Opinião

"Caneta azul, azul caneta": Conselhos profissionais e vacilante jurisprudência

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

3 de dezembro de 2019, 18h41

Nas últimas semanas, viralizou, nas redes sociais, uma espécie de “canção” — ou seja lá o for —, onde o tema girava, basicamente, ao derredor das seguintes frases “caneta azul, azul caneta/caneta azul tá marcada com minhas letra (…)”.

Adianto ao leitor que o autor da “música”, Manoel Gomes (e que, para nossa surpresa, diz possuir ainda mais de 20 mil novos sucessos), é, para a jurisprudência nacional, músico, a despeito de não estar inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil — OMB.

Aqui em terras tupiniquins, quando se fala sobre Conselhos Profissionais, sobressai a polêmica. Tal fato se passa, principalmente, em decorrência da vacilante jurisprudência, que não segue uma só tônica, ora denotando uma natureza mais pública aos conselhos, ora lhes garantindo uma conotação mais privada. Bem certo é que, para se afastar da armadilha, os tribunais se saem à brasileira, utilizando-se da tal natureza jurídica “sui generis”, onde se faz comportar, bem se veja, qualquer conceito, mas que, na prática, nada ou pouco define.

Comecemos, pois, pelo que, superficialmente, diz o Supremo Tribunal Federal quanto ao assunto. No julgamento do RE nº 938837, o STF definiu tese de repercussão geral fixada pelo Plenário, no sentido de que “Os pagamentos devidos em razão de pronunciamento judicial pelos conselhos de fiscalização não se submetem ao regime de precatórios”. Ou seja, o STF destacou que os conselhos, embora sejam autarquias especiais, não estão sujeitos à administração ou supervisão direta de qualquer órgão público e nem recebem recursos do Estado. Mesmo assim, exercem atividades típicas do Estado e, por isso, são pessoas jurídicas de direito público.

Pendem, no STF, os julgamentos da ADC 36, da ADI 5.367 e da ADPF 367, todas submetidas à relatoria da ministra Carmem Lúcia. Apertadamente, em tais ações, questiona-se o regime jurídico a ser aplicado aos Conselhos Profissionais, se estatutário ou celetista. Há quem sustente a ideia de que, tão logo definidas estas balizas, por meio da finalização dos julgamentos aí lançados, restará também definida, de forma peremptória, a natureza jurídica dos tais conselhos, o que não condiz com a verdade.

Por seu turno, considerando apenas o enfoque contrato de trabalho/forma de contratação de pessoal, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) ora afirma a necessidade de concurso público[1], bem como destaca a imprescindibilidade de ato demissional motivado[2], ora afirma a impossibilidade de deferimento de estabilidade a estes empregados, na forma do artigo 41 da Constituição Federal: “Este Tribunal Superior tem se manifestado no sentido de que os empregados dos conselhos profissionais não são detentores da estabilidade prevista no artigo 41 da Constituição Federal”[3].  Ou seja, a jurisprudência do próprio TST é manifestamente inconsistente.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a polêmica só aumenta. O próprio STJ fixou vários entendimentos (consolidados até o dia 11/10/2019), por meio de sua “Jurisprudência em Teses”, abordando, nas edições 135 e 136, o tema “Conselhos Profissionais”. Entre tantas divergências, também internas, o STJ chega mesmo a desfazer a natureza jurídica trabalhista das relações mantidas com os conselhos profissionais,  ao estabelecer que “A atividade fiscalizatória exercida pelos conselhos profissionais, decorrente da delegação do poder de polícia, está inserida no âmbito do direito administrativo, não podendo ser considerada relação de trabalho e, de consequência, não está incluída na esfera de competência da Justiça Trabalhista”[4]. Contradizendo a natureza jurídica autárquica, o mesmo STJ acentua que: “O benefício da isenção do preparo, conferido aos entes públicos previstos no art. 4º, caput, da Lei n. 9.289/1996, é inaplicável aos conselhos de fiscalização profissional”[5].

Mesmo diante dessa controvérsia quanto à necessidade de os conselhos se submeterem a preparo, não lhes sendo aplicável a isenção prevista em lei, o mesmo Superior Tribunal de Justiça pontua que “Os conselhos de fiscalização profissionais possuem natureza jurídica de autarquia, sujeitando-se, portanto, ao regime jurídico de direito público”[6]. Ou seja, mesmo sem levar em consideração a manifesta dissonância jurisprudencial entre os vários tribunais[7], o STJ se contradiz internamente, ao prever, textualmente, o regime de Direito Público e estatutário, abolindo a possibilidade de isenção de preparo[8].

Quanto à contratação pública, o Tribunal de Contas da União não possui uma tese tão rígida quanto à aplicabilidade de determinada forma de contratação. Para o TCU, aplica-se a Lei nº 8.666/93, porém, este mesmo Tribunal, em vários julgados, admitiu determinadas flexibilizações, destacadamente quanto a pontos que não ferem a estrutura principiológica prevista no caput do artigo 37 da Constituição Federal.

Em se tratando de inovações legislativas, a Proposta de Emenda à Constituição Federal nº 108 (PEC 108) tende a considerar a não obrigatoriedade de vinculação aos conselhos profissionais, incluindo o artigo 174-A no texto constitucional, com a seguinte redação: “Art. 174-A. A lei não estabelecerá limites ao exercício de atividades profissional ou obrigação de inscrição em conselho profissional sem que a ausência de regulação caracterize risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”[9].

Dito de outro modo, para além de o artigo 174-B testificar que os conselhos profissionais são pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que atuam em colaboração com o Poder Público, se aprovada a PEC nº 108, preponderará a liberdade de exercício de atividade profissional, sem obrigação de inscrição em conselho profissional, a menos que haja dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social.

Tal posicionamento não é nenhuma inovação, já existindo, na prática dos tribunais, em relação a vários setores e categorias profissionais[10], sendo emblemático o caso da Ordem dos Músicos do Brasil. É alvissareira a Proposta de Emenda à Constituição, pois que prioriza a liberdade quanto ao exercício da atividade profissional, subtraindo, apenas, algumas exigências quando houver situações de risco (à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social). Esqueceu-se o legislador constituinte reformador dos infinitos “caneta-azul/azul-caneta”; sim, eles podem gerar danos à saúde e à ordem social. Ainda há tempo de modificar a PEC nº 108!

[1] (TST – RR: 1126014320065020038, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 22/04/2015, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 30/04/2015)

[2] (TST – RR: RR – 574-89.2012.5.02.0044, Relator: José Roberto Freire Pimenta, Data de Julgamento: 14/08/2019, 2ª Turma)

[3] (TST – RR: 14672320135090021, Relator: Dora Maria da Costa, Data de Julgamento: 22/04/2015, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/04/2015)

[4] STJ, Tese nº 2, Edição 136 – Jurisprudência em Teses.

[5] STJ, Tese nº 3, Edição 136 – Jurisprudência em Teses.

[6] STJ, Tese nº 1, Edição 135 – Jurisprudência em Teses.

[7] Se o STJ diz que o regime é estatutário (vide Tese nº 2, da Edição nº 135), imagina-se não poder haver causas tramitando na Justiça do Trabalho; mas há.

[8] Este é um mero exemplo; há outros, decerto, que demonstram a divergência manifesta no posicionamento do Superior Tribunal de Justiça.

[9] Mensagem no 276/2019, OF nº 232/2019, inserto no Diário da Câmara dos Deputados nº 134, Ano LXXIV, sábado, de 03 de agosto de 2019. 

[10] Nesse sentido, “A atividade de músico é manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão, de modo que a exigência de inscrição na Ordem dos Músicos do Brasil – OMB, bem como de pagamento de anuidade para o exercício de tal profissão, torna-se incompatível com a Constituição Federal de 1988” – STJ, Tese nº 4, Edição 136 – Jurisprudência em Teses; “Não há comando normativo que obrigue a inscrição de professores e de mestres de artes marciais, ou mesmo de danças, de capoeira e de ioga, nos Conselhos de Educação Física, porquanto, à luz do que dispõe o art. 3º da Lei n. 9.696/1998, essas atividades não são próprias dos profissionais de educação física” – STJ, Tese nº 11, Edição 136 – Jurisprudência em Teses.

Autores

  • é sócio do Guilherme Carvalho & Advogados Associados, doutor em Direito Administrativo, mestre em Direito e Políticas Públicas, ex-procurador e vice-presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA).

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