Opinião

Soriano Neto e a doutrina da vedação do comportamento contraditório

Autor

  • Venceslau Tavares Costa Filho

    é advogado doutor em Direito pela UFPE professor de direito civil da UPE Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

6 de maio de 2018, 13h38

Pode-se afirmar que o direito dos contratos está assentado basicamente sob dois pilares fundamentais: a autonomia privada e a confiança. O ordenamento jurídico conferiu aos particulares a prerrogativa de proceder a modelagem de certas relações jurídicas, em um dado âmbito restrito.

A autonomia privada consistirá justamente no direito conferido aos particulares de participar diretamente da formação de suas obrigações e direitos, que serão geralmente impostos em razão da celebração de contratos, mas também pela celebração de negócios jurídicos unilaterais.[1] A tutela da autonomia privada assegura, portanto, que o contrato vincule as partes apenas naquilo que foi efetivamente querido pelos contratantes.[2] Ao lado do respeito a autonomia privada como espaço de modelagem das relações jurídicas dos cidadãos, deve caminhar a tutela da confiança. A confiança na palavra dada é um princípio fundamental do direito dos contratos.[3] A fidelidade (ou respeito) à palavra dada integrará o fundamento da regra dos “pacta sunt servanda”, ao qual se soma a veracidade, que exclui o engodo da vida contratual. Tais elementos fundamentam a confiança no comportamento do outro e na fé em relação ao que se prometeu; de modo que são essenciais ao desenvolvimento pleno do tráfico negocial.[4]

Além das funções integrativa e interpretativa, a boa-fé objetiva desempenha também uma função de controle. A boa-fé objetiva estabelece limites ao exercício dos direitos subjetivos, das ações, exceções, pretensões, etc. O titular do direito não pode exceder os limites fixados pela boa-fé, sob pena de incorrer na prática de ato ilícito (artigo 187, Código Civil).[5] Os eventuais direitos e deveres impostos em virtude do contrato podem sofrer limitações quanto ao exercício tendo em vista os lindes da boa-fé objetiva.

No sentido de explicitar o alcance da relação jurídica obrigacional, especialmente no tocante aos deveres de lealdade e boa-fé; o legislador alemão promoveu o acréscimo do seguinte dispositivo no § 241 do Código Civil alemão (BGB): “Pode a relação obrigacional, de acordo com o seu conteúdo, vincular qualquer das partes a ter o especial apreço pelos direitos, bens jurídicos e interesses da outra”. Disto resulta um dever de lealdade, compreendida como “permanente orientação até a alma do outro” (dauernde Hinwendung zur Seele eines andern), a vedar toda astúcia malévola, todo o dolo; e obriga a levar em consideração os interesses do outro pólo da relação jurídica.

Decorre daí, portanto, um conjunto de deveres pertinentes à lealdade e boa-fé a incidir sobre as relações jurídicas em geral, a despeito do regramento contratual ou de declarações de vontade em sentido diverso.[6] Este dever de considerar os interesses do outro contratante, rompe o antigo paradigma do contrato como uma espécie de relação onde se verifica a presença de interesses antagônicos, ou ainda, como relação na qual os contratantes só se preocupam com os seus próprios interesses.

Torquato Castro, antigo Catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife e membro da comissão responsável pelo anteprojeto que originou o Código Civil vigente, pode ser considerado um dos primeiros civilistas nacionais a defender a necessidade de superação deste suposto antagonismo. Tal antagonismo deve ceder espaço para o que ele chamava de “visão global da obrigação”, que impunha a necessidade de coordenação dos interesses do credor e do devedor para a realização de um só interesse considerado comum a ambos: a realização da prestação.[7]

Portanto, cada parte deve levar em conta os interesses da outra, sob certas circunstâncias, por ser esta uma exigência da lealdade na relação jurídica. Assim, a confiança em um comportamento alheio é digna de proteção jurídica. Destarte, toda pessoa que, em razão do seu comportamento, passa a impressão de ocupar certa posição jurídica deve ser tratada enquanto tal. Os atos que induzem ao erro, o dolo e o comportamento arbitrário e contraditório (venire contra factum proprium) constituem infrações ao dever de lealdade.[8] A doutrina da vedação do “comportamento contraditório” (venire contra factum proprium), que se desenvolveu a partir das aplicações da boa-fé parece ter sido impulsionada pela publicação em 2005 de “A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium”, de Anderson Schreiber, pela editora renovar.

Segundo Gustavo Tepedino, Professor Titular de Direito Civil da UERJ, o mencionado livro de Anderson Schreiber seria “a primeira a tratar do tema na literatura jurídica nacional.[9] Na esteira do ilustre catedrático de direito civil da UERJ, muitos estudiosos do direito civil também apontam a obra de Anderson Schreiber como a obra pioneira sobre o tema no Brasil. [10] Não obstante as respeitáveis opiniões em sentido diverso, entendemos que a primeira referência doutrinária nacional ao brocardo do venire contra factum proprium deve-se ao Professor José Soriano de Souza Neto (ou, Soriano Neto)[11], quando da publicação de um profundo estudo sobre a teoria do ato jurídico em sentido estrito[12], e de pareceres por ele emitidos a referir situações práticas de aplicação do brocardo, na mais do que centenária Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife.

No corpo do mencionado estudo, faz referência à obra de Erwin Riezler – “Venire contra factum proprium – Studien in Römischen, Englischen und Deutschen Civilrecht” -, publicada em Leipzig, no ano de 1912.[13] Entretanto, Soriano Neto deixa de desenvolver a temática relativa ao brocardo do venire contra factum proprium neste texto. Mas, vai retomar o argumento da vedação do comportamento contraditório a fim de sustentar posição defendida em judicioso parecer sobre os efeitos do reconhecimento da filiação, verbis: “É, também, ponto pacífico na doutrina que o marido não pode fundar a contestação da paternidade do filho, nascido, anteriormente, de sua atual mulher e legitimado pelo subseqüente casamento, na exceção de diversos coabitadores, isto é, de que, no momento da concepção, outros tiveram igualmente, relações sexuais com ela.

Isto, como escreve Crome, se contradiria com a circunstância de que ele mesmo desposou a mãe. Exclue-se, pois, a exceção pela presunção de causalidade das relações sexuais da mãe com o seu posterior marido.”[14] Tal supressão da exceção de diversos coabitadores, nos termos formulados por Soriano Neto, decorre do princípio da confiança, de modo a preservar a situação de confiança legitimamente gerada. No venire contra factum proprium está um imperativo de coerência, pois impede “que se aja em determinado momento de uma certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vá contra aquela conduta tomada em primeiro lugar”.[15]

Este comportamento alheio a despertar a confiança pode se traduzir em reiteradas ações ou omissões. Em Portugal, fala-se em supressio e surrectio. Na Alemanha, em Verwirkung e Erwirkung. A supressio, ou preclusão, diz respeito à “supressão de determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo”. Já a surrectio alude ao aparecimento “de uma situação de vantagem em virtude de não ter sido feita qualquer oposição à situação fática verificada por um determinado período de tempo”. Está-se diante, portanto, de uma forma de repercussão do tempo nas situações jurídicas.[16


1 ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Traduzido por Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 71.

2 BARCELLONA, Pietro; CAMARDI, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napoli: Jovene Editore, 2002, p. 203.

3 ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Traduzido por Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 72.

4 COING, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p. 146.

5 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 167.

6 COING, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p. 146-147.

7 CASTRO, Torquato. Prefácio. In: COSTA JÚNIOR, Olímpio. A relação jurídica obrigacional: situação, relação e obrigações em direito. São Paulo: Saraiva: 1994, p. XVI.

8 COING, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p. 183.

9 TEPEDINO, Gustavo. Prefácio. In: SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2016.

10 Cf: BALZANO, Felice. O venire contra factum proprium no processo civil brasileiro: o princípio dairretroatividade. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [Tese de doutorado], 2016, p. 125. Disponível em: https://sapientia.pucsp.br/bitstream/handle/19837/2/Felice%20Balzano.pdf Acesso em: 26 de abril de 2018; FARIAS, Cristiano Chaves de. A aplicação do abuso do direito nas relações de família: o venire contra factum proprium e a supressio/surrectio. Disponível em: http://www.linselins.com.br/wp-content/uploads/2015/11/artvenireBAIANA.pdf Acesso em: 26 de abril de 2018.

11 Cf: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Contornos doutrinários e jurisprudenciais da boa-fé objetiva. In: MARINONI, Luiz Guilherme (org.). Precedentes jurisprudenciais: direito contratual. São Paulo: RT, 2014, V. III, p. 96-114. Disponível em: https://www.academia.edu/10052344/Contornos_doutrin%C3%A1rios_e_jurisprudenciais_da_boa-f%C3%A9_objetiva Acesso em: 26 de abril de 2018.

12 SOUZA NETO, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, a. LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife.

13 SOUZA NETO, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, a. LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 14.

14 SOUZA NETO, José Soriano de. Eficácia da legitimação por subseqüente matrimônio e ação do filho legitimado para investigar paternidade diferente da resultante da legitimação. Revista Acadêmica, a. LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 301.

15 DUARTE, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo código civil. Série grandes temas de direito privado – v. 2. São Paulo: Método, 2004, p. 425.

16 DUARTE, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo código civil. Série grandes temas de direito privado – v. 2. São Paulo: Método, 2004, p. 427.

Autores

  • é advogado, doutor em Direito pela UFPE, professor de direito civil da UPE, Vice-Presidente da Associação de Direito de Família e Sucessores – Seção Pernambuco (ADFAS-PE) e Diretor da Escola Superior de Advocacia da OAB-PE.

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