Segunda leitura

O tratamento do Brasil aos refugiados, entre o ideal e o possível

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

21 de outubro de 2018, 8h18

Spacca
A palavra solidariedade, em sentido genérico, indica “um sentimento de identificação em relação ao sofrimento dos outros”.[1] Nós, brasileiros, somos um povo solidário e disto demos prova ao longo de nossa história. Por isto e por não sermos beligerantes, somos recebidos com cordialidade em outros países.

Tivemos no passado migrações em massa, fruto de questões econômicas, como os escravos, trazidos compulsoriamente para trabalhar na lavoura, ou os europeus, fugindo da pobreza em seus países (Alemanha, Itália e outros).

No presente, ela se dá por causas diversas.Reportagem de 17 de outubro de 2017 dá conta que nosso país abriga refugiados de 82 nacionalidades, entre eles da Síria, Angola, República Dominicana, Congo, Colômbia e Líbano.[2]

Os sírios, têm vindo fugindo da guerra que assola seu país, portanto, em busca da própria sobrevivência. Não é novidade a imigração síria, pois no passado para cá vieram e ajudaram no desenvolvimento do país. Sua integração, contudo, é mais complexa do que a dos povos africanos de língua portuguesa, latino americanos ou caribenhos, pois sua cultura é muito diversa, os que vem agora praticam o islamismo[3] e a língua é uma forte barreira.

Haitianos fazem parte de outra grande leva. Segundo Wagner de Oliveira, pesquisador da FGV/DAPP:

O Brasil foi um dos principais destinos dos haitianos a partir de 2010. Se observarmos os mesmos dados do ACNUR (2015), vemos que o número de haitianos que entraram no país sob condição de refúgio ou similar saiu de 7 em 2009 para 595 em 2010, chegando, em 2014, a 29.241. No entanto, esse número é, provavelmente, menor do que o conjunto de todos os haitianos que, de fato, passaram a ter o Brasil como residência. Se analisarmos apenas o mercado formal de trabalho, vemos que o número de registros de haitianos com carteira assinada chegou a 30.484 em 2014, dos quais 29.799 com ano de chegada a partir de 2010.[4]

A vinda de haitianos para o Brasil é resultado da extrema pobreza de seu país, por força de contínuos conflitos armados e de um abalo sísmico em 12 de janeiro de 2010. Sua entrada principal deu-se pelo Estado do Acre, com a concessão de visto humanitário.

Os venezuelanos são um caso à parte e, atualmente, são os que chamam mais a atenção. Sua vinda é fruto da crise econômica e política que atravessa aquele país. Eles vêm em busca de emprego, moradia, e até mesmo de comida.[5]Segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, cerca de 30 mil e 800 venezuelanos vivem no Brasil atualmente.[6]Sua permanência nem sempre é pacífica. Na cidade de Boa Vista, RR, em 7 de setembro passado, um venezuelano foi morto a pauladas sob a acusação de roubo e homicídio.

Essa realidade supera as regras em que o Direito procura enquadrar as diversas espécies de estrangeiros que ingressam em nosso território. A estes tipos diversos que, para cá, migram, seja na busca de uma vida melhor (imigrantes), seja para salvar a própria vida (refugiados), soma-se uma nova categoria,a dos refugiados ambientais.

Com efeito, as previsões sobre as mudanças climáticas não são animadoras, apontando os estudos para a elevação do nível do mar, desertificação e falta de água, fatores que deverão impulsionar levas de migrantes para diferentes regiões. Com propriedade, registra Diogo AndreolaSerraglio “que as modificações do meio ambiente já provocaram impactos à população de diversas partes do globo, exigindo a sua readaptação em novas localidade…”.[7]

Vejamos, agora, como o Direito Internacional trata a matéria.

Em 14 de dezembro de 1950 a Organização das Nações Unidas criou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, com a sigla ACNUR, com a missão de dar apoio aos refugiados de todo o mundo. Em 1951 foi firmada a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados,[8]que no art. 1º, § 2º, condiciona a condição de refugiado à situação dos fatos terem ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e ser a perseguição ─ ou seu temor ─por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.

A limitação no tempo (1951) e a própria condição de refugiado foram abrandadas com o tempo, através do Protocolo de 1967, que reconheceu novas categorias de refugiados, além de Convenções como a da Organização da Unidade Africana (1969) e a Declaração de Cartagena (1984), esta prevendo, também, a hipótese de violação maciça dos direitos humanos.

Não é por acaso que as negociações internacionais avançam timidamente. Os países desenvolvidos, evidentemente, não têm interesse em alargar as possibilidades de ingresso em suas fronteiras. Mais pessoas significa mais gente utilizando os serviços públicos, com a consequente diminuição da oferta ou da qualidade dos serviços aos nacionais.

O Brasil, buscando adaptar as novas necessidades surgidas na última década com as normas, editou a Lei 13.445, em 2017, a qual dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante também princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.

Portanto, agora o Direito interno contempla situações outrora indefinidas e o faz de forma ampla, assegurando no art. 4º, aos que aqui aportam, os mesmos direitos que a um nacional. Por exemplo, acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência, direito à educação pública.

Pois bem, partindo do pressuposto de que somos um povo solidário por natureza e acolhedor por vocação, resta avaliar o planejamento. A permissão de ingresso, com certeza, exige a análise dos efeitos sociais e econômicos decorrentes. É infantil abrir as fronteiras a todos, indiscriminadamente, porque isto só fará com que nem os que entram, nem os que aqui estão, tenham condições de vida digna.

Encontrado o percentual adequado, impõe-se a distribuição de pessoas de forma proporcional à economia, população, nível de aceitação e outros dados estatísticos. A solução jamais poderá ser semelhante à dada pelo governador Tião Viana, do Acre, que colocou haitianos em ônibus e enviou-os, sem aviso prévio, para São Paulo,[9] tal qual faziam prefeitos com mendigos décadas atrás.

O terceiro fator a ser considerado é o das possibilidades de cumprimento da legislação. A Lei dos Estrangeiros de 2017 fez muitas promessas que não são cumpridas nem para os nacionais. Por exemplo, o ensino no idioma das crianças estrangeiras. Será fácil encontrar um professor que fale sírio em uma cidade do interior de Tocantins?

Fácil é concluir que devemos, sim, ser solidários com os que aqui vêm, premidos por diferentes e relevantes razões. Porém, esta solidariedade deve ser exercida com parcimônia, a fim de que não se transforme em prejuízo grave aos nacionais sem que se atenda os estrangeiros.


[1]Significado de solidariedade. Disponível em: https://www.significados.com.br/solidariedade/. Acesso em 18/10/2018.

[2]FARIAS, Adriana. “Sem avisar, Acre envia haitianos para São Paulo”. Revista Veja Online. Data de publicação 19/05/2015. Disponível em <https://vejasp.abril.com.br/cidades/acre-envia-haitianos-para-sao-paulo-sem-avisar/> Data de acesso  19/10/2018.

[3] "O atual fluxo migratório de muçulmanos vindos da Ásia e da África está reconfigurando a cultura e a economia de pequenas e médias cidades do Paraná, um estado historicamente multifacetado na composição étnico-cultural. Já são 24 os enclaves islâmicos, um fenômeno impulsionado nos últimos quatro anos pela diáspora oriunda de 18 países, por causa da fome ou de perseguições políticas. Em 20 cidades paranaenses os muçulmanos estão organizados ou se organizando em torno de uma mesquita, o templo religioso propriamente dito, ou de uma mussala, uma espécie de capela." KÖNING, Mauri. “Diáspora acelera avanço do Islã no PR" Gazeta do Povo. Data de publicação 04/01/2015. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/diaspora-acelera-avanco-do-isla-no-pr-eihwijz2m36zp0dr74obd1q32/ Data de acesso 29/08/2018.

[4] OLIVEIRA, Wagner. Haitianos no Brasil: hipóteses sobre a distribuição espacial dos imigrantes pelo território brasileiro.Disponível em^: http://dapp.fgv.br/haitianos-no-brasil-hipoteses-sobre-distribuicao-espacial-dos-imigrantes-pelo-territorio-brasileiro/. Acesso em 19/10/2018.

[5] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_EiA6PQPaqk. Acesso em 20/10/2018.

[6] Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/29/brasil-tem-cerca-de-308-mil-imigrantes-venezuelanos-somente-em-2018-chegaram-10-mil-diz-ibge.ghtml. Acesso em 18/10/2018.

[7] SERRAGLIO, Diogo Andreola. A proteção dos refugiados ambientais pelo Direito Internacional”. Curitiba: Juruá, 2014, p. 91.

[8] Disponível em: http://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em 20/10/2018.

[9] Reportagem de Eduardo Geraque e César Rosati. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1445933-apesar-de-polemica-governo-do-acre-manda-mais-haitianos-para-sp.shtml. Acesso em 18/10/2018.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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