Embargos Culturais

Hamlet, um príncipe pessimista, fatalista, relativista e vingativo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

14 de janeiro de 2018, 7h00

Spacca
Arnaldo Godoy [Spacca]Hamlet, o perplexo príncipe da Dinamarca, é um dos personagens mais perturbados e sediciosos da imensa galeria dos caracteres de William Shakespeare[1]. Símbolo da indecisão (“ser ou não ser, eis a questão”[2]) e, nesse sentido, um existencialista antes dos existencialistas, Hamlet questionava o sentido da existência; afinal, o que “será mais nobre sofrer na alma? Pedradas e flechadas de um destino feroz ou pegar em armas contra o mar de angústias”[3]? Diante de uma peça de Shakespeare somente o espectador ou o crítico podem escapar[4].

Hamlet é uma tragédia centrada no tema da vingança[5]. Pode nos provar que um espírito vingativo é tão destrutivo quanto o motivo da vingança. Shakespeare nos lembra a presença do mal no universo humano e, ao mesmo tempo, explora nossa reação para com esse mal congênito[6]. Melancolia e insanidade são mecanismos humanos de enfrentamento do mal.

O enredo dessa tragédia é labiríntico. Cláudio teria assassinado seu irmão, que era o Rei (o pai de Hamlet, com o mesmo nome), casando-se com a Rainha Gertrudes (mãe de Hamlet). Um fantasma, que Hamlet acreditava ser seu pai (“sou o espírito de teu pai”)[7], contou-lhe o que teria acontecido, e como morreu pelas mãos de Cláudio, pedindo vingança. Assim, obcecado por uma desforra ditada por um espectro, na forma imaginária do pai assassinado, Hamlet fingiu-se de alucinado, dizendo-se “não estou louco de verdade, estou louco por astúcia[8]”; o fingimento da loucura fazia parte do plano para vingar a morte do pai. A vingança era o único pensamento que persistia em sua mente.

Hamlet não estava em paz. Acreditava ser capaz de viver recluso numa casca de noz, percebendo-se como o rei do espaço infinito, se não tivesse maus sonhos[9]. E uma alma em desordem, dita o bom senso, refém do sofrimento que a destrói, e do qual paradoxalmente também se alimenta, é uma alma triste, melancólica, que vê a vida como uma “enorme prisão, cheia de células, solitárias e masmorras[10]”. A natureza humana é vista também com melancolia. Para Hamlet, se as pessoas fossem tratadas como merecemos, todas mereceríamos o chicote[11]. Pessimismo maior não há.

Hamlet obteve as provas de que necessitava quando, a seu pedido, um grupo teatral representou uma peça, na qual o Rei foi assassinado, exatamente como Cláudio teria matado o pai de Hamlet. É o teatro dentro do teatro. É o artifício utilizado por Hamlet para alcançar a verdade. Como Hamlet previa, Cláudio, assustado e titubeante, deixou o teatro. Era a prova de que Hamlet precisava. Comprovou a fala do fantasma que denunciou que “a serpente que tirou a vida de teu pai agora usa a nossa coroa”[12].

Questionado pela mãe (que queria entender o que ocorrera com Cláudio no teatro) em conversa no quarto da Rainha, Hamlet assassinou Polônio, conselheiro do Rei, que ouvia a conversa atrás de uma cortina. Pensava que estava ferindo Cláudio. Polônio era pai de Ofélia (que Hamlet supostamente amava), e de seu amigo Laertes. Ofélia se suicidou, tentou-se negar-lhe uma sepultura. Na parte final, Hamlet mata Cláudio, fechando a vingança[13], morrendo logo em seguida, ferido por uma espada envenenada. A partir de então, “o resto é silêncio”[14]. Isto é, “o silêncio habita o texto”[15].

Várias são as leituras que Hamlet sugere. Do ponto de vista psicanalítico podermos ter um exemplo renascentista do complexo de Édipo; talvez Hamlet invejava o tio assassino (Cláudio), justamente porque era o que gostaria de ter feito com o pai, com o objetivo de possuir narcisisticamente a mãe (Gertrudes). Tem-se a impressão que Hamlet vivia uma neurose, fixado na mãe, desejando o lugar do tio, que fora o lugar do pai. Hamlet, assim, não aceitou o casamento de Gertrudes. Para Freud, Hamlet era um caso patológico, parecido com vários de seus pacientes. Hamlet, ao final da peça, vê descer sobre si o castigo, “sofrendo o mesmo destino do pai, ao ser envenenado pelo mesmo rival”[16].

Do ponto de vista da política, Hamlet ilustra o argumento daquele transtornado político florentino, para quem é melhor ser temido do que amado. Hamlet insistia que precisava ser cruel para ser justo[17]. Todo príncipe deseja ser considerado piedoso, e não cruel. Mas não pode usar mal esta piedade. O príncipe não deve importar-se com a fama de cruel para manter os súditos unidos e confiantes. A confiança exagerada pode tornar o príncipe incauto, e a desconfiança excessiva pode torná-lo intolerante. As amizades que se adquirem com dinheiro e não por grandeza ou nobreza da alma, são compradas; e com elas não se pode contar no momento oportuno. É que, para Maquiavel, (…) e os homens têm menos respeito aos que se fazem amar do que aos que se fazem temidos, porque o amor é conservado por um vínculo de obrigação, o qual se rompe por serem homens maldosos, em todo o momento que quiserem, e temor é alimentado pelo medo do castigo que nunca te abandona”[18]. Mais fácil o medo do que o afeto.

Do ponto de vista filosófico, Hamlet é um relativista, um personagem absolutamente incrédulo, “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”[19]. É também um pessimista, temente das “dores do coração e das mil mazelas naturais a que a carne é sujeita”[20]. Prisioneiro do destino, Hamlet é um fatalista, “só te acontece o que merece”[21].

O pessimismo, a indecisão, o fatalismo, o relativismo e a vingança podem ser indícios de quem vive sem amor, o qual não se revela porque não há vida, ou porque dele se fez descrente. Essa pode ser uma das lições de Hamlet: o fantasma das desilusões que acompanha a vida. Foi um personagem desse perturbador enredo que anunciou que “onde a alegria mais canta e a dor mais deplora, num instante a dor canta e a alegria chora”[22]. É que todos, como Hamlet, persistimos com uma misteriosa questão não resolvida, afinal, é “a vida que faz o amor, ou este que faz a vida?”[23].


1 Há várias traduções para o português, a exemplo das traduções de Carlos Alberto Nunes e de Millôr Fernandes. Na composição do presente ensaio utilizei a versão da L & PM Pocket, editada em Porto Alegre, em 1997.

2 Hamlet, Ato III, Cena I.

3 Hamlet, Ato III, Cena I.

4 A imagem é de Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos (volume I), Rio de Janeiro: Topbookds, 1999, p. 163.

5 Cf. BLOOM, Harold, Shakespeare- the invention of the human, New York: Riverhead Books, 1998, p. 383.

6 Cf. HELIODORA, Bárbara, Reflexões Shakespearianas, Rio de Janeiro: Lacerda, 2004, p. 158.

7 Hamlet, Ato I, Cena V.

8 Hamlet, Ato III, Cena III.

9 Hamlet, Ato II, Cena II.

10 Hamlet, Ato II, Cena II.

11 Hamlet, Ato II, Cena II.

12 Hamlet, Ato I, Cena V.

13 Hamlet, Ato V, Cena II.

14 Hamlet, Ato V, Cena II.

15 É como se lê em inspiradora passagem de Luciana Pimenta: “O silêncio habita o texto sem ter em mim o juiz da escritura. Tudo o mais é barulho vosso que escutais o silêncio”. PIMENTA, Luciana, Heranças, Belo Horizonte: Letramento, 2016, p. 131.

16 FREUD, Sigmund, Obras Completas, Volume I, Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 316.

17 Hamlet, Ato III, Cena IV.

18 MAQUIAVEL, Nicolo. O Príncipe. São Paulo: RT, 2006. Tradução de J. Cretella Jr. E de Agnes Cretella.

19 Hamlet, Ato I, Cena V.

20 Hamlet, Ato III, Cena I.

21 Hamlet, Ato II, Cena II.

22 Hamlet, Ato III, Cena II.

23 Hamlet, Ato III, Cena II.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!