Tempos sombrios

"Advogadas conquistaram direitos, mas estão longe da igualdade com homens"

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10 de junho de 2018, 8h00

Spacca
Apenas a segunda mulher a presidir o Instituto dos Advogados Brasileiros em 175 anos de existência, Rita Cortez acredita que seu exemplo pode ajudar a advocacia a diminuir a desigualdade entre os gêneros. Com isso, ela espera que mais mulheres liderem escritórios e entidades como as seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil.

Rita, que é especialista em Direito Trabalhista e sócia do AJS – Cortez & Advogados Associados, assumiu a presidência do instituto no começo de maio. Ela substituiu o criminalista Técio Lins e Silva, que, para ela, “recolocou o IAB como uma entidade de destaque no cenário nacional”.

Mas mesmo com todos esses esforços, o momento atual do Brasil é sombrio para a classe, aponta a presidente do IAB. Segundo ela, há uma “criminalização da advocacia” em curso. E os principais alvos dessa cruzada são os profissionais que atuam nas áreas penal e trabalhista.

À frente do tradicional instituto, Rita Cortez busca lutar pelas garantias dos advogados e pela afirmação dos direitos fundamentais. Porém, essa tarefa não cabe apenas à categoria. Para ela, somente com uma educação forte é que os brasileiros vão compreender a importância dessas garantias constitucionais.

Leia a entrevista:

ConJur — Como a senhora se sente assumindo uma instituição como o IAB, que foi fundada em 1843 e tem uma grande relevância para a advocacia brasileira?
Rita Cortez
Não é fácil. O IAB é a instituição jurídica mais antiga das Américas. É do IAB que surge, inclusive, a Ordem dos Advogados do Brasil — era Instituto da Ordem dos Advogados do Brasil, e a partir da necessidade de ter uma representação mais corporativa é que aparece a OAB, mas a celula mater é o IAB.

O instituto tem uma característica: somos uma academia de Direito. Reunimos os grandes pensadores, aqueles que se sobressaem na comunidade jurídica. Então, tenho uma responsabilidade abissal. Principalmente depois de uma gestão brilhante de quatro anos como foi a do Técio Lins e Silva. A responsabilidade é dupla: uma pela importância que tem o IAB perante a comunidade jurídica, principalmente do ponto de vista acadêmico, e a outra porque o Técio fez realmente uma gestão histórica, marcante dentro do IAB. Assim, dar continuidade ao que ele proporcionou ao instituto é uma grande missão.ConJur — O que o IAB representa hoje para a advocacia e para a comunidade jurídica?
Rita Cortez
Nossa produção é acadêmica. O instituto se move através da elaboração de pareceres técnicos jurídicos, que são produzidos pelas comissões temáticas. Hoje, com as dificuldades que passa a sociedade brasileira, o instituto tem que se dedicar a colocar esse trabalho técnico a serviço de uma agenda positiva para o país. Todas as pessoas têm certa expectativa de que nós, através desse trabalho, possamos dar suporte a interpretações de situações políticas e sociais que vêm ocorrendo no país. Tivemos oportunidade por diversas vezes, nesses quatro últimos anos, de nos manifestarmos com relação à reforma trabalhista, à execução da pena após segunda instância, ao processo de impeachment de Dilma Rousseff, entre outros temas polêmicos. Como o IAB reúne quadros intelectuais e técnicos da melhor qualidade, ele fica com a tarefa de dar suporte jurídico àquilo que possa realmente propiciar um avanço social. Então, essas nossas manifestações hoje são esperadas pela comunidade, não só a jurídica, como por toda a sociedade.

ConJur — Como avalia o atual estado da advocacia no Brasil?
Rita Cortez
Em primeiro lugar, a advocacia merece respeito e valorização. Somos defensores do Estado constitucional, então o que se espera minimamente é que haja uma valorização do trabalho dos advogados. O próprio Conselho Federal da OAB e a seccional do Rio de Janeiro têm dado muita ênfase à defesa das prorrogativas. Este sempre foi um problema sério para a advocacia — defender e preservar os direitos que nós temos no exercício da nossa atividade profissional. Fora isso, estamos precisando de uma campanha muito séria para barrar o movimento de criminalização da advocacia. Advogados criminalistas hoje são tidos como criminosos, advogados trabalhistas passaram a ser considerados aventureiros.

ConJur — Aventureiros em que sentido?
Rita Cortez — 
Por exemplo, o número de ações da Justiça do Trabalho é considerado por alguns como sendo de responsabilidade de advogados trabalhistas, como se isso não fosse decorrência de uma inobservância de direitos básicos dos trabalhadores. A maior parte das ações trabalhistas discute horas extras, vinculo empregatício, trabalho escravo, trabalho infantil. Os processos não começam por conta da atividade do advogado, e sim porque os empregadores deixam de observar esses direitos elementares. Esses obstáculos que estão sendo criados ao acesso à Justiça do Trabalho prejudicam os trabalhadores e a segurança jurídica, porque os juízes têm diferentes entendimentos com relação à aplicação ou não aplicação de normas da reforma.

Na área criminal, alguns advogados têm sido absurdamente cerceados no exercício da ampla defesa de seus clientes. Algumas matérias da imprensa confundem o advogado com aquele que está respondendo ao processo. Por isso que eu digo que os criminalistas hoje estão sendo considerados criminosos. Todos têm direito a defesa por um advogado. É preciso haver paridade de armas — o advogado criminalista tem que ter as mesmas condições do Ministério Público, que é o acusador. E isso tem sido colocado como um empecilho para se combater a corrupção, para que não haja impunidade. Não é o caso: são instrumentos estabelecidos pela Constituição em favor dos cidadãos, e o advogado tem o dever de promover a defesa de seus clientes. Embora eu não seja muito favorável a criar um crime como solução para qualquer situação, é preciso criminalizar a violação de prerrogativas da advocacia para mudar esse cenário.

ConJur — De forma geral, o brasileiro compreende a importância do direito de defesa dos acusados ou tende a achar que os advogados que os defendem estão de conluio com os suspeitos?
Rita Cortez
Educação é algo falta neste país. E exatamente pelo fato de a maioria da população brasileira não ter acesso a educação de qualidade, as pessoas não têm a exata compreensão dos seus direitos. Podem saber um ou outro, mas não têm compreensão da extensão do que significa você realmente lutar para preservar esses direitos, para que esses direitos não sejam distorcidos, para que esses direitos não sejam eliminados. Foi uma luta muito grande para restabelecer a democracia, para restabelecer o Estado Democrático de Direito. Talvez a nossa geração talvez compreenda isso melhor, do ponto de vista político. Sem dúvida nenhuma, a Constituição de 1988 melhorou a questão da cidadania. Mas se não se estimula, se não se incentiva realmente que a população seja educada no sentido de entender a extensão de suas garantias, sejam direitos individuais, sejam direitos coletivos, fica muito difícil. O povo fica muito à mercê do que é, muitas vezes, distorcido pela mídia — seja pelas redes sociais, seja pela monopolização da imprensa.

ConJur — Como a senhora avalia o ensino jurídico atualmente?
Rita Cortez
Bom, o ensino jurídico sofre diretamente com essa situação de não se investir em educação. Hoje, as universidades públicas estão quase falidas. Veja o caso, por exemplo, da Uerj. Há um abaixo-assinado para tirar a faculdade de Direito do campus universitário. Querem dar uma certa autonomia à faculdade de Direito, em função da escassez de recursos do governo do Rio na manutenção e administração da Uerj. É uma coisa lastimável, mas isso não ocorre só na Uerj, tem ocorrido em todas as instituições universitárias. Quando a gente fala de ensino público de qualidade, educação é uma obrigação do Estado.

Com relação às instituições privadas, eu sou a pior pessoa para falar disso, porque eu sou assessora jurídica do sindicato dos professores do município do Rio de Janeiro que atuam no setor privado. Mas a educação no setor privado tem virado mercadoria. Há grandes conglomerados econômicos, investidores estrangeiros, instituições financeiras investindo no setor. Essa conjugação não dá certo, porque esses investidores querem ter lucro na educação, e educação não é para ser uma coisa lucrativa — ou pelo menos não para ter um lucro abissal. Nós vemos universidades privadas tornando-se sociedades anônimas, de capital aberto. Virou mercadoria. Lógico que para toda regra há exceções, nós ainda temos pessoas comprometidas com a educação mesmo no sistema privado, mas infelizmente nós caminhamos hoje para uma visão deturpada de considerar a educação uma mercadoria.

ConJur — Qual o efeito da reforma trabalhista para a advocacia?
Rita Cortez
Um dos objetivos da reforma foi desconstruir o Estado social e até questionar a existência da Justiça do Trabalho e do papel social que o juiz do Trabalho exerce. Porque a Justiça do Trabalho é uma Justiça social, destinada à pacificação de conflitos. Quem diz “olha, é ali que se criam os conflitos” não conhece nada da história da criação da Justiça do Trabalho. Ela surgiu para amortizar o crescimento reivindicatório dos movimentos sindicais no Estado Novo de Getúlio Vargas. Os movimentos operários estavam crescendo, as reivindicações estavam crescendo, e a Justiça do Trabalho foi instalada exatamente para tentar pacificar, para minimizar a superexploração que havia do trabalho. Um dos objetivos da reforma é tentar diminuir a importância da Justiça do Trabalho na criação de condições de trabalho dignas para os trabalhadores brasileiros. A criação de obstáculos ao acesso ao Judiciário busca diminuir a importância da Justiça do Trabalho. E se ela não for importante, isso vai atingir diretamente a advocacia. Nós fazemos parte da administração da Justiça. Se são criadas dificuldades para o direito de ação, eu, como advogada trabalhista, tenho que orientar meu cliente a pensar duas vezes antes de ir à Justiça, pois ele pode ter que acabar pagando seu empregador. E isso também vai ter repercussão para o advogado trabalhista que defende empresas. Quem ele vai defender se os trabalhadores não estão movendo ações? Se um não entra com ação, o outro não vai se contratado para defender a empresa. E isso aí é uma bola de neve.

ConJur — O Ministério Público do Trabalho tem competência para ir a escritórios fiscalizar se a figura do advogado associado está sendo usada para maquiar uma relação de emprego?
Rita Cortez
O grande problema na atuação do Ministério Público do Trabalho com relação aos escritórios de advocacia é quando ele exige que a banca diga quando que foi contratada e exiba os seus contratos. A relação com o cliente é amparada pela nossa lei profissional. Agora, com relação a desvios, do ponto de vista da formação de relações de emprego entre escritório e advogados contratados, isso é uma tarefa do MPT. O MPT faz isso com qualquer empregador. Exerce uma fiscalização para verificar se estão sendo respeitadas as leis trabalhistas.

ConJur — Recentemente os exemplos de conversas entre advogados e clientes grampeadas têm ficado mais frequentes.
Rita Cortez
A conversa entre o advogado e seu cliente é sigilosa. Isso faz parte de nossas prerrogativas. Precisamos ter essas garantias para que possamos agir profissionalmente sem que haja exposição do nosso trabalho. O grampeamento de conversas de clientes com advogados é inaceitável, até porque vai de encontro à lei. O exercício profissional da advocacia é inviolável. Quando permitimos isso, estamos criando um precedente de violação do sigilo na execução das atividades profissionais de advogados.

ConJur — Outra prática que vem se tornando comum é a abertura de inquérito para saber a origem do dinheiro que pagou os honorários dos advogados. O que acha disso?
Rita Cortez
 Isso chega às raias do absurdo. Primeiro, a nossa lei profissional diz que advogado não pode trabalhar de graça, ele tem que ser remunerado. Ele pode até ter uma advocacia pro bono, mas isso é exceção. Todo trabalho tem que ser remunerado, e a forma de nós sermos remunerados pelo nosso trabalho é através dos honorários. O advogado tem liberdade de estabelecer os honorários com seu cliente. Ele não tem limitações na lei com relação à fixação de valores dos honorários. O que está ocorrendo é que os investigadores querem ter acesso a documentos que dizem respeito a uma relação direta entre o advogado e o cliente, e temos amparo em lei que não somos obrigados a dizer o que contratamos, a forma que contratamos ou quanto contratamos. A lei nos garante isso.

Na verdade, esse movimento está um um pouco ligado com a criminalização da advocacia. Buscam expor altos honorários, falam de advogados milionários… Eu não sou a favor da socialização da pobreza. Todos têm que ser bem remunerados, desde o operário, o porteiro, até o advogado. Essa coisa de querer revelar o quanto foi estabelecido de honorários, ou quais foram as condições contratuais, é um pouco querendo envolver os advogados em maracutaias, como se nós tivéssemos provocado essa corrupção endêmica que existe hoje no país. Passamos a ser coautores. Faz parte da criminalização da advocacia. E isso atinge especialmente a advocacia criminal e nós da área trabalhista, em função dos ajuizamentos das ações.

ConJur — Quais são as maiores ameaças ao exercício da advocacia hoje? E de onde elas vêm?
Rita Cortez
A ameaça vem de todos os lados, para justificar a adoção de determinadas medidas extremamente arbitrárias. Para justificar isso, envolvem a advocacia, a partir da sua atuação. José Saramago disse que o fascista de hoje não vai ter aquele estereótipo do Mussolini, do Hitler, não vai ter aquele jeitão durão do militar. Vai ser uma pessoa boa, que fala da família, da sociedade, de paz.

ConJur — No que essas grandes operações contribuem com a criminalização da advocacia?
Rita Cortez
É exatamente a questão de querer divulgar honorários, dizer que são advogados milionários… Fala-se muito só os ricos têm condições de contratar bons advogados, de recorrer, que são os advogados dessas pessoas milionárias recebendo de igual forma milhões em honorários, os responsáveis por retardar a solução de um processo. Como se a Justiça fosse operosa, célere, como se nós tivéssemos juízes e magistrados suficientes para o atendimento da população, e não temos. Chega a ser uma coisa absurda. Há muitas ações na Justiça? Sim. Mas qual é o responsável por ter muitas ações? Se nós verificarmos hoje, por exemplo, na área de consumidor, empresas de telefonia e bancos são os que mais sofrem ações. A administração pública, as empresas públicas e as sociedades de economia mista talvez sejam uns dos maiores réus na Justiça do Trabalho. Então, quer dizer, não somos nós os culpados. Mas aí o advogado que atua, que é bem remunerado e por isso melhor preparado é que é o provocador de não sei quanto recursos? Apesar de toda a modernização, a máquina judiciária ainda é muito atrasada. Aí, culpando os advogados que recebem altos honorários para promover a defesa de seus clientes se admite que o Supremo Tribunal Federal rasgue a Constituição [ao permitir a execução da pena após condenação em segunda instância].

A Defensoria Pública, na atuação em defesa da população mais pobre, também interpõe inúmeros recursos. Alguém já pensou nisso? Que também tem também o outro lado da moeda? Outro dia vi uma desembargadora federal falando que uma grande evolução na área penal foram as audiências de custódia. Aí ela contou que foi assistir a uma audiência de custódia em um presidio e ficou estarrecida. Isso porque os juízes que conduziam as audiências de custódia estavam se lixando para o trabalho. Eles estavam ali porque iam ser mais bem remunerados, iam receber uma gratificação, um vencimento um pouquinho maior no final do mês. Mas não adianta ter audiência de custódia se os juízes nem prestam atenção ao que está acontecendo. A Justiça vai dar o retorno que a sociedade espera se for célere, bem estruturada, tiver investimentos sérios, dê efetividade às suas decisões, tenha um numero de juízes que possa atender ao volume de demandas que existem hoje na sociedade brasileira.

ConJur — Como a senhora avalia o atual protagonismo de magistrados e integrantes do Ministério Público?
Rita Cortez
Juízes e integrantes do MP não são eleitos, não são representantes do povo. Juízes têm direito a ter opinião, claro. O que eles não podem é ter ativismo político. Eles não são agentes políticos, eles são agentes sociais. Hoje, lamentavelmente assistimos a determinados ministros dizendo, ao decidir, que estão "ouvindo a voz da rua". Mas quem na rua? O pessoal que estava na calçada do lado direito ou o pessoal que estava na calçada do lado esquerdo? Isso é o fim da picada. O magistrado, principalmente o de cortes superiores, não tem outorga da sociedade para isso. O que temos que fazer é nos empenhar para que possamos realmente eleger pessoas que representem aquilo que defendemos.

ConJur — A senhora é a segunda mulher a assumir a presidência do IAB em seus 175 anos de existência. Como avalia isso?
Rita Cortez
O fato de eu assumir o cargo de presidente do IAB mostra que o instituto está na vanguarda do Direito. Se olharmos o sistema OAB, só há uma mulher presidente de seccional hoje, que é a de Alagoas. As dificuldades de reconhecimento da importância política são enormes. Houve um avanço em termos de direitos pelos movimentos de mulheres, especialmente por movimentos de mulheres advogadas, mas ainda estamos longe atingir aquela máxima de que “lugar de mulher é onde ela quiser”. Um dos maiores motivos de abandono de postos de trabalho é em razão das responsabilidades familiares. Hoje, ainda não vemos nos nossos companheiros, nos nossos maridos, nos nossos filhos, uma divisão equilibrada as exigências domésticas. Muitas mulheres abandonam as suas carreiras, abandonam postos de trabalho para ter essa responsabilidade.

Progredimos, mas ainda estamos longe de ter igualdade de oportunidades. Temos na advocacia um telhado de vidro, a ascensão na carreira. Vê-se poucas mulheres à frente de um escritório de advocacia. Eu sou uma exceção à regra. Não é visto como natural uma mulher ocupar a presidência de uma entidade como o IAB. A sua própria pergunta já mostra isso: você não faria essa pergunta para um homem.

ConJur — A senhora pretende adotar ações em prol da igualdade de gênero?
Rita Cortez
Já temos uma comissão de mulheres no IAB, quer promove eventos que discutem a questão de gênero. Isso não deixa de ser um incremento. O fato de a comissão estar nos eventos representando o IAB já é um avanço, uma ação concreta e efetiva. Afinal, nessas ocasiões estamos valorizando o papel da mulher na sociedade. Mas buscamos pensar em outras comissões, afinal, não temos segregação só de gênero, mas também de raça, de outras situações que não são inclusivas. Talvez nós possamos ter outras comissões dentro do IAB que tenham um olhar jurídico, um olhar de elaboração de teses acadêmicas para situações excepcionais de não inclusão de cidadãos e cidadãs pela discriminação.

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