Exigir comprovação dos recursos repatriados afronta confiança dos contribuintes
19 de dezembro de 2018, 7h00
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidadesContinuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.(Luís de Camões)
E lá se vai 2018. Em menos de 15 dias estaremos em 2019. A mudança da vontade popular reverteu expectativas e há uma ansiosa esperança por dias melhores. Não enxergo ao redor nem otimismo, nem pessimismo. Não há lugar para sentimentos extremos, muito menos ingênuos, mas poderia dizer que é perceptível se ter formado um ambiente de confiança na moralização e profissionalização do trato da coisa pública. Que doravante seja essa a regra e não mais a exceção.
Curioso constatar que anos que terminam com “8” foram emblemáticos para nossa história político-jurídica. Em 2018 comemoramos duas marcantes efemérides: 50 anos da decretação do Ato Institucional n.º 5, de 13 de dezembro de 1968, e 30 anos da promulgação da Constituição Federal vigente, em 05 de outubro de 1988.
O reinado das trevas que se instalou em dezembro de 1968 – o golpe dentro do golpe – que trouxe a linha dura militar (a “tigrada”) para o comando da nação nunca pode ser esquecido. Muito menos tratado com leveza, como se tivesse sido algo menor. A distância temporal incentiva sua relativização. Isso não se pode admitir em um Estado Democrático de Direito.
Estado Democrático de Direito esse (re)constituído com a promulgação da Carta constitucional de 05 de outubro de 1988. Prolixa, utópica, engessada, sejam quais forem as críticas que lhe possam ser dirigidas, nossa Constituição deve ser motivo de muito orgulho porque é uma legítima expressão da vontade popular. Seus eventuais desacertos vêm sendo corrigidos nesses últimos 30 anos pelo parlamento e pela interpretação autêntica e evolutiva do Supremo Tribunal Federal.
A vida é feita de idas e vindas, acertos e desacertos, mudar de entendimento é humano, natural e usual. Só que há mudanças que não podem afetar, nem prejudicar o que existia e era garantido ao cidadão. A segurança jurídica é uma regra de ouro da Constituição, o pilar inabalável que assegura a confiança nas instituições.
A feliz expressão estabilidade na mudança cunhada por Humberto Ávila é a que melhor define a ideia moderna de segurança jurídica. Ao mesmo tempo em que repudia a paralisia e a petrificação do Direito, não tolera mudanças arbitrárias que aniquilem situações definitivamente constituídas.
Nas palavras do ilustre professor “(…) pode-se compreender a segurança jurídica como exigência de estabilidade na mudança, isto é, como a proteção de situações subjetivas já garantidas individualmente e a exigência de continuidade do ordenamento jurídico por meio de regras de transição e de cláusulas de equidade. A palavra mais consistente para denotar esse sentido é, assim, confiabilidade, compreendida como a exigência de um ordenamento jurídico protetor de expectativas e garantidor de mudanças estáveis”.[1]
Em notável monografia intitulada “As garantias dos contribuintes”, Carlos Pamplona Corte-Real estudou a configuração dessas garantias nos textos constitucionais portugueses, concluindo ser “(…) obviamente premente a adoção de uma lei-quadro, de um estatuto do contribuinte, assegurando a efetividade e a “perenidade” do complexo de direitos-garantias que lhes sejam reconhecidos, que constituiriam verdadeiros direitos fundamentais”.[2]
E, assim, prossegue o autor:
“É, por ora, obviamente transcendente a relevância do princípio constitucional da legalidade, que a tudo, porém, não vai obstando, mas que vai garantindo tais garantias!”
“É obviamente premente uma mudança radical de mentalidades, e daí que, de momento, eu insista, quiçá, por transposição, na enorme projeção da vexata quaestio da autonomia do direito fiscal, porque sempre que ele é juridicamente embebido nos princípios fundamentais dos ramos de direito com que se entrecruza pode dizer-se que o direito fiscal “pula e avança” no mundo jurídico, afinal e sempre a suprema garantia dos contribuintes!” [3]
É obviamente premente que o novo comando do Ministério da Fazenda promova uma radical mudança de comportamento no relacionamento do fisco com os contribuintes.
Não podem mais subsistir autuações fiscais baseadas no “pensamento” da fiscalização, sem amparo no texto legal; não pode mais se admitir reversão de entendimentos consolidados nos tribunais administrativos atingindo situações constituídas legitimamente à sombra da orientação vigente; não se pode aceitar a procrastinação ad infinitum de discussões judiciais já solucionadas pela Suprema Corte e, com maior razão, não se pode tolerar a adoção de interpretações em flagrante violação das leis.
A história recente no plano da tributação federal revela que disposições legais limitadoras de certos direitos foram editadas apenas posteriormente à aplicação do “pensamento” da administração fiscal em casos concretos. Aplicação essa que se materializou em autos de infração bilionários, com multas agravadas de 150%, lavrados em contrariedade à dicção expressa da lei vigente à data das operações, tornando o Brasil um ambiente de negócios apavorante para os investidores.
Veja-se, por exemplo, a questão da dedutibilidade do ágio. No seu modelo original, introduzido pela Lei n.º 9.532/97 – aliás, como uma norma restritiva e não criadora de benefício fiscal como erroneamente se popularizou[4] – a dedutibilidade dependia apenas dos seguintes requisitos: (i) o ágio deveria ter como fundamento a expectativa de rentabilidade futura e (ii) a investidora ou a investida deveriam ser objeto de incorporação (arts. 7º e 8º).
Pois bem, sete anos depois, a Lei n.º 12.973/2014 veio estabelecer um novo regramento, positivando o “pensamento” do Fisco, exigindo formalidades nos laudos de avaliação, restringindo o direito à dedução para as operações entre partes não relacionadas, entre outras.
O evidente caráter inovador da providência legislativa deve afastar liminarmente as pretensões de tributação de operações realizadas sob o império da lei anterior em que tais exigências não constavam do texto legal. A nova legislação de aplicação retroativa foi “produzida” pelos agentes fiscais e referendada por seus pares julgadores no Carf. Isso é um atentado contra o princípio da legalidade!
Outra gravíssima mudança de entendimento que afetou legítimas expectativas respeita à questão da não aplicação da limitação de 30% (“trava”) de redução do lucro tributável pelo aproveitamento de prejuízos fiscais acumulados no exercício em que a pessoa jurídica se extingue, como, por exemplo, sucederia em uma incorporação.
Nesse caso tratou-se de uma mudança de entendimento, pelo voto de qualidade, da jurisprudência uníssona que prevalecia no âmbito da CSRF. Uma orientação consolidada foi revertida em um gravíssimo golpe contra a segurança jurídica dos contribuintes, em prejuízo da legítima confiança dos administrados.
Gravíssimo também é o comportamento beligerante do fisco contra os particulares na contenda a respeito do direito de exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, prolongando indefinidamente a discussão, abarrotando o Poder Judiciário com uma sobrecarga absurda de processos.
Com efeito, a questão de fundo já foi resolvida pelo Supremo Tribunal Federal quando firmou o entendimento segundo o qual a parcela do ICMS cobrada “por dentro” deve ser excluída do faturamento tributável, porque não configura receita própria do contribuinte.
Ora, o ICMS que será pago pelo contribuinte, é o resultado do confronto entre créditos e débitos apurados em um conta corrente como é típico dos tributos não cumulativos sobre o valor acrescentado. É evidente que o valor a ser excluído da base de cálculo jamais poderia ser o valor efetivamente pago na apuração, pela simples razão de que se existirem mais créditos do que débitos não haverá ICMS a recolher, mas isso não significa que o PIS e Cofins não tenham indevidamente gravado a porção do faturamento correspondente ao ICMS destacado na nota, que é o tributo que incidiu naquela operação comercial específica.
A mais recente mudança de entendimento do Fisco foi a de pretender exigir dos contribuintes que aderiram ao programa de regularização fiscal das Leis n.ºs 13.254/2016 e 13.428/2017 a comprovação documental da origem dos recursos declarados, sob o argumento de que a dispensa de comprovação apenas valeria para o momento da transmissão da declaração. Dispõe assim o novo item 40 do “Perguntas e Respostas” aprovado pelo ADI RFB n.º 5/2018:
“40) O declarante precisa comprovar a origem lícita dos recursos?
O contribuinte deve identificar a origem dos bens e declarar que eles têm origem em atividade econômica lícita na Dercat. Não há obrigatoriedade de comprovação. O ônus da prova de demonstrar que as informações são falsas é da RFB.
Nota 1: A desobrigação de comprovar documentalmente a origem lícita dos recursos se refere ao momento de transmissão da Dercat, assim como ocorre na demais declarações prestadas à RFB.
Nota 2: A subsunção da hipótese legal de ingresso e permanência no RERCT poderá ser objeto de procedimento de ofício específico para tal fim.
Nota 3: A RFB, mediante intimação, concederá prazo razoável para que o optante ao RERCT apresente a comprovação sobre a origem lícita dos recursos regularizados.” (grifos nossos)
Ora, a legislação em questão foi editada justamente para permitir a regularização de bens e direitos existentes no exterior, a maior parte deles existentes desde muitos anos atrás, sendo difícil, quiçá impossível, comprovar documentalmente sua origem. Por isso mesmo, a lei foi clara no sentido de que os únicos documentos suscetíveis de serem exigidos pela RFB para apresentação, no prazo de 05 (cinco) anos após a adesão, serão aqueles referidos no § 8º do art. 4º da Lei n.º 13.254/2018, a saber: (i) documento emitido pela instituição financeira custodiante dos ativos financeiros; (ii) evidência contratual do saldo do empréstimo em 31/12/2014; (iii) balanço de pessoas jurídicas estrangeiras; e (iv) laudo de avaliação emitido por empresa especializada no caso de intangíveis, imóveis, veículos, aeronaves, embarcações.
A resposta n.º 40, categórica em sua versão original, está correta. Não há obrigatoriedade de comprovar. O ônus da prova é do Fisco. E isso porque nem uma linha sequer do texto legal fala em obrigação de prova da origem dos recursos, seja ela na data da adesão, seja ela em momento posterior. As notas explicativas posteriormente adicionadas à resposta n.º 40 é que estão em sentido frontalmente contrário à lei e não podem subsistir.
Caso essa posição ilegal da Receita Federal seja mantida e aplicada, teremos mais uma questão tributária judicializada, a confiança dos particulares será gravemente minada e a imagem do Brasil como um país sem segurança jurídica será mantida.
Que a nova administração fiscal tenha a sensatez de modificar esse entendimento para que os novos tempos que se iniciam inaugurem um modelo de relação fisco-contribuinte de confiança na correta aplicação da lei.
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Obrigado por nos terem seguido mais esse ano. Já é longa a nossa caminhada aqui na CONJUR e não posso deixar de agradecer à equipe da publicação. Desejo a todos os colegas de CONJUR e aos leitores que nos acompanham um Natal de paz e harmonia e que o ano de 2019 seja pleno de realizações para todos nós.
[1] Segurança Jurídica. Ente Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário, Ed. Malheiros, São Paulo, 2011, p. 124.
[2] As garantias dos contribuintes. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (147), Centro de Estudos Fiscais, Direcção-geral das Contribuições e Impostos, Ministério das Finanças, Lisboa, 1986, p. 45.
[3] Op.cit., p. 45-46
[4] A Exposição de Motivos n.º 644, de 14 de novembro de 1997, (EM da MP n.º 1.602), assim dispõe no seu item 11: “O art. 8º estabelece o tratamento tributário do ágio ou deságio decorrente da aquisição, por uma pessoa jurídica, de participação societária no capital de outra, avaliada pelo método da equivalência patrimonial. Atualmente, pela inexistência de regulamentação legal relativa a esse assunto, diversas empresas, utilizando dos já referidos “planejamentos tributários”, vêm utilizando o expediente de adquirir empresas deficitárias, pagando ágio pela participação, com a finalidade única de gerar ganhos de natureza tributária mediante o expediente, nada ortodoxo, de incorporação de empresa lucrativa pela deficitária. Com as normas previstas no Projeto, esses procedimentos não deixarão de acontecer, mas, com certeza, ficarão restritos às hipóteses de casos reais, tendo em vista o desaparecimento de toda vantagem de natureza fiscal que possa incentivar a sua adoção exclusivamente por esse motivo”.
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