Academia de Polícia

MP não pode transformar investigações fracassadas em inquéritos

Autor

  • Henrique Hoffmann

    é delegado de Polícia Civil do Paraná autor pela Juspodivm professor da Verbo Jurídico Escola da Magistratura do Paraná e Escola Superior de Polícia Civil do Paraná mestre em Direito pela Uenp colunista da Rádio Justiça do STF e ex-professor do Cers TV Justiça Secretaria Nacional de Segurança Pública Secretaria Nacional de Justiça Escola da Magistratura Mato Grosso Escola do Ministério Público do Paraná Escola de Governo de Santa Catarina Ciclo Curso Ênfase CPIuris e Supremo.

23 de abril de 2019, 11h32

Spacca
Caricatura Henrique Hoffmann [Spacca]Sabe-se que, no Brasil, a investigação criminal é tarefa exclusiva da Polícia Judiciária, porquanto a vontade do legislador constituinte foi expressa nesse sentido.[1] Segundo a Lei Maior, a Polícia Judiciária (Polícia Federal e Polícia Civil) é o órgão vocacionado para realizar apuração de infrações penais comuns (artigo 144, §§1º e 4º).[2]

O modelo de persecução penal brasileiro, melhor do que a maioria dos países (ao menos na teoria, pois a prática é afetada pela falta de investimentos), consagrou maior divisão de poderes, não permitindo que a acusação e a defesa acumulem a função investigativa. Trata-se de salutar limitação, verdadeira garantia do cidadão no sentido de que só pode ser investigado por órgão imparcial (Polícia Judiciária), e não por parte interessada no futuro resultado do eventual processo.

Não é novidade que a investigação criminal não consta no rol de atribuições do artigo 129 da Constituição, porquanto o constituinte originário expressamente rejeitou várias emendas que dariam tal poder ao Ministério Público. Contudo, o STF[3] admitiu a investigação pelo Parquet por meio do chamado procedimento investigatório criminal.[4]

O Tribunal Constitucional, no entanto, não deu uma carta em branco para o Ministério Público. Muito pelo contrário: colocou limites,[5] dentre os quais excepcionalidade, subsidiariedade, observância de regras que norteiam o inquérito policial, e condução da investigação sob sua direção do início até o fim. Isso impede que o Ministério Público resolva abrir mão do PIC e transformá-lo em um IP ao seu bel-prazer.

Não há como negar que a apuração criminal deve ser feita em determinado prazo, não podendo se eternizar sob pena de violar a duração razoável da investigação.[6] Encerrada a coleta de vestígios, com ou sem comprovação da existência do crime e de sua autoria, o caderno apuratório deve ser remetido ao Poder Judiciário (artigo 10, §1º do CPP e artigo 19, §1º da Resolução 181/17 do CNMP).

O encerramento da investigação de crime se dá com a remessa ao magistrado competente para manifestação, seja para a continuidade da persecução criminal com o recebimento da peça acusatória, seja para o encerramento da perseguição estatal por meio do arquivamento do caderno apuratório. Em outras palavras: ainda que a apuração penal tenha fracassado, persiste o dever de o órgão investigador presidir o procedimento até sua conclusão e submetê-lo à fiscalização judicial.

O membro do Ministério Público não tem a opção de se livrar do PIC por meio do seu envio à Polícia Judiciária, requisitando a instauração de IP. Assim fazendo, estaria obstando o regular controle exercido pelo Poder Judiciário, transferindo indevidamente a presidência da investigação para outro órgão, e retrocedendo equivocadamente o procedimento investigatório ao estágio embrionário de notícia crime.

Ora, o controle judicial sobre a investigação criminal não é opcional. A presidência da apuração criminal deve incidir sobre todo o procedimento, de modo que a instituição que iniciou a investigação deve conduzi-la até o fim. E a noticia criminis é que se converte em procedimento apuratório, e não o contrário.

Se o órgão acusador entende que sua investigação naufragou, que peça o arquivamento em vez de pretender usar a Polícia Judiciária como tábua de salvação. Da jurisprudência que autorizou a investigação pelo Parquet não se extrai a permissão para que o Ministério Público contorne o mecanismo de arquivamento por meio de indevida conversão do PIC em IP, requentando um procedimento malogrado e transferindo a responsabilidade do seu insucesso para a Polícia Judiciária.

Fácil perceber que o Ministério Público não pode decidir arbitrariamente pela extinção anômala da sua investigação, por meio da odiosa tentativa de transmudar a apuração ministerial em policial.

A doutrina não diverge:

Há situações em que o membro do Ministério Público dá início à investigação solitária, sem inquérito que a acompanhe. Passados meses, por vezes anos, sem ter chegado a um termo interessante, vale dizer, não havendo descoberto crime algum, não pode o promotor/procurador da República enviar o seu procedimento investigatório criminal frustrado para a polícia judiciária, com requisição de instauração de inquérito.

Em primeiro lugar, a polícia judiciária não é órgão subalterno do Ministério Público, que possui, constitucionalmente, o seu controle externo, vale dizer, a fiscalização dos atos policiais. Em segundo lugar, a polícia judiciária não foi comunicada da investigação, que se iniciou muito tempo antes, para que pudesse efetivamente colaborar; logo, não é depósito de PICs malsucedidos. Seria desconsiderar a figura do Delegado de Polícia. Em terceiro lugar, como já se disse, assumindo o ônus investigatório, o Ministério Público deve concluí-lo e, não havendo provas, pleitear o seu arquivamento ao Judiciário. Lembremos que, arquivado o inquérito ou o PIC, somente poderá ser desarquivado com provas substancialmente novas. Então, remeter o caso para que a polícia continue a investigação frustrada é contornar o direito consolidado de quem é investigado de fazer cessar tal intromissão em sua vida, a menos que surjam novas provas. Em quarto lugar, basta fazer o raciocínio inverso, vez que não há hierarquia entre as instituições, ou seja, nenhum tipo de subordinação. Imagine-se o delegado findar o inquérito, sem solução, e encaminhá-lo ao Ministério Público sugerindo que prossiga a investigação a partir dali. Seria considerado um rebelde. Ora, utilizar o poder requisitório que lhe foi conferido constitucionalmente para tergiversar, fazendo uma investigação frustrada prosseguir, constitui evidente desvio funcional, gerando constrangimento ilegal. (…)

Se o Ministério Público tanto quis investigar sozinho (insisto sempre: de modo solitário; sem qualquer outra instituição imiscuindo-se), que o faça bem feito agora. Mas não tem sentido falhar e “determinar” que outra instituição, com a qual não possui vínculo de subordinação, prossiga de onde parou.[7]

Essa atípica conduta se mostra ainda mais teratológica por ser escorada no exercício abusivo do poder requisitório. O fato de o MP possuir o poder de requisitar a instauração de inquérito policial não significa que possa usar esse expediente como subterfúgio para praticar ilegalidade.

Afinal, por requisição deve-se entender a:

Exigência para a realização de algo, fundamentada em lei. Assim, não se deve confundir requisição com ordem, pois nem o representante do Ministério Público, nem tampouco o juiz, são superiores hierárquicos do delegado, motivo pelo qual não lhe podem dar ordens. Requisitar a instauração do inquérito significa um requerimento lastreado em lei, fazendo com que a autoridade policial cumpra a norma e não a vontade particular do promotor ou do magistrado.[8]

Logo, a requisição só deve ser cumprida se tiver base legal, pouco importando a vontade pessoal do emissor, sob pena de permitir que o capricho pessoal revogue o ordenamento jurídico.

Nessa trilha, se o membro do MP remeter para a delegacia o procedimento investigatório criminal requisitando a instauração de inquérito policial, o delegado de polícia deve fundamentadamente deixar de cumprir a requisição. Como resultado de sua análise técnico-jurídica (artigo 2º da Lei 12.830/13), precisa determinar o retorno dos autos ao Ministério Público.

Situações como essa demonstram a importância da independência funcional da autoridade policial:

A autoridade policial, munida do poder discricionário na condução da investigação, só deve satisfações à lei. (…) A condição de autoridade que reveste o cargo de delegado, faz com que aja com completa independência na condução da investigação policial, desautorizando qualquer determinação que seja contrária à sua convicção.[9]

O livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia deriva do fato de o inquérito policial ser um procedimento discricionário (CPP, artigo 14). A isenção e imparcialidade, por sua vez, são consectários lógicos dos princípios da impessoalidade e moralidade, previstos expressamente no artigo 37, caput da Constituição Federal.[10]

A autoridade policial deve conta de seus atos tão somente à Constituição, às leis e à sua consciência, interditando-se a qualquer outro agente público a expedição de ordens a respeito de como agir nos casos em que oficia, desde que, por óbvio, suas decisões estejam devidamente fundamentadas.[11]

Portanto, não é difícil notar a abusividade da tentativa de desovar a investigação ministerial na delegacia e transformá-la, como num passe de mágica, em investigação policial, anomalia frankensteiniana capaz de ferir os mais comezinhos princípios constitucionais.


[1] HOFFMANN, Henrique. Investigação exclusivamente criminal é atribuição da polícia judiciária. Revista Consultor Jurídico, nov. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-nov-27/academia-policia-investigacao-exclusivamente-criminal-atribuicao-policia-judiciaria>. Acesso em: 27 nov. 2018.

[2] Quanto aos crimes militares, que representam a esmagadora minoria de ilícitos penais, cabe a Polícia Militar ou Forças Armadas sua apuração (artigo 144, §4º da CF).

[3] STF, RE 593.727, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 14/05/2015.

[4] Sem previsão legal, mas apenas em Resolução 181/17 do próprio Conselho Nacional do Ministério Público.

[5] HOFFMANN, Henrique; NICOLITT, André. Investigação criminal pelo Ministério Público possui limites. Revista Consultor Jurídico, jul. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-30/opiniao-investigacao-criminal-mp-possui-limites>. Acesso em: 30 jul. 2018.

[6] STF, Inq 4.458, Rel. Min Gilmar Mendes, DJ 11/09/2018; STJ, HC 345.349, Rel. Min Nefi Cordeiro, DJ 10/06/2016.

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 173.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 151.

[9] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. JusBrasil, out. 2008. Disponível em: <http://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/147325/investigacao-preliminar-policia-judiciaria-e-autonomia-luiz-flavio-gomes-e-fabio-scliar>. Acesso em: 30 nov. 2014.

[10] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.

[11] HOFFMANN, Henrique; SANNINI, Francisco. Independência funcional do delegado de polícia. In: FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique (Org.). Temas Avançados de Polícia Judiciária. v. 1. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 41.

Autores

  • Brave

    é delegado de Polícia Civil do Paraná. Professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação), da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola da Magistratura de Mato Grosso, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e do Senasp. Mestre em Direito pela Uenp. Coordenador do Iberojur no Brasil. Colunista da Rádio Justiça do STF e autor e coordenador do Juspodivm. www.henriquehoffmann.com

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