Direito à reparação de danos ao patrimônio cultural é imprescritível
2 de junho de 2018, 12h04
Max Dvorák nos ensina que o patrimônio cultural é um dos mais importantes bens ideais responsáveis por provocar na coletividade um sentimento que está acima das preocupações e esforços materialistas do cotidiano. Sobre os bens culturais, Dvorák afirma que eles podem dizer respeito ao valor artístico dos monumentos à sua presença na paisagem, à sua relação com um aspecto local, às recordações a que eles estão ligados ou aos resquícios de antiguidade que os enobrecem e, ao mesmo tempo, despertam no espectador imagens do futuro e do passado. O grande mérito da satisfação que nos proporcionam hoje as obras de arte antiga reside no fato de que esse prazer não se limita a um determinado grupo de monumentos e nem é privilégio de certas classes sociais.[1]
Hoje em dia, como ressaltado por José Luis Álvarez Álvarez[2], já se passou a época em que havia que se justificar a existência de um tratamento legislativo especial para esse conjunto de bens culturais. Tanto as legislações nacionais como os organismos internacionais partem da ideia de que este patrimônio, sua conservação e incremento são essenciais para a comunidade e para seus membros e exige uma normativa especial, adaptada à natureza dos bens que o integram, e o que havia iniciado em uns poucos países, mais cultos ou adiantados, se converteu já em uma preocupação universal.
Na dicção da Constituição brasileira, integram o patrimônio cultural aqueles bens (de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto), que sejam reconhecidos e selecionados, por algum dos múltiplos instrumentos colocados à disposição, como portadores de referência à identidade (características próprias, traços distintivos que caracterizam um grupo), à memória (reminiscências, lembranças de fatos marcantes) e à ação (obras, realizações) dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, podendo compreender as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (artigo 216).
Nesse cenário, evidente que a fruição de um patrimônio cultural hígido é corolário da própria dignidade da pessoa humana e da cidadania (fundamentos da República Federativa do Brasil) e constitui direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que a tutela desse direito satisfaz a humanidade como um todo (direito difuso), na medida em que preserva a sua memória e seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.[3]
Com efeito, o direito ao patrimônio cultural (enquanto dimensão do meio ambiente globalmente considerado) se insere dentro do espectro do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, e é, portanto, essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
Logo, podemos afirmar que o direito ao patrimônio cultural tem natureza de direito fundamental, difuso, indisponível e intergeracional. Assim, os seus titulares não têm rosto ou idade, e o direito à sua defesa e fruição toca tanto ao subscritor e aos leitores deste texto, quanto aos nossos descendentes, ainda que não tenham nascido.
Ante tais considerações, seria lícito se admitir em nosso ordenamento jurídico a prescrição do direito às ações envolvendo o patrimônio cultural?
Reflitamos a respeito.
Como se sabe, a prescrição implica na extinção de um direito que deixa de ser exercido dentro de determinado lapso temporal em razão da negligência ou inércia da parte que, podendo agir, se omite a tal respeito.
Exatamente por isso, a teoria jurídica, com base em fundamentos milenares de ordem ética e solidária, não admite o curso da prescrição contra aqueles que não podem agir, a exemplo dos incapazes.
Dentro dessa linha de raciocínio, no nosso ordenamento, o Código Civil Brasileiro é expresso ao estabelecer, no artigo 198, I, que a prescrição não corre contra os incapazes, menores de 16 anos.
Trata-se da adoção do velho e lógico princípio de Direito Romano segundo o qual "non valentem agere non currit praescriptio" (contra aqueles que não podem agir, não fluem os prazos prescricionais).
Ora, se a prescrição não pode correr contra aqueles que, conquanto nascidos, não possuem condições de exercer plenamente seus direitos, com muito maior razão deve-se reconhecer a imprescritibilidade de direitos que são titularizados por pessoas que sequer nasceram, a exemplo do direito ao patrimônio cultural.
Se no âmbito do Direito Civil os direitos do nascituro (ser concebido e ainda não nascido) são colocados a salvo, quando falamos de Direito Ambiental, a Constituição Federal é clara ao afirmar que a tutela se volta para a defesa dos direitos não somente dos presentes, como também das futuras gerações, o que implica em uma mudança radical de paradigma, em razão do nosso compromisso com a manutenção e melhoria das condições de vida em benefício daqueles que ainda estão por chegar.
Por tais razões, o decurso de prazo em relação a lesões contra o patrimônio cultural brasileiro – enquanto dimensão do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – não pode constituir razão para extinção do direito à busca da correspondente reparação, seja pelos danos patrimoniais ou extrapatrimoniais, sob pena de ofensa ao princípio da solidariedade intergeracional, de matiz constitucional em nosso país (artigos 3º, I com correspondência com 225, caput, da Constituição).
Não bastasse, os danos em detrimento de bens culturais, cuja fruição hígida é direito de todos, implica em lesão de caráter permanente, continuado, que se renova a cada dia que passa, de forma que, por mais essa razão, não há de se aplicar as tradicionais regras da prescrição em tal matéria, pois o direito de ação surge diuturnamente.
Por isso, somos de entendimento de que o prazo prescricional previsto no artigo 21 da Lei da Ação Popular não pode ser aplicado quando a demanda versar sobre direito envolvendo bens integrantes do meio ambiente e do patrimônio cultural, por evidente conflito entre tal dispositivo e o preconizado pelos artigos 3º, I, 216, caput, parágrafo 1º, e 225, caput, da Constituição.
Nessa toada, insuperável a lição de Hugo Nigro Mazzili[4] quanto à inexistência de direito à estabilidade da degradação ambiental:
Em questões transindividuais que envolvam direitos fundamentais da coletividade, é impróprio invocar as regras de prescrição próprias do Direito Privado. O direito de todos a um meio ambiente sadio não é patrimonial, muito embora seja passível de valoração, para efeito indenizatório; o valor da eventual indenização não reverte para o patrimônio dos lesados nem do Estado: será destinado ao fundo de que cuida o artigo 13 da LACP, para ser utilizado na reparação direta do dano. Tratando-se de direito fundamental, indisponível, comum a toda a humanidade, não se submete à prescrição, pois uma geração não pode impor às seguintes o eterno ônus de suportar a prática de comportamentos que podem destruir o próprio habitat do ser humano.
Também a atividade degradadora contínua não se sujeita a prescrição: a permanência da causação do dano também elide a prescrição, pois o dano da véspera é acrescido diuturnamente.
Em matéria ambiental, de ordem pública, por um lado, pode o legislador dar novo tratamento jurídico a efeitos que ainda não se produziram; de outro lado, o Poder Judiciário pode coibir as violações a qualquer tempo. A consciência jurídica indica que não existe o direito adquirido de degradar a natureza. É imprescritível a pretensão reparatória de caráter coletivo, em matéria ambiental. Afinal, não se pode formar direito adquirido de poluir, já que é o meio ambiente patrimônio não só das gerações atuais como futuras. Como poderia a geração atual assegurar o seu direito de poluir em detrimento de gerações que ainda nem nasceram?! Não se pode dar à reparação da natureza o regime de prescrição patrimonial do direito privado.
A luta por um meio ambiente hígido é um metadireito, suposto que antecede à própria ordem constitucional. O direito ao meio ambiente hígido é indisponível e imprescritível, embora seja patrimonialmente aferível para fim de indenização.
As reflexões doutrinárias acima expostas têm encontrado ampla acolhida na jurisprudência pátria, a exemplo do externado nos precedentes que abaixo citamos:
O dano ambiental além de atingir de imediato o bem jurídico que lhe está próximo, a comunidade indígena, também atinge a todos os integrantes do Estado, espraiando-se para toda a comunidade local, não indígena e para futuras gerações pela irreversibilidade do mal ocasionado. Tratando-se de direito difuso, a reparação civil assume grande amplitude, com profundas implicações na espécie de responsabilidade do degradador que é objetiva, fundada no simples risco ou no simples fato da atividade danosa, independentemente da culpa do agente causador do dano. O direito ao pedido de reparação de danos ambientais, dentro da logicidade hermenêutica, está protegido pelo manto da imprescritibilidade, por se tratar de direito inerente à vida, fundamental e essencial à afirmação dos povos, independentemente de não estar expresso em texto legal. Em matéria de prescrição cumpre distinguir qual o bem jurídico tutelado: se eminentemente privado seguem-se os prazos normais das ações indenizatórias; se o bem jurídico é indisponível, fundamental, antecedendo a todos os demais direitos, pois sem ele não há vida, nem saúde, nem trabalho, nem lazer , considera-se imprescritível o direito à reparação. O dano ambiental inclui-se dentre os direitos indisponíveis e como tal está dentre os poucos acobertados pelo manto da imprescritibilidade a ação que visa reparar o dano ambiental. (STJ – Recurso Especial 1.120.117 – Ac (2009/0074033-7) Relatora : ministra Eliana Calmon – j. 10.11.2009)
A pretensão à proteção do meio ambiente e do patrimônio histórico-cultural se revela imprescritível. (TJRJ; APL-RNec 0000071-16.2000.8.19.0028; Macaé; 16ª Câmara Cível; Rel. des. Mauro Dickstein; DORJ 07/12/2017; pág. 396)
Na inteligência jurisprudencial do egrégio Superior Tribunal de Justiça, o tempo é incapaz de curar ilegalidades ambientais de natureza permanente, pois parte dos sujeitos tutelados, as gerações futuras, carece de voz e de representantes que falem ou se omitam em seu nome (REsp 948.921/SP, rel. min. Herman Benjamin, DJE 11/11/2009). Em sendo assim, não merece prosperar a preliminar de ocorrência do prazo prescricional de cinco anos para que o poder público pudesse requerer a inibição do dano ambiental, pois, no caso, a ação visa a tutela de direitos indisponíveis e, por isso, se afigura imprescritível. Na ótica vigilante da suprema corte, a incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina constitucional que a rege, está subordinada, dentre outros princípios gerais, àquele que privilegia a defesa do meio ambiente (Constituição, artigo 170, VI), que traduz conceito amplo e abrangente das noções de meio ambiente natural, de meio ambiente cultural, de meio ambiente artificial (espaço urbano) e de meio ambiente laboral. (TRF 1ª R.; Proc. 2006.37.00.002933-3; MA; 5ª Turma; rel. des. fed. Souza Prudente; DJF1 12/06/2012; pág. 173)
Não há que se falar em ocorrência de prescrição quando o direito que se discute por meio de ação civil pública é de ordem extrapatrimonial, como são os interesses difusos relativos ao patrimônio histórico, artístico e cultural, pois tais bens são insuscetíveis de apreciação econômica. (TRF 2ª R.; AC 463174; Proc. 2007.51.01.029958-4; 8ª Turma Especializada; rel. juiz fed. conv. Marcelo Pereira; DEJF2 11/05/2010)
Enfim, seja por razões de ordem ética ou jurídica, o direito à fruição hígida dos bens integrantes do nosso patrimônio cultural e à reparação das lesões contra eles cometidas, não se submete às regras ordinárias da prescrição.
[1] DVORÁK, Max. Catecismo da preservação de monumentos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 86-87
[2] Estudios jurídicos sobre el patrimônio cultural de España. Madri: Marcial Pons, 2004. p. 233.
[3] Essa fundamentalidade do direito ao patrimônio cultural foi objeto de expresso reconhecimento pelo TRF 2ª R.; AC 0000228-15.2005.4.02.5106; Sétima Turma Especializada; rel. des. fed. Reis Friede; DEJF 30/05/2012; pág. 401.
[4] A defesa dos direitos difusos em juízo, 19ª ed., rev., ampliada e atual. – São Paulo: Saraiva, 2006, p. 540-541.
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