Opinião

Uma proposta para o saneamento básico (parte 2)

Autor

10 de outubro de 2018, 6h02

Um dos grandes equívocos do modelo institucional do saneamento básico brasileiro é o que faz com que, em 75% das vezes, seja um pequeno município quem contrata a prestação de serviços de uma empresa estadual de saneamento. Não que se entenda equivocado que o saneamento seja competência municipal, porque é política pública diretamente vinculada à urbanização e às diversas políticas municipais, como as de moradia, de regularização fundiária, de uso e ocupação do solo, de proteção ambiental, de manejo de águas pluviais urbanas. Porém, evidente a assimetria que este modelo provoca.

De um lado temos um pequeno município, frágil do ponto de vista técnico e financeiro, mas, mesmo assim, designado como “Poder Concedente”, com “os poderes e deveres para a defesa do interesse público”, e, doutro, o concessionário “submetido ao interesse público, mas que possui protegidos seus direitos, consubstanciados na equação econômico-financeira do contrato”. Estas previsões, teóricas, não se confirmam na prática que, em geral, de um lado, possui municípios incapazes, por razões inclusive de escala, de exercer suas prerrogativas ou de cumprir com seus deveres contratuais, e, doutro lado, empresas poderosas, que, praticamente, se tornam a única responsável pelos serviços.

A experiência internacional, especialmente europeia, é a de municípios que se unem, constituindo consórcio público para contratar os serviços. Com isso, não se afastam as comunidades locais, porém estas alcançam escala adequada para poder exercer o papel de Poder Concedente. Isso explica porque, na Itália, que possui 8.094 municípios, há apenas 71 contratos para a prestação de serviços públicos de abastecimento de água e de esgotamento sanitário.

Mas, como dito, não é esse o modelo brasileiro — apesar de a legislação prever tanto os consórcios públicos, como a prestação regionalizada dos serviços. Contudo, há de se reconhecer que houve tentativas de estabelecer o modelo de prestação regional, em especial no Estado de São Paulo, sob a inspiração do professor Eduardo Yassuda, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, que foi secretário de obras na gestão Abreu Sodré (1967-1971). Porém, prevaleceu o modelo de regionalização instituído pelo regime militar, com fundamento em companhias estaduais, afastando o modelo baseado em bacias hidrográficas e na colaboração com os municípios. Registre-se uma discreta resistência, uma vez que a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) foi a última das companhias estaduais a ser criada, ao final de 1973, no limite do prazo concedido pelo Governo Federal.

Porém, apesar de a escala do contratante ser questão que precisa ser resolvida, parte da solução se dá com um ente regulador técnico e independente, com condições de exercer de forma adequada as atribuições regulatórias, que integram as prerrogativas reconhecidas ao Poder Concedente.

Por meio de reguladores técnicos e independentes as tarifas serão fixadas de forma adequada, módicas para que os serviços sejam acessíveis a todos, porém longe do clientelismo e da demagogia, de forma a que as receitas tarifárias, ao longo do tempo, especialmente havendo recuperação da renda, sejam mais relevantes e possam ser utilizadas para viabilizar investimentos. Além disso, a regulação é importante para que os recursos arrecadados sejam, efetivamente, aplicados em investimentos, e não em aumento desnecessário do custeio ou em mera distribuição de lucros.

Porém, implantar regulação adequada é um desafio. O instituto da regulação foi inserido no saneamento básico por meio da Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB), de 2007. Trata-se de uma novidade. Com isso, não havia, e em muitos aspectos ainda não há, parâmetros para a regulação do saneamento. Não raro, a solução foi adotar critérios de outros setores, especialmente do setor elétrico, o que, por vezes, provoca distorções.

Afora isso, a elaboração de planos, a celebração de contratos, os procedimentos operacionais continuam a ser executados ignorando a existência do regulador. Ainda não se criou um ambiente em que a regulação seja natural, tenha o seu papel claramente definido.

Por fim, há a fragilidade técnica e institucional dos reguladores. Há agências cujos diretores podem ser demitidos a qualquer momento, ou que tomam decisões sem transparência, sem debate público adequado.

Isso torna urgente que o Governo Federal atue no sentido de promover uma política pública de melhoria da regulação do saneamento básico. Não se trata de interferir nos reguladores, cuja autonomia deve ser assegurada, mas de apoiar os reguladores, viabilizando regulação de qualidade.

O Governo Federal já produziu estudos sobre esta política pública, que se implantaria mediante as seguintes fases: (i) agenda; (ii) proposta de normas de referência; (iii) debate público; (iv) aprovação; (v) divulgação e (vi) avaliação dos efeitos da norma de referência.[1]

O primeiro passo é o estabelecimento de uma agenda regulatória, que defina os pontos a ser debatidos e quando. Isso permitirá que os reguladores, os municípios, a academia, as entidades técnicas possam se planejar, de forma a se prepararem para participar do processo de melhoria da regulação. O segundo momento é o de elaborar estudos, inclusive de benchmarking, e, com base neles, apresentar propostas de normas de referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico.

Observe-se que norma de referência não é norma jurídica, não é norma obrigatória, mas mera referência para regulação de melhor qualidade. Por exemplo: uma norma de referência pode prever novos modelos tarifários (os atuais, do início da década de 1970, são anacrônicos porque fundamentados em padrão demográfico daquela distante época). Com isso, cada regulador poderia optar por um desses modelos, realizar as adaptações necessárias e, com maior segurança, patrocinar mudanças em matéria extremamente sensível.

A terceira fase é debater de forma pública a proposta de norma de referência. Como não faz sentido impor norma de referência, ela deve ser negociada, a fim de produzir o máximo de consenso. Natural, assim, que a quarta fase seja a aprovação da norma de referência por órgão colegiado, composto pelas entidades do setor e órgãos do Governo Federal.

A quinta fase é o esforço de divulgação, debates, treinamento, promoção de cursos para que a norma de referência, não raro de denso conteúdo técnico, seja conhecida por seus destinatários. Ao fim, após certo tempo, ocorre a sexta e última fase: avaliar quais efeitos a norma de referência provocou, e se é o caso de corrigi-la ou aperfeiçoá-la, o que poderá influenciar a agenda regulatória, realimentando o processo e produzindo melhorias contínuas na qualidade da regulação.

O Governo Federal seguiu esse caminho na edição da Portaria MCidades 557, de novembro de 2016, que instituiu as normas de referência para a elaboração dos Estudos de Viabilidade Técnica e Econômico-financeira (EVTE) dos contratos de saneamento básico, uma das mais importantes contribuições para assegurar segurança jurídica nos investimentos de saneamento básico. Porém, o processo foi interrompido na “aprovação”, não tendo havido esforços para publicar, divulgar, produzir cursos e treinamentos.

Parece clara a necessidade de uma política federal para a melhoria da qualidade da regulação do saneamento básico. Inclusive, o Governo Federal editou a Medida Provisória 844, que aborda o tema. Neste aspecto, trata-se de proposta legislativa que, corrigida, poderia produzir excelentes resultados.

Porém, para viabilizar a universalização e a melhoria do saneamento básico, apesar de importante, apenas a regulação não basta. São necessárias outras medidas, inclusive legislativas, para assegurar segurança jurídica para os investimentos. A estas questões dedicaremos os próximos artigos.

Autores

  • é sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques – Sociedade de Advogados e diretor da Divisão de Saneamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra (Portugal) e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi consultor do governo federal na elaboração da Lei de Consórcios Públicos (2005), da Lei Nacional de Saneamento Básico (2007) e da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!