Opinião

Uma proposta para o saneamento básico no Brasil (parte 1)

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3 de outubro de 2018, 6h38

Basta apontar qualquer lugar do mapa do Brasil que se poderá dizer, sem medo de errar, que ali falta investimento em saneamento básico. Essa é uma realidade trágica, pois somos um país cujos dados oficiais indicam quase 35 milhões de pessoas sem acesso à água potável e mais de 110 milhões sem acesso a uma rede de esgotamento sanitário.

A situação já foi pior e melhorou muito após a edição da Lei 11.445, de 5 de janeiro de 2007 — a Lei Nacional de Saneamento Básico (LNSB). Essa lei prevê responsabilidades para a União, os estados e os municípios; instituiu regras para a celebração de contratos para a prestação dos serviços; bem como tornou o planejamento e a regulação obrigatórios. Isso foi suficiente para elevar em muito os investimentos que, em 2014, alcançaram o patamar de R$ 14 bilhões no ano.

Porém, isso é muito pouco. Em 2013, o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) estimou que, para universalizar o saneamento básico até 2033, seriam necessários investimentos no valor de R$ 485 bilhões. Em uma conta simplista, R$ 24 bilhões por ano. Em 2018, o valor de investimentos deve ser um pouco superior a R$ 9 bilhões. Logo, hoje, o Brasil investe menos que a metade.

Observe-se que a questão não é apenas de mobilizar mais recursos financeiros, mas de ter uma estrutura para aplicar bem esses recursos. Para tanto, o planejamento é fundamental. Porém, a pesquisa Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic), divulgada em setembro de 2018 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que apenas 41,5% das 5.570 cidades brasileiras tinham elaborado o seu plano de saneamento básico em 2017.

O planejamento é a principal ferramenta para se aplicar os recursos com eficiência e eficácia.

O saneamento básico é um serviço que utiliza infraestrutura que, em sua maior parcela, se localiza no âmbito das demais infraestruturas urbanas. Muitas vezes o acesso ao saneamento básico depende de outras políticas públicas, como as de regularização fundiária e de habitação. Além disso, essencial que haja uma adequada política de recursos hídricos, para que o saneamento básico possa se organizar de forma adequada. Não é uma tarefa simples, e a ausência de planejamento municipal, que incide no local onde estão os déficits de saneamento, prejudica em muito o enfrentamento do problema.

Apesar disso, aumentar os investimentos deve ser a prioridade, até porque o valor de investimento previsto pelo Plansab (R$ 485 bilhões, em valores de 2013) parece subestimado. Por exemplo, ele não levou em consideração os enormes investimentos necessários para se assegurar os serviços de saneamento em razão da mudança climática, que gerou séria crise nos serviços de saneamento nos últimos anos. Além disso, investir em saneamento significa, também, recuperar e modernizar infraestruturas e operações existentes, bem como promover o uso consciente dos serviços, em especial para combater o índice de perdas dos sistemas de saneamento atuais, que beira 38%. Não faz sentido investir para trazer e tratar mais água que, em grande parcela, será desperdiçada.

Como viabilizar todos esses investimentos?

A resposta a essa pergunta não é simples. O primeiro aspecto que precisa se ter em conta é que o Brasil passa por uma crise fiscal, sendo que, para enfrentá-la, adotou “teto de gastos federais” estabelecido por emenda constitucional, teto cujo valor corresponde à “despesa primária paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos e demais operações que afetam o resultado primário, corrigida em 7,2% e, para os exercícios posteriores, ao valor do limite referente ao exercício imediatamente anterior, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA”. Ou seja: a despesa primária do governo federal está “congelada” nos patamares de 2016 — ano em que pouco se investiu em saneamento básico, por causa da crise fiscal.

Isso significa que o aumento do gasto federal em saneamento básico implicaria em diminuição de outros gastos, como, por exemplo, o pagamento de vencimentos aos servidores públicos. Afora isso, a despesa previdenciária, em seu crescimento vegetativo, já é suficiente para ameaçar o cumprimento do teto de gastos. Como do ponto de vista macroeconômico, pelo menos no curto prazo, não parece haver margem para a revisão do valor do “teto de gastos”, evidente que os investimentos em saneamento básico não poderão contar com montantes relevantes do Orçamento Geral da União (OGU). Há que se buscar outras fontes, sendo natural que a primeira delas seja a receita das tarifas.

Há muito espaço para que sejam expandidas as receitas tarifárias. A pesquisa de orçamentos familiares do IBGE de 2008-2009 mostrou que, do valor despendido pelas famílias com tarifas, apenas 15% é com água e esgoto. Basta comparar esse valor com o despendido com energia elétrica (38%) e com telefonia (34%), para se constatar que, em termos relativos, nos gastos familiares, dois serviços de saneamento básico — o de água e o de esgoto —, apesar dos enormes custos para as suas implantações e operações, respondem por parcela pequena do orçamento familiar.

Com isso, tão logo haja o aumento da renda das famílias, parte dessa parcela de aumento deve ser direcionada para as tarifas de saneamento básico, gerando receitas para custear ao menos parte dos investimentos. Isso significa que será necessário se fortalecer muito a regulação dos serviços de saneamento básico, para assegurar que esses reajustes de tarifas ocorram ao longo do tempo, ao largo das pressões populistas e clientelistas. Contudo, evidente, que, com a reforma tarifária, será necessário maior atenção às famílias de menor renda, bem como com o subsídio cruzado, para que os municípios mais pobres, ou onde os serviços possuam custos elevados, não tenham a sua saúde pública prejudicada.

Fundamental, também, que estas novas receitas não venham a induzir maior ineficiência de prestadores, mediante desmedido aumento do custeio com pessoal ou com despesas de patrocínios ou de publicidade, ou para que não se transformem apenas em maiores dividendos para acionistas, dentre eles inclusive a própria administração pública. É necessário se assegurar que tais receitas, de fato, sejam destinadas para o investimento em saneamento básico. E, novamente, a regulação dos serviços é um grande desafio, porque ela será o garante não só de tarifas mais adequadas, mas de que tais novas receitas tarifárias se traduzirão em efetivos investimentos, melhorando os níveis de cobertura, de eficiência e de resiliência dos serviços.

Entretanto, apenas gerar receita tarifária para investimentos não resolve muito. As receitas estarão no futuro, e os investimentos são necessários no presente. Por causa disso, também passa a ser prioridade modelagens contratuais que estabeleçam segurança jurídica para se investir hoje acreditando-se em receitas futuras. Além disso, o setor público também sofre fortes restrições para se endividar, porque basta celebrar um contrato de operação de crédito, mesmo que lastreado em receitas futuras, para que, contabilmente, seja aumentada a dívida pública, cujas exigências macroeconômicas atuais exigem viés de queda.

Evidente que, em tal panorama, será necessário assegurar que as modelagens contratuais estimulem o setor privado a fazer os investimentos, especialmente os lastreados com a receita tarifária futura, assumindo os riscos daí derivados. Porém, não é qualquer modelagem contratual que pode ser considerada válida, mas, apenas, as que assegurem, adequadamente, o interesse público, inclusive o de que os investimentos sejam realizados de forma racional, ou, em outros termos, sejam eficientes e eficazes.

Vê-se que um dos problemas centrais do saneamento básico é viabilizar mais investimentos, mas os instrumentos para isso são (i) melhorar a regulação dos serviços; e (ii) estabelecer segurança jurídica para os novos investimentos. É a partir desses aspectos que se poderá construir uma proposta para enfrentar os graves problemas do saneamento básico brasileiro. Voltaremos a isso nos próximos artigos.

Autores

  • é sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques – Sociedade de Advogados e diretor da Divisão de Saneamento da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Coimbra (Portugal) e bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Foi consultor do governo federal na elaboração da Lei de Consórcios Públicos (2005), da Lei Nacional de Saneamento Básico (2007) e da Lei da Política Nacional de Resíduos Sólidos (2010).

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