Embargos Culturais

A Dama de Paus e as tragédias familiares que são tragédias de todos nós

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de agosto de 2019, 8h00

Dama de Paus, de Eliana Cardoso[1], é surpreendente romance que se desdobra ao longo de um jogo de cartas. O livro é convite para reflexão em torno da condição feminina, dos desentendimentos e dos mistérios da vida, do patriarcalismo, da intolerância e da criminalidade passional. É também profundo estudo sobre os valores da sociedade do interior de Minas Gerais, especialmente como preponderantes na década de 1970.

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Os lances do jogo de cartas são entrecortados por memórias e reminiscências da narradora. Ambientado no noroeste de Minas Gerais, em Pedra Bonita de Paracatu, uma pequena cidade que hoje conta com sete mil habitantes, o enredo é entrecortado por surpresas. É um daqueles livros que não se consegue parar de ler. O romance enfrenta temas centrais da condição humana, como a traição conjugal, a frustração da vida familiar e, principalmente, a exploração e o aviltamento das mulheres. A seriedade da narrativa é envolvente, o que faz do livro, mais do que um texto feminista, um manifesto humanista. Dá vontade de ler de novo.

A narradora, Dona Maia, discorre sobre duas tragédias familiares. A morte da filha (Flora) e o suicídio da neta (Marcelina). Nascida em uma família abastada, casou-se com um líder da cidade (Miguel). Foi infeliz no casamento. Porém, o que mais lhe atormentava era a culpa que sentia por causa da morte da filha e do suicídio da neta. O romance também pode ser lido sob o prisma da culpa. É mais um tema freudiano tratado com competência.

Esse intrigante livro é dividido em capítulos curtos (Retrato, O grande amor de Flora, O abraço, Em Roma, O tiro, Jogo duplo, A suicida, Traições). A autora desperta no leitor um estado de constante tensão. As revelações e as dúvidas vão recorrentemente ocorrendo. Tem-se a impressão de que os conflitos se desdobram no tempo e na medida do carteado. Simbolicamente, o primeiro capítulo se chama Ouros, copas, paus, espadas.

Dona Maia (a narradora) e Miguel (o marido) tiveram duas filhas (Flora e Tainá). Tainá está jogando com a mãe e participa da discussão. Flora casou-se com Lucas, de algum modo por imposição do pai. Do casamento nasceu Marcelina. A infelicidade do casamento (e no fecho do romance a situação de Lucas é explicada, o que aterroriza o leitor e, ao mesmo tempo, fornece uma chave interpretativa para o drama) sugere porque Flora traiu Lucas, aproximando-se de Guy, um personagem pernóstico e ensimesmado. A intervenção do pai de Flora separa o casal adulterino (Guy também era casado).

A crescente infelicidade de Flora a aproxima – – inclusive – – do namorado da filha. As cenas finais são eletrizantes. As revelações são surpreendentes. Nesse ponto, tem-se a impressão de que se lê um romance policial. O assassinato de Flora e o suicídio de Marcelina são os pontos de inflexão do romance.  As suspeitas do assassinato caem sobre Lucas, o marido ciumento. O uxoricídio é o pano de fundo desse belo livro. Trata-se de assunto recorrente na moral interiorana, que a partir de meados da década de 1970 se afastou da legítima defesa da honra como mitigante da culpabilidade. Seria o tempo de um novo mantra porque, afinal, quem ama não mata. Ou, não ama?

 O caso Raul Fernando do Amaral Street (Doca) ilustra essa transição. No dia 30 de dezembro de 1976, por volta das 4 da tarde, na Praia dos Ossos, em Cabo Frio, Doca assassinou a esposa, em caso turbulento. O júri reuniu-se quatro anos depois. Evandro Lins e Silva defendeu o acusado. A condenação em primeira instância foi de dois anos de detenção, com direito a sursis. Mais tarde, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio anulou o julgamento e Doca foi condenado de modo bem mais pesado. Esse caso rumoroso, que o livro não relata, parece, no entanto, ao leitor mais atento, como um circular aviso de incêndio, que ronda as pouco mais de 100 páginas desse envolvente livro.

Dama de paus é um texto comovente. Ao fim, a autora desmonta qualquer conjectura apressada. Bem engendrado, com personagens bens definidos, o livro é um extrato da realidade e um libelo em favor de uma atitude de vida mais compreensiva. O drama denuncia o patriarcalismo e o autoritarismo. Há muita provocação nas entrelinhas. É um livro que faz pensar. A narradora também fala pela voz da neta suicida, que deixou um diário.

Destinado ao leitor sensível e não obscurantista, o livro permite muitas leituras e abordagens, filosóficas, psicanalíticas, históricas, sociológicas, jurídicas. Desse último ponto de vista, jurídico, o livro revela que uxoricídios, além de abomináveis, são complexos, e não ocorrem tão somente com tiros e envenenamento. Há também a morte moral, não natural, quando a personalidade do outro é aniquilada. Pode haver morte mais lenta e cruel do que esta? Do ponto de vista filosófico, o livro retoma o velho problema da tragédia grega; afinal, detemos livre-arbítrio sobre nossa condição ou somos mero falsete do destino?

Eliana Cardoso é economista de formação. Nasceu em Belo Horizonte, é Ph D em Economia pelo Massachusetts Institute of Techonology (MIT). Atuou no Banco Mundial, em brilhante carreira. Lecionou em Boston, Yale e Georgetown. Dama de Paus levou merecidamente a 3ª edição do prêmio Kindle de literatura.

A Dama de Paus é uma tragédia familiar, mineira, que retrata as tragédias que são de todos nós. É um livro que ilustra um curso de direito de família, uma intervenção no tribunal do júri e a fascinante qualidade da literatura brasileira contemporânea.

 


[1] CARDOSO, Eliana, Dama de Paus, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. 128 p.

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