Opinião

A taxatividade penal e o problema do nexo causal na corrupção passiva

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

8 de outubro de 2018, 6h37

Spacca
A recente interpretação pela 6ª Turma do STJ (REsp 1.745.410), onde foi relatora a ministra Laurita Vaz, ampliou o tipo penal da corrupção passiva ao permitir a punição do funcionário público mesmo que o ato não esteja relacionado diretamente com o exercício da função.

Segundo a relatora do acórdão, não é necessário que atos praticados pelo servidor público tenham relação direta com a função exercida, o que vale dizer que qualquer outro ato do servidor, ainda que não vinculado especificamente à sua função, poderá ensejar o enquadramento penal por corrupção passiva. Claro, preenchidos os demais elementos do tipo penal insertos no artigo 317, CP.

No voto da eminente ministra constou que a expressão “em razão dela”, prevista no artigo 317 do Código Penal, não se esgota nos atos ou omissões que tenham relação direta e imediata com a competência da função do agente corrupto. Segundo a relatora, não é certo pressupor que o legislador tenha pensado em limitação implícita ao poder e dever de punir.

Conforme explicitou a ministra em seu voto, “trata-se, a meu ver, de nítida opção legislativa direcionada a ampliar a abrangência da incriminação por corrupção passiva, quando comparada ao tipo de corrupção ativa, a fim de potencializar a proteção ao aspecto moral do bem jurídico protegido, é dizer, a probidade da administração pública”.

O problema da decisão é que o argumento não se sustenta pela simples razão que a garantia do Direito Penal reside justamente no princípio da taxatividade dos tipos penais. Isto é, que eles sejam descritos de maneira precisa, não permitindo ao intérprete qualquer abertura na possibilidade de punir fora daquilo do que está ali escrito. Ou seja, não se pode ampliar a abrangência da incriminação por decisão judicial, sob pena de ferirmos o princípio da tipicidade penal (taxatividade)[1].

Veja-se que o princípio da legalidade, com sua dupla significação, formal e material ou técnica, é um dos mais importantes limites ao ius puniendi estatal. A legalidade material ou técnica se concretiza no que se conhece como princípio da taxatividade, que obriga ao legislador a empregar uma técnica de criação normativa presidida pela claridade e precisão de linguagem, que evite termos ambíguos, confusos e pouco claros e, na medida do possível, os elementos normativos, que exigem um esforço compreensivo por parte do intérprete[2]. E isso vale para o termo suscitado no voto — “em razão dela” —, pois se trata nitidamente de elemento normativo do tipo que não pode ter interpretação de forma extensiva no sentido de abranger o que o legislador não disse.

Se a opção legislativa for essa, então a via correta é a alteração do tipo penal em comento para que se diga, expressamente, que o ato de ofício não precisa estar diretamente relacionado com a função exercida pelo servidor. De outro lado, e no sentido contrário do que afirmou o voto condutor do acórdão: foi exatamente isso que buscou o legislador ao limitar a abrangência do tipo penal, justamente para respeitar o princípio da taxatividade[3], garantia limitadora da incriminação dos cidadãos.

No sentido do aqui defendido, deve-se recordar que, sem que ocorra o nexo causal entre a vantagem indevida e a função desenvolvida pelo funcionário público, o fato não se reveste de tipicidade penal (fato atípico)[4].

De outro lado, e ainda não menos grave, o Direto Penal não se presta para proteger “o aspecto moral do bem jurídico protegido”, mas, sim, a proteção efetiva de uma lesão ao bem jurídico tutelado. Portanto, ampliar o alcance do tipo penal parece que vai de encontro à moderna interpretação do Direito Penal na efetiva proteção de bens jurídicos[5].

A exclusiva proteção de bens jurídicos surge como postulado defensor entre o Direito e a moral, na medida que estabelece que apenas bens jurídicos possam ser protegidos pelo Direito Penal[6]. Os meros interesses de caráter moral não são classificados como bens jurídicos, portanto, são excluídos do âmbito de proteção do Direito Penal.

Compreende-se que a persecução penal pela incriminação dos delitos de corrupção tem aumentado nos últimos anos, mas a via correta não pode ser o alargamento das garantias penais, principalmente na interpretação dos tipos, pois, como se sabe, a maior garantia ainda é a certeza da tipicidade penal, o que impede os abusos na momento da aplicação da lei penal.


[1] PACELLI, Eugênio: CALLEGARI, André. Manual de Direito Penal. Parte Geral. 4ª. Edição, São Paulo: Atlas, 2017, p. 103.
[2] PALMA HERRERA, Los Delitos de Blanqueo de Capitales. Madrid: Edersa, p. 467/468.
[3] RODRÍGUEZ MOURULO, Gonzalo. Derecho Penal. Parte General. Madrid: Editorial Civitas, 1978, p. 62.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Corrupção e Anticorrupção. São Paulo: Gen/Forense, 2015, p. 62.
[5] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2ª. Edição. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Gicacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 20.
[6] CANCIO MELIÁ, Manuel; PEREZ MANZANO, Mercedes; Princípios del Derecho Penal (II). In: LASCURAÍN SÁNCHEZ, Juan Antonio (org.). Introducción al Derecho Penal, Pamplona: Thomson Reuters, 201, p 89.

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