoa a cada dez horas e atingiu o maior número de mortos em dezesseis anos [2]. Uma triste estatística que demonstra que o massacre de Paraisópolis não foi um mero acidente de percurso, mas sim a execução coerente de uma promessa de campanha responsável por ceifar mais nove vidas.

Infelizmente os casos de violência policial ocorridos no estado de São Paulo não são exceção. No Rio de Janeiro também encontramos um governador que sente fetiche por violência. No exercício de seu mandato, Wilson Witzel tem dado constantes declarações em defesa de uma polícia assassina. Tanto é que, em setembro, Witzel acabou com o programa de gratificação que incentivava a diminuição de mortes cometidas por policiais. O fim da gratificação foi anunciado no mesmo dia em que o governador convocou uma coletiva de imprensa para falar da morte da menina Ágatha Vitória Sales Félix, uma criança de oito anos assassinada pela polícia na favela do Complexo do Alemão[3].

As atitudes dos governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro já seriam suficientes para denunciar a presença do terror na segurança pública, mas aí vem a “genialidade” do presidente da República e seu ministro da Justiça para nos presentear com a cereja do bolo: um projeto de lei que visa assegurar a excludente de ilicitude para policiais que matarem em serviço. Jair Bolsonaro e Sérgio Moro querem que a polícia receba um cheque em branco para atuar nas ruas. Ou seja, se policiais já matam muito, com a aprovação do projeto poderão matar com muito mais segurança. Desse modo, como bem lembrou o presidente da Câmara, o deputado Rodrigo Maia, se a excludente de ilicitude já estivesse vigorando, os policiais de Paraisópolis sequer seriam investigados [4].

Diante de posições políticas que legitimam a irresponsabilidade jurídica dos policiais, uma simples questão deve ser colocada: o que permite diferenciar um grupo de salteadores dos agentes da segurança pública? Sabemos que ambos andam armados e sempre utilizam da força para se impor. Para um defensor do Estado de Direito, a diferença está na legalidade democrática. Diferentemente de um salteador, um policial sempre deve prestar contas à Constituição. Se o policial viola a Constituição para agir conforme o seu livre arbítrio, ele se iguala a um salteador. Com o agravante de que, nesse caso, o policial será um salteador de farda, que se utiliza das estruturas do Estado para impor seus próprios desígnios.

No século XVIII, o irlandês Edmund Burke já ensinava que quanto maior é o poder, maior é o abuso. Desconfiado do movimento das guilhotinas na França, o pai do pensamento conservador insistia na fórmula do Estado de Direito para combater os diversos tipos de tirania. Três séculos depois, o que temos no país é o oposto dos ensinamentos de Burke, com os amantes da guilhotina tomando conta do Estado. Constituição, liberdades fundamentais, limitação do poder, direitos humanos e responsabilidade jurídica dos agentes públicos são deixados completamente de lado em nome de um projeto de poder que pretende se consolidar pela via do terror. Isso explica a simpatia do ministro Paulo Guedes pelo Ato Institucional nº 5 em recente declaração.

Outro ponto ainda não pode deixar de ser levantado: se o Estado Democrático de Direito serve à redução de desigualdades, por outro lado a política do terror as acentua com características trágicas e cruéis[5]. O total distanciamento entre a legalidade democrática e a política pode ter graves consequências: a atuação política, quando voltada à violação de garantias constitucionais historicamente conquistadas pela construção de um patamar de dignidade humana, transforma-se na institucionalização da barbárie.

O mais interessante é a aceitação que a política do terror ganha nas ruas. Muitas pessoas acreditam que quanto maior o terror policial, maior a proteção. Foram ludibriadas pelo discurso do medo. A fórmula não é nova. Com base no medo de um monstro imaginário, as pessoas aceitam a política do terror. É o que acontece no romance “O senhor das moscas”, de William Golding. Publicado em 1954, quase uma década após a Segunda Guerra, Golding demonstra como o medo é a fórmula perfeita para a consolidação do terror. O livro conta a história de algumas crianças que, ao tentarem fugir da guerra, vão parar numa ilha em decorrência de um acidente aéreo. Para sobreviverem nessa ilha, as crianças tentam estabelecer uma ordem minimamente civilizada. Acontece que o medo aos poucos vai envenenado as relações entre elas. Até o ponto em que a carnificina se instaura sob a liderança de um grupo formado por caçadores.

Para além da velha dicotomia política direita/esquerda, o conflito que se apresenta atualmente no país é uma disputa entre civilização ou barbárie. A sobrevivência do Estado de Direito — que entre nós sempre teve dificuldade para se estabilizar — depende de um amplo enfrentamento contra os obscurantistas que cultuam o terror. Não entender o que está em jogo, na atual circunstância, pode comprometer gravemente as conquistas democráticas que acumulamos após o fim da ditadura militar. Além disso, para quem ainda se sente seduzido pelo terror, é bom lembrar que a guilhotina costuma devorar seus próprios cultuadores. Robespierre que o diga… Portanto, ou salvamos a Constituição da política do terror, ou afundamos junto com ela. Esperamos que o país tenha a lucidez para tomar o caminho certo.

 


[1]RODRIGUES, Arthur. A partir de janeiro, polícia vai atirar para matar, afirma João Doria. In: Folha de São Paulo. São Paulo, 2 out. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/a-partir-de-janeiro-policia-vai-atirar-para-matar-afirma-joao-doria.shtml/. Acesso em: 12 dez 2019.

[2]DALAPOLA, Kaique. PM mata a cada 10 horas e atinge maior número em 16 anos. In: R7. São Paulo, 2 ago. 2019. Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/pm-mata-a-cada-10-horas-e-atinge-maior-numero-em-16-anos-02082019. Acesso em: 12 dez. 2019.

[3]BOECHAT, Isabel. Witzel acaba com incentivo à diminuição de mortes cometidas por policiais no RJ. Rio de Janeiro, 24 set. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/24/witzel-acaba-com-incentivo-a-diminuicao-de-autos-de-resistencia-no-rj.ghtml. Acesso em: 12 dez. 2019.

[4]MAIA diz que PMs de Paraisópolis 'não estariam sendo investigados' se excludente de ilicitude fosse aprovado. In: G1 SP. São Paulo, 9 dez. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/12/09/maia-diz-que-pms-de-paraisopolis-nao-estariam-sendo-investigados-se-excludente-de-ilicitude-fosse-aprovado.ghtml. Acesso em: 12 dez. 2019.

[5]FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA – FBSP. Anuário brasileiro de segurança pública. Edição XIII. São Paulo, 2019.

Autores

  • é professor de Introdução ao Direito no Imesb (Bebedouro-SP), doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), como bolsista CAPES/PROEX. Membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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