Opinião

Notas históricas sobre "pessoa perigosa" e a deportação sumária da Portaria 666

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  • Karina Quintanilha

    é advogada mestra em Ciências Sociais pela PUC-SP e integrante da Comissão de Organização do Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas na Universidade de São Paulo (USP).

7 de agosto de 2019, 7h07

No dia 26 de julho, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, publicou portaria que é marco desse governo na violação a direitos conquistados na Constituição Federal, como a presunção de inocência e ampla defesa.

A portaria institucionaliza a ideia de “pessoa perigosa” para fins de impedimento de ingresso no território nacional, repatriação e deportação sumária de “suspeito”, mesmo sem uma sentença condenatória, com apenas 48 horas para tentativa de recurso.

Na história brasileira, a ideia de “pessoa perigosa” em procedimentos de expulsão esteve inicialmente, durante o Império, vinculada à punição de africanos escravizados e libertos acusados de envolvimento em rebeliões, como a Revolta dos Malês.

No início da República, por exemplo, até mesmo a capoeira — incorporada à cultura brasileira — era considerada uma ameaça sujeita à expulsão.

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Se é certo que há mais de um século no Brasil termos como “nocividade”, “pessoa perigosa”, “conveniência” e “interesses nacionais” estão ligados a um projeto racista de embranquecimento da população, e também à repressão política de pessoas consideradas subversivas, há motivos para acreditar que a Portaria 666 inaugura um novo capítulo na virada punitiva do Estado brasileiro.

Trata-se, como analisa o sociólogo italiano Pietro Basso, de inferiorizar os imigrantes no plano jurídico e simbólico, seja perante a si mesmos, seja perante as populações e os trabalhadores nativos.

A ideia de “pessoa perigosa” na raiz do pensamento colonial e ditatorial
A Revolta dos Malês nas ruas de Salvador, em 1835, desencadeou uma série de medidas repressivas de cunho social, político e jurídico com o objetivo de promover a expulsão em massa de centenas de escravos e libertos africanos.

Por meio do livro Rebelião Escrava no Brasil: A História do Levante dos Malês, do historiador João José Reis (2003), e da pesquisa de Ricardo Pirola (2012), temos conhecimento de que:

as expulsões foram executadas mediante desvio do Código Criminal da época sob a justificativa de que “nenhum deles goza de direito de Cidadão, nem privilégio de estrangeiro”.

Para defender a retirada compulsória dos africanos contra quem as autoridades não haviam conseguido nenhuma prova incriminadora, um grupo de 320 fazendeiros, dentre eles pequenos proprietários de escravos, chegou a assinar uma petição na qual os africanos eram qualificados como bárbaros que “não representam o mundo político e civilizado”.

A petição foi protocolada no Parlamento nacional, enquanto que um ofício havia sido encaminhado pelo ex-juiz de Direito que presidia a província ao ministro da Justiça contendo os seguintes termos:

mandar deportar para fora do Império aqueles pretos africanos libertos, que achando- se presos por indícios de suspeitos de cúmplices na insurreição, não forem afinal sentenciados pelo Júri: assim como todos aqueles que para o futuro se julgarem perigosos.

O autor conta que o pedido foi aprovado por decreto sem constrangimentos e fortalecido pela Lei 9, de 13 de maio de 1835, dando as bases para uma política de expulsões para além do caso do levante dos Malês.

Outra lei que se seguiu (Lei 10, de 10 de junho de 1835, proposta em 1833) teria representado o auge da discriminação e repressão da legislação criminal do Império por facilitar a condenação e execução da pena de morte.

É, porém, no início da Primeira República, em 1890, que surge expressamente no Código Criminal a “deportação”, “como constava na literalidade da lei, ou expulsão de estrangeiros, como era registrado nos julgados do Supremo Tribunal Federal, dois termos que ainda se confundiam naquela época, até a primeira definição legal dos institutos, a partir de 1907, quando foi editada a primeira lei de expulsão”, como indica Ana Luisa Zago de Moraes em sua tese de doutorado sobre a imigração no Brasil, publicada em 2016. A pesquisadora revela que:

A possibilidade de aplicação da pena de expulsão, assim como em relação ao delito de vadiagem, decorreu da política de limpeza da sociedade em face dos inimigos do progresso da Primeira República, dentre eles os escravos libertos e os próprios estrangeiros, não mais “imigrantes” úteis à colonização de áreas inabitadas, mas um perigo para os habitantes das cidades.

À essa altura, até mesmo a capoeira, considerada uma ameaça cultural, poderia ser um ato punível com a expulsão.

Jogar Capoëra – Danse de la guerre (Johann Moritz Rugendas, 1835)

A perseguição contra ex-escravizados e determinados grupos de estrangeiros como indesejáveis naquela época era fruto tanto do medo com relação às lutas de resistência quanto das transformações sentidas em decorrência da Revolução Industrial, que exigia novas bases sociais para a exploração do trabalho no modo de produção capitalista, forjando a continuidade da exploração através da divisão do trabalho por categorias como raça, gênero e classe.

Com o início dos movimentos grevistas, que realizam diversas greves em 1906 e 1907 reivindicando menores jornadas de trabalhos e proibição do trabalho infantil, entre outras pautas, o governo instituiu a Lei Adolfo Gordo, que previa a deportação de imigrantes envolvidos em sindicatos e manifestações. Os jornalistas Juliana Sada e Rodrigo Valente notam que nessa época a classe trabalhadora chegou a organizar pautas de resistência às expulsões: “O fim da política de expulsão, inclusive, estará entre as reivindicações do movimento operário no período”.

Já no governo de Getúlio Vargas (1930-1945), a principal mudança é que a prática de expulsões se consolidou por meio de decisões monocráticas do Poder Executivo, sem passar pelo Poder Judiciário. O processo de expulsão tinha início com um inquérito policial, no qual o delegado determinava a “nocividade” do indivíduo e encaminhava para o Ministério da Justiça sob apreciação do presidente da República. Segundo entrevista com a pesquisadora Mariana Cardoso publicada no artigo de Sada e Valente:

Apesar de que o tema era classificado como ultrassecreto pelo Itamaraty, o acesso parcial aos documentos oficiais da época mostram que “os decretos expulsórios informavam que o estrangeiro havia sido expulso por ‘nocividade’ ou ‘indesejabilidade’, expressões que por sua generalidade poderiam ter qualquer sentido”.

O caso de Olga Benário, expulsa com sua filha recém-nascida e depois morta em um presídio nazista de Adolf Hitler, embora seja o caso mais conhecido de expulsão como já retratado em obras literárias e cinematográficas, não foi um caso isolado.

O presidente Getúlio Vargas assinou decreto expulsando Olga Benário do território brasileiro em agosto de 1936 “sob a alegação de ser perigosa à ordem pública, constituindo elemento nocivo aos interesses do País”, tendo sido negado o seu Habeas Corpus, como constatou Ana Luisa Zago de Moraes.

Já no período da ditadura empresarial-militar (1964-1985), instituída em momento de grande efervescência internacional e nacional dos movimentos progressistas principalmente na América Latina, consolidou-se a doutrina da segurança nacional de combate aos “inimigos” externos e internos, com o emprego de tortura, assassinato ou expulsão, com ou sem processo administrativo, de suspeitos de subversão. Segundo a Comissão Nacional da Verdade, a ditadura chegou a instituir o banimento de nacionais, dentre os quais Frei Tito de Alencar e Madre Maurina Borges, além de promover o exílio político de artistas como Chico Buarque, Elza Soares e Gilberto Gil.

Logo após a deposição de João Goulart, o Brasil se envolveu em uma séria questão diplomática na prisão que levou à expulsão sem provas, em 1965, de chineses pelo chamado “crime de subversão”. Conhecida como “Caso dos Nove Chineses”, foram reveladas uma série de violações a direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro, como revela o jornalista Elio Gaspari.

Pesquisadores como Ana Luisa Zago de Moraes entendem que, em matéria de política migratória, durante a ditadura foi efetivada uma política de “segurança das migrações”, o que foi implementado por meio da desvinculação do direito penal da repressão ao imigrante. Ou seja, a principal via de criminalização se tornou a própria lei migratória por meio do Estatuto do Estrangeiro, datado de 1980.

É no final da ditadura que a ideia de ameaça é construída em torno de um inimigo nacional e transnacional no contexto da invenção de uma massiva guerra às drogas direcionada preferencialmente às “mulas do tráfico” que cumprem longas penas como se fossem grandes traficantes. O Brasil atingiu em 2018 a terceira maior população carcerária do mundo, sendo a imensa maioria negra, de baixa renda e aguardando julgamento relacionado à acusação por envolvimento nas escalas mais baixas do tráfico de drogas — parte de um projeto de encarceramento em massa e genocídio da juventude negra operante nas favelas brasileiras, como denunciava a vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada no centro do Rio de Janeiro.

Ruptura radical: a portaria de deportação sumária como marco de arbitrariedades pós-Constituição Federal de 1988
A Portaria 666, editada em 25 de julho pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, dispõe sobre "o impedimento de ingresso, a repatriação e a deportação sumária de pessoa perigosa ou que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal".

Está previsto que a suspeita de envolvimento em crimes é suficiente para prender e deportar arbitrariamente “pessoa perigosa” ou que contrarie a Constituição com apenas 48 horas para tentativa de defesa.

Trata-se de uma ruptura radical com os direitos conquistados desde 1988 na Constituição Federal, com aberta violação da presunção de inocência, da ampla defesa e do devido processo legal, resgatando uma história de violência na relação do Estado brasileiro com estrangeiros.

A nota técnica elaborada pela Defensoria Pública da União demonstra como a Portaria 666 fere a Constituição Federal, a Lei de Migração (13.445/2017) e a Lei do Refúgio (9.474/1997), afrontando ainda tratados internacionais com os quais o Brasil se comprometeu.

Já na época da aprovação da Lei de Migração, após os 20 vetos de Michel Temer para restringir direitos e dificultar a regularização migratória, manobras legislativas buscaram desconfigurar o rosto humano da lei que reconhece os migrantes como sujeitos de direito. O decreto de regulamentação (Decreto 9.199/2017) aprovado por Temer é um exemplo de manobra feita às pressas em direção à criminalização da migração.

Agora, no governo Bolsonaro e sob a tutela de Moro, trata-se de uma escalada de violações a direitos, sob a justificativa de combate ao terrorismo, tráfico de drogas e outros crimes que já possuem meios próprios de punição pela lei. É evidência dessa escalada a retirada do status de refugiado de três paraguaios por Sergio Moro no dia 23 de julho, colocando essas pessoas em risco, como denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A Portaria 666, no entanto, cria um novo paradigma de arbitrariedades utilizando-se de um regulamento ilegal.

Trata-se de uma insegurança jurídica que atinge a todos migrantes, seja no polo documentando ou indocumentado, mas também os brasileiros no exterior, em razão da política de reciprocidade entre países.

Considerando que, mesmo com as garantias previstas na Lei de Migração, violações a direitos já são uma realidade na invisibilizada política de deportação e expulsão do Brasil, é necessário revogar a portaria da deportação sumária de Moro, que institucionaliza arbitrariedades e dá sinais de um embate mais direto e amplo contra as liberdades democráticas.

Em razão da urgência colocada pela publicação da portaria, diversas vozes têm se levantado contra a deportação sumária no sistema de Justiça, na universidade, em organizações dos direitos humanos e no Congresso Nacional. Por outro lado, as chamadas "bancada da Bíblia" e "bancada da bala" também vêm se articulando desde a discussão da nova Lei de Migração no Congresso Nacional, com ataques inclusive a indígenas transfronteiriços. Bolsonaro havia publicado na época que a “nova lei sobre migração pode trazer o caos para o Brasil”.

Pietro Basso aponta um contexto de ascensão do racismo de Estado em que medidas contra imigrantes são defendidas:

“as políticas contra os imigrantes produzem efeitos negativos para a existência dos próprios trabalhadores nativos porque eles não estão separados dos trabalhadores imigrantes por uma Muralha da China. Exatamente por essa razão, é necessária uma abundante e incessante injeção de venenos racistas para dividi-los, no pensamento e nos sentimentos, dos imigrantes com quem tenderão a se aproximar na vida cotidiana, muito mais do que já acontece hoje (e mais do que esses mesmos poderes gostariam)”.

Para o autor, dentre as estratégias eleitorais nos países centrais do capitalismo, não se trata tanto de políticas contra a imigração, mas de políticas anti-imigrantes, cuja finalidade não é nenhuma imigração, é a imigração sem nenhum direito.

Diante da profunda crise política e econômica que se agrava no Brasil, podemos constatar a crescente mobilização desses discursos, alinhados com representantes da extrema direita na Europa e nos Estados Unidos, mas também na América Latina, como é o caso da Argentina, que coloca os imigrantes como bode expiatório das mazelas sociais, como aponta o argentino Pablo Ceriani, especialista em direitos dos trabalhadores imigrantes.

É um discurso que busca confundir a opinião pública, colocando nos próprios sujeitos a culpa das escolhas políticas dos governos neoliberais que elevam a violência e desigualdade. Não por acaso, no Brasil, os que defendem discursos anti-imigrantes são os mesmos que defendem políticas que são igualmente atentatórias às garantias de direitos conquistados na Constituição, como a reforma previdenciária e o “pacote anticrime” de Sergio Moro.

O contexto do covarde assassinato de Mestre Moa do Katendê logo após a eleição presidencial de Bolsonaro e a crescente criminalização da política, como as ameaças ao jornalista Gleen Greenwald, talvez deem pistas mais claras sobre a aposta política que leva o ministro Sergio Moro a editar uma norma que inocula os venenos racistas contra os imigrantes em um país onde essa população representa apenas 1% da população nacional, sem nenhuma relação com o aumento da criminalidade.

Conhecer as histórias daqueles que resistiram a políticas autoritárias do passado e trazer elementos concretos do impacto de políticas arbitrárias que autorizam a banalização de direitos fundamentais parece ser o principal desafio para evitar que novas vidas sejam destruídas pelo Estado brasileiro.

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