Segunda Leitura

A redefinição das funções dos servidores do Judiciário no século XXI

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de outubro de 2018, 8h00

Spacca
O mundo passa por mudanças radicais e, goste-se ou não, todos nós somos envolvidos nesta nova realidade. Cada dia a máquina mais substitui o ser humano. Um exemplo. Nos bares dos Estados Unidos vem se tornando comum fazer o pedido por um iPad na mesa, sem contato pessoal.[i] Isto significa menos custos para o proprietário e menos pessoas trabalhando Do outro lado da moeda, menos contato pessoal e mais desempregados. É uma realidade inevitável e que nos assusta.

Contudo, em boa parte dos tribunais os novos tempos não chegaram. A única mudança visível é a passagem do processo de papel para o eletrônico, mesmo não sendo esta uma novidade, pois teve início em 2004. Recusando adaptar-se, os Tribunais mais conservadores distanciam-se da sociedade, aplicam mal os recursos do orçamento e colaboram para que aumente o rol dos que atacam o Judiciário.

Com o único objetivo de chamar a atenção e estimular a discussão do problema, aponto alguns exemplos de mal direcionamento e desperdício de recursos humanos.

Começo pelo ingresso do servidor no Poder Judiciário. Sabidamente, a maioria dos cargos públicos é provida por concurso, Uma parte menor, todavia, geralmente em funções de alta direção, admite nomeação pelo critério da confiança.

Não há nada de errado neste sistema. Os concursos, exigência constitucional, democratizam o ingresso e legitimam o acesso às funções públicas. Os cargos em comissão permitem que, em dadas circunstâncias, sejam chamadas pessoas fora dos quadros funcionais, em razão de seus conhecimentos específicos e da própria confiança (CF, artigo 39, parágrafo 3º). Não será demais lembrar que o nepotismo foi proibido pelo Conselho Nacional de Justiça.[ii]

Focando nos que ingressam por concurso público, já que são a grande maioria, verifica-se que o Brasil segue o modelo de Portugal, ou seja, o candidato admitido é direcionado para uma atividade em que haja cargo vago, podendo depois ser transferido de uma para outra área. É o caso, por exemplo, dos tribunais de Justiça de Santa Catarina e do Pará.

Na verdade, essa tradição secular não atende às atuais necessidades do Poder Judiciário. Ela vem de um tempo em que a administração judiciária reduzia-se a poucos funcionários que trabalhavam nos serviços de distribuição, contadoria, arquivo e coisas semelhantes. Isto nada tem a ver com a complexidade dos tribunais brasileiros onde, não raramente, trabalham milhares de magistrados e servidores, além de contratados de empresas particulares (terceirizados), estagiários e voluntários.

Para administrar este complexo universo, por vezes maior do que empresas multinacionais, é preciso gente especializada. Profissionais de tecnologia, orçamento público, arquitetura e até mesmo de práticas de sustentabilidade, devem ter conhecimentos específicos. Essas áreas administrativas nada têm a ver com a atividade jurisdicional, ou seja, com aqueles que atuam em secretarias ou gabinetes dando ao andamento dos processos, fazendo audiências, assessorando juízes e desembargadores. São dois mundos paralelos e diferentes.

No entanto, na maioria dos órgãos judiciários, principalmente nos de segunda instância e nos tribunais superiores, os servidores migram de funções jurisdicionais para administrativas e vice-versa. Não raramente, um assessor de desembargador, que passou anos preparando votos, vai ser diretor de recursos humanos, da Escola da Magistratura ou de outra unidade administrativa, quando seu chefe assume o comando. Ou, ao inverso, deixa uma função de chefia administrativa para passar a preparar votos. Perdem-se anos de experiência e de qualidade nos serviços.

Fácil é ver que a solução deve ser dada a partir da admissão. Os concursos devem ser diversos, objeto de editais distintos. E quem entra em uma área, nela vai até a aposentadoria.

Os que atuam na área administrativa devem ostentar títulos próprios. A formação exigida deve ser a de administrador ou gestor público e não de bacharel em Direito.[iii] Estes, por vezes vão ao extremo do bacharelismo, citando princípios constitucionais para defazer-se (ou não) de um clip. Mais complicam do que fazem fluir a administração.

Cargos de maior relevância, como Diretor ou Secretário-Geral, diretores de setores relevantes como engenharia, devem privilegiar os que ostentam titulação acadêmica ou profissional (mestrado por exemplo) nas suas áreas. Assim se faz na maioria dos Tribunais norte-americanos.

Até mesmo a admissão e designação dos estagiários devem seguir esta linha. Eles devem auxiliar em locais relacionados com seus cursos de graduação. Esta é a orientação do TJ-RS há mais de 15 anos. Não tem sentido o estagiário do setor da memória do Tribunal cursar Direito. Um estudante de História, obviamente, estará mais capacitado.

Depois, dentro das funções, tal identidade deve ser preservada. Atualmente os Tribunais estimulam os servidores a capacitar-se. Ótimo. Na Justiça Federal um doutor tem incorporado 3% a mais nos seus vencimentos, um mestre ou especialista, pouco menos. Na Justiça dos 27 tribunais existentes a situação varia.

Ocorre que, há casos em que os cursos nada tem a ver com a função. De que vale a um diretor de secretaria fazer mestrado em Direito e ser a sua pesquisa sobre o estudo dos direitos humanos nas tribos amazônicas? Óbvio que deveria estar matriculado em um programa de administração ou gestão pública, pesquisando algo de utilidade concreta para o seu trabalho.

Esta é uma medida que não depende de lei, mas sim de bom senso e pulso forte de quem administra o tribunal. O dinheiro público, pagando, ainda que parcialmente, um curso para os seus servidores, ou dando-lhes, após concluído, acréscimo salarial, não pode ser desperdiçado em estudos inadequados, por mais sedutores que sejam.

Outro aspecto essencial é o dos cargos que o tempo torna obsoletos. No Superior Tribunal de Justiça, durante os julgamentos, surgem os chamados “capinhas”, cuja função é colocar a capa preta nos ministros antes que comece a sessão.[iv] Sem comentários.

Uma secretaria por vara, tal qual nos tempos do Ouvidor Pardinho, que foi servente do Ofício de Provedor das Fazendas dos Defuntos e Ausentes, Capelas e Resíduos de São Paulo, tornou-se disfuncional. Com o processo eletrônico os serviços foram reduzidos, raramente alguém vai à Justiça saber o andamento de um processo. Uma secretaria única, como faz há anos a Justiça Federal de São Paulo nos juizados especiais, é o caminho. Diretores de secretaria e servidores podem ser aproveitados no assessoramento juiz.

Outro aspecto preocupante é a tendência de juízes assumirem funções administrativas, como secretários de conselhos ou tribunais. Tal prática, que também ocorre no Ministério Público de alguns estados, é flagrante desvio de função. Além disto, desmotiva os servidores que aspiram ocupar os cargos de maior importância e veem-se substituídos por alguém que já ganha mais e foi preparado para outras funções. O juiz aprimorar-se em administração da Justiça é ótimo, mas ocupar um lugar típico de servidores é fora de propósito.

Pois bem, na transformação que ora se impõe, mudanças, readaptação, eficiência, comunicação com a sociedade e transparência, são essenciais para que a Justiça preserve sua autoridade e o respeito da sociedade. Teóricos temos muitos. O que precisamos é de gestores que implementem melhoras reais.


[i] Disponível em: http://www.pdvseven.com.br/?gclid=Cj0KCQjwuuHdBRCvARIsAELQRQH3N_9xzJxeHG50nXPeWgYHj3jXoWI9NeM68wTTHhZT4DI6DiZsbjoaAsj1EALw_wcB . Acesso em 5/10/2018.

[ii] Conselho Nacional de Justiça, Resolução nº 7, de 18/10/2005. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/stories/docs_cnj/resolucao/rescnj_07.pdf. Acesso em 5/10/2018.

[iii] No Tribunal de Justiça de Rondônia há cargos privativos de administração e afins, ciências contábeis, ciências econômicas, ciências sociais, ciências políticas, sistemas de informação (TI); administração pública etc.

[iv] Há casos em que o “capinha” por interesse pessoal e sensibilidade do (a) ministro (a), auxilia no gabinete, o que é louvável.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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