Limite Penal

Quando o juiz trata o Ministério Público como incapaz ou incompetente

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

14 de setembro de 2018, 8h05

Spacca
Questão evidente na atualidade é a "crise identitária da jurisdição penal"[1], na medida em que o juiz criminal não sabe quem é, que lugar deve ocupar e como deve agir na estrutura dialética do processo penal. Sem falar na imensa dificuldade em responder à seguinte pergunta: a que expectativas[2] deve corresponder o juiz criminal? Será que ele deve corresponder às expectativas populares-punitivistas criadas? É responsável pelo "combate a impunidade"? Pela "limpeza social"? Deve corresponder às expectativas políticas criadas? Ou deve corresponder às expectativas constitucionais, como garantidor da eficácia do sistema de garantias individuais estabelecidas pela Constituição?

Ao não responder satisfatoriamente a essas questões, o juiz criminal assume um lugar e uma função que não lhe correspondem, inserindo-se assim na perspectiva do sistema (neo)inquisitório, com uma postura ativista (juiz-ator) absolutamente incompatível com a estrutura acusatória demarcada pela Constituição e, principalmente, ferindo de morte o princípio supremo do processo penal: a imparcialidade do julgador (Pedro Aragoneses Alonso e Werner Goldschmidt).

Obviamente que, para compreender esse tema, não se pode mais pensar "sistemas processuais penais" com o olhar do medievo, como fazem alguns reducionistas de plantão. É preciso situar a discussão no marco do processo penal do século XXI, à luz do contraditório (Fazzalari) e da necessidade de criarmos condições de possibilidade para a imparcialidade (pensada na sua complexidade, a partir dos problemas apontados pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, mas também a partir de toda a doutrina da originalidade cognitiva, do efeito primazia e da teoria da dissonância cognitiva, já explicadas em outras oportunidades nesta coluna).

Nesse contexto surge mais um problema: qual o lugar do Ministério Público? Ora, partindo da premissa carnelutiana[3] de que o Ministério Público é uma parte artificialmente construída para ser o contraditor natural do sujeito passivo (afastada assim a contradição semântica de "parte-imparcial", além de sua ilogicidade), na transição do sistema inquisitório para o acusatório, compreende-se como é importante que tenhamos partes claramente demarcadas para a construção da imparcialidade (também com lugar do juiz) do julgador.

Ou seja, o Ministério Público é fundamental para que se tenha um processo acusatório, com a retirada de poderes do juiz (poderes de iniciativa e gestão da prova) e a demarcação de parte ativa, parte passiva e julgador-não-parte (imparcial). Só assim se dá eficácia a outro princípio básico da jurisdição: ne procedat iudex ex officio.

Para tanto, é preciso que se respeite o Ministério Público enquanto parte acusadora. Sem falar que é uma instituição séria e sólida, formada por gente muito bem preparada e competente para acusar e provar sua tese. Ademais, por trás do MP ainda existe toda a polícia judiciária para auxiliá-lo na produção da prova. Então, se a polícia+Ministério Público não forem capazes de provar a acusação, será que deve o juiz "descer" na estrutura dialética para ajudá-los? A resposta é óbvia, sob pena de assumirmos que se trata de um "consórcio de justiceiros", absolutamente inquisitorial e que o processo penal virou um vale-tudo para condenar. Se for isso, então acabou o processo penal brasileiro.

O problema é que muitos juízes não compreenderam essa questão estrutural e o seu "lugar" na estrutura dialética e seguem operando na lógica inquisitorial. Exemplo disso está no juiz que abre a audiência e sai perguntando. Faz toda a inquirição-inquisição até a satisfação de suas expectativas, passando então, ao final, a palavra para as partes, que ficam com a "sobra". Reparem na inversão de valores: as partes, que são as gestoras da prova, são deslocadas para um lugar completamente secundário, quando deveriam ter o protagonismo absoluto.

O juiz que pergunta primeiro trata o Ministério Público como incompetente ou incapaz. Não há terceira opção. Respeitar as partes pressupõe que tenham liberdade tática no tocante às perguntas. Antecipar e se meter em atividade probatória típica da acusação é demonstração de profundo desrespeito. Isso porque se o Ministério Público exerce a ação penal, elege a imputação e é formado em Direito, aprovado em concurso público. Aceitar passivamente que juízes continuem perguntando primeiro significa ou comodidade em ser tratado como menos do que a Instituição merece ou não ter se dado conta da condição de curatelado/tutelado.

Pior é quando vemos promotores defendendo essa situação! Ou seja: quando um promotor aceita ou defende que o juiz deve ir atrás da prova, está assumindo sua incompetência funcional e desmerecendo o seu lugar institucional. Em última análise, não honra a toga que usa e a instituição que representa, na medida em que prega a sua absoluta desnecessidade processual.

A atividade probatória de um juiz democrático é restrita, aliás, nos termos do artigo 212, parágrafo único, do CPP, justamente no sentido de que poderia — respeitada a linha de argumentação já apresentada pelas partes — esclarecer alguma questão nesse sentido, sem que jamais possa inovar nem sair perguntando o que quiser. Mas como o processo penal é ainda povoado por gente que pensa a partir de mentalidade inquisitória (Jacinto Coutinho), rebaixando o lugar e a função do Ministério Público. A audiência de instrução e julgamento acaba tendo as partes como mero coadjuvantes. A luta pelo processo penal democrático pressupõe um giro de sentido que coloque cada um dos personagens em seus devidos lugares. Juiz não é Sherlock Holmes, não é investigador nem muito menos descobridor de verdades reais. Aliás, o jurista que em 2018 ainda acredita em verdade real tem sérios problemas de cognição, porque delira em suas fantasias de totalidade. Esforço por cognição adequada nada tem a ver com verdade real.

No fundo, o juiz que começa perguntando tem desprezo pela função do Ministério Público, que nem sequer pode exercer papel fundamental para angularizar o processo penal. Enquanto os filhos se postam como filhos, jamais ocupam o lugar de pai/mãe. Para se autorizar como adulto, é necessário bancar o jogo e se opor a quem finge te respeitar, mesmo em nome de bons sentimentos. Quem sabe o que é melhor para os outros sempre te trata como incapaz.

Enfim, no processo penal todo juiz que começa perguntando em uma audiência não respeita o Ministério Público, tendo-o como incapaz ou incompetente em sustentar e bancar a acusação, quase inimputável. Parafraseando Cazuza: declare guerra a quem finge te amar; ou continue sendo curatelado/tutelado por quem não te respeita, mas aceite o lugar de inferioridade.


[1] Sobre o tema, entre outros, remetemos o leitor para a obra Fundamentos do Processo Penal, de Aury Lopes Jr, publicada pela editora Saraiva, 2018, cujo capítulo I trata especificamente dessa problemática.
[2] Sobre a "gestão de expectativas" remetemos o leitor para as obras O Ponto Cego do Direito e A hora dos cadáveres adiados, de Rui Cunha Martins.
[3] CARNELUTTI, Francesco. Mettere il pubblico ministero al suo posto. In: Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1953, Volume VIII, Parte I, 257-264.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!