Embargos Culturais

Fausto, o pacto com o diabo e a metáfora do arrependimento como salvação

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
O Doutor Fausto é um personagem alemão, mitológico e literário. Alguns sustentam que existiu, teria vivido no fim da Idade Média. Teria feito um pacto com o demônio (Mefistófeles), que lhe ofereceu conhecimento por servidão, vida eterna por sujeição, amor por rendição. Fausto aceitou a oferta. Pagará o preço pela incauta decisão.

Em sua forma mais erudita e exuberante, Fausto é desvendado na obra de Goethe (1749-1832), o mais emblemático dos poetas alemães, ao lado do não menos sedutor Friedrich von Schiller (1759-1805). Ambos protagonizaram a fase radical do romantismo teutônico, que os autores de manuais de literatura denominam de Sturm und Drang, o que nos remete às sensações de tempestade e impulso, tal como às vezes sentimos quando ouvimos Mozart e Haydn.

O Fausto, de Goethe, é dividido em duas partes[1]. A primeira delas foi concluída em 1808; a segunda, em 1832. Goethe dedicou 60 anos à composição dessa obra sediciosa. Assim como a descrição do inferno em Dante é mais aliciante do que a descrição do céu ou do purgatório, a primeira parte do Fausto é mais intrigante do que a segunda. É dessa primeira parte que trato. O radicalismo romântico está em seu zênite. A tragédia, em forma de poema, é de tirar o fôlego.

Descrevo o enredo. Mefistófeles visita Deus no céu. Ao lado dos arcanjos Rafael, Miguel e Gabriel (arcanjos são anjos principais, de hierarquia mais elevada), discutem a infelicidade que marca a experiência humana. Para Mefistófeles, a inteligência e a razão pouco valem; a razão, ao fim, faz apenas com que sejamos mais brutos (Viveria ele [o homem] se da celeste luz não tivesse o raio que lhe deste; de razão dá-lhe o nome, e a usa, afinal, para ser feroz mais que todo animal[2]). Mefistófeles simboliza o mal e, alegoricamente, invoca a serpente, que tem como ilustra prima[3]. O problema original está descrito no livro de Gênesis.

Goethe adiantou-se ao pensamento dos filósofos da Escola de Frankfurt, especialmente Horkheimer e Adorno, para os quais o esclarecimento é uma forma de ilusão, instrumento da astúcia, para quem trabalha a razão[4]. Nosso desespero, prossegue Goethe, decorre do fato de que desconhecemos os segredos da vida. É esse desespero que atormenta Fausto (Não julgo algo saber direito, que leve aos homens uma luz que seja edificante e benfazeja[5]), cansado da sabedoria livresca (opresso pela livralhada, que as traças roem, que cobre a poeira, que se amontoa, embolorada)[6]. Há algo fora dos livros. Descartes recomendava que lêssemos o livro do mundo.

Ao longo da discussão no céu, Deus lembrou o nome do Doutor Fausto, a quem reputava comprometido servidor. Mefistófeles sugeriu uma aposta, afirmando que seduziria Fausto, desviando-o do bom caminho. Fausto contava com cerca de 50 anos. Doutorou-se em Filosofia, Medicina, Direito e Teologia. Estudava magia, queria ir além do que se conhecia, e duvidava que alguém que decorasse uma enciclopédia todo o conhecimento deteria. Suas inquietações transcendiam a premissa de que toda pessoa racional questiona periodicamente suas metas e motivos e as crenças que os sustentam[7].

Fausto e Mefistófeles se encontraram num domingo de Páscoa. Uma coisa é chamar os espíritos; outra, é quando eles vêm… A Fausto foi oferecida uma vida eterna, rica em prazeres. Fausto recusou, os deleites da terra não eram suficientes para contentá-lo. Buscava conhecimento. Ajustaram um acordo. Mefistófeles seria servo de Fausto na Terra. Porém, se numa única vez Fausto admitisse um prazer terreno que pensasse em viver indefinidamente, então morreria e seria servo de Mefistófeles no inferno. O contrato foi firmado com o sangue de Fausto. Os pactos devem ser cumpridos (pacta sunt servanda), a menos que as condições originárias se alterem (rebus sic stantibus), como se diz na tipologia clássica do Direito romano.

Fausto conheceu Gretchen, por quem se apaixonou. Honesta, ingênua e piedosa, Gretchen recusou as investidas do sofisticado sedutor. Determinado a conquistá-la, Fausto recorreu a Mefistófeles. Com uma poção mágica, Fausto adormeceu a mãe de Gretchen. Sob baixa vigilância, Gretchen cedeu a Fausto (fugiu-me a paz do coração; já não a encontro, procuro-a em vão[8]), que cruelmente a deixou na manhã seguinte. Fausto e Mefistófeles seguiram para novas emoções e aventuras. Mais tarde, Gretchen descobriu que estava grávida; esperava uma criança de Fausto. O irmão e a mãe de Gretchen morrem. Numa orgia ocorrida num festival de bruxas, um fantasma diz a Fausto que Gretchen está encarcerada, acusada de ser responsável pela morte da mãe e do irmão, bem como da criança, que sufocou quando nasceu. Fausto insiste com Mefistófeles para que corram para salvar Gretchen. A forca estava preparada para a execução da infeliz mulher. No encontro ocorrido na cadeia, Gretchen mostrou-se louca e fora de controle. Fausto quer levá-la. Ela resistiu. Executada, um anjo anunciou que sua alma fora salva.

O Mefistófeles de Goethe é ambivalente; no caminho da maldade, acaba conduzindo Fausto para o lado oposto. Mefistófeles reconhecia essa imprecisão, dizendo-se (…) parte da energia que sempre o mal pretende e que o bem sempre cria[9]. Escravizou Fausto, que reconheceu a situação, justificando os meios pelos fins, como o diplomata florentino cujo sobrenome virou adjetivo. Fausto admitiu que não se comprometeu em vão e que de qualquer forma era escravo, de Mefistófeles, ou de qualquer outro[10]. Viver é uma forma de sujeição, sempre há alguém ou algo que nos oprime. O problema é qualitativo, e não quantitativo.

Fausto simboliza a soberba da busca do poder pelo conhecimento (quero ficar muito erudito, perceber tudo o que há na terra, e tudo o que no céu se encerra, natureza e ciência, ao infinito)[11], que sucumbe ao desejo do objeto amado (traze-me algo do anjo formoso! Traze-me um lenço de seu seio, um laço ao meu ardente anseio![12]). Indignado consigo mesmo, Fausto arrependeu-se do pacto, ao conhecer o sofrimento da moça enfeitiçada, caída na desventura, em desespero, miseravelmente errante sobre a terra e finalmente prisioneira, entregue a sofrimentos cruéis, a meiga, infausta criatura[13]. Era tarde. As condições originárias do pacto, no entanto, se alteraram.

Nos iludimos quando pensamos que tudo podemos saber. Só que, talvez, apenas sabemos que de nada sabemos, como provocava o filósofo grego marido de Xantipa, que perambulava pelas ruas de Atenas. Os desvios de conduta provocam uma maldição em forma de tragédia, cujo resgate consiste em suportamos a dor, lidando com tudo o que sentimos, e com o que fazemos com as pessoas com as quais convivemos. É nesse momento que vale a redenção de algum arrependimento, que se reverte na compreensão da entrega humana em favor do outro, sem que exijamos nada em troca. Isso é para poucos. Para os santos talvez. Alguns chamam de amor. E foi o amor que redimiu Fausto do pacto com o mal. Romantismo, até a medula. Simples assim.


[1] Há várias traduções para o português, a exemplo dos textos de Silvio Meira, Christine Rõhrig e de Jenny Klabin Segall. Conferir Fausto: Uma Tragédia – Primeira Parte. Tradução de Jenny Klabin Segall; apresentação, comentário e notas de Marcus Vinicius Mazzari. São Paulo: 34, 2007. Edição bilíngue alemão-português traduzida de Faust. Der Tragödie erster Teil ou Faust I. Na composição do presente ensaio, utilizo, e cito, a edição da Itatiaia. Fausto, Goethe, tradução de Jenny Klabin Segall, Belo Horizonte: Itatiaia, 2002.
[2] GOETHE, Fausto, cit., p. 36.
[3] GOETHE, Fausto, cit., p. 38.
[4] Conferir HORKHEIMER, Max e ADORNO, Theodor W., Dialectic of Enlightenment, New York: Continuum, 2001. Tradução do alemão para o inglês de John Clumming.
[5] GOETHE, Fausto, cit., p. 41.
[6] GOETHE, Fausto, cit., p. 42.
[7] Essa questão foi problematizada por Nicholas Fearn no já clássico How to Think as a Philosopher, London: Atlantic Books, 2001.
[8] GOETHE, Fausto, cit., p. 156.
[9] GOETHE, Fausto, cit., p. 71.
[10] Cf. GOETHE, Fausto, cit., p. 83.
[11] GOETHE, Fausto, cit., p. 89.
[12] GOETHE, Fausto, cit., p. 89
[13] GOETHE, Fausto, cit., p. 194.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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