Observatório Constitucional

Necessidade de um modelo de avaliação do ativismo do STF

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25 de agosto de 2018, 14h10

Um dos temas mais prementes em matéria de jurisdição constitucional hoje no Brasil envolve as investidas do Supremo Tribunal Federal em assuntos da autoridade política do Congresso Nacional. A discussão em torno da função “legislativa” do STF está certamente inserida no plano maior da controvérsia da filosofia do direito constitucional que opõe neoconstitucionalistas de um lado e defensores de uma competência mais auto-limitada do tribunal.

Esse quadro de embate teórico cria a falsa perspectiva de que se está diante de um sistema binário de possibilidades de atuação do tribunal. Para os neoconstitucionalistas, adotar o regime clássico-tradicional seria acanhar o próprio regime de direitos trazido pela Constituição de 1988, especialmente diante de um Parlamento exageradamente conservador. Para os defensores do modelo auto-restritivo, a hipótese neoconstitucional traz o STF para o centro da atuação política, criando o paradoxo de que, em plena democracia, as principais decisões públicas caberiam a um órgão não só contramajoritário, mas — acima de tudo — aristocrático.

Diante desse desenho, as posições variam entre argumentos muito teóricos (mesmo que haja uma tentativa de ancorá-los na história) e argumentos muito casuísticos (na base da discordância pessoal e conjuntural com uma decisão específica do tribunal). Em ambos os caminhos, ignora-se a variedade de riquezas de casos que poderiam ser considerados, mesmo que em grau diferentes, decisões de ativismo judicial.

Parece razoável supor que a eventual atividade “legiferante” do STF deveria exigir em cada um desses graus condições especiais, requisitos e fundamentações extraordinárias específicas para cada conjunto de casos. Esse tipo de atividade do STF, quando contradiga literalidade da Constituição, deveria ser precedida de uma lista mais consistente de pré-requisitos para ser considerada, enquanto que a interpretação “criativa” do tribunal para compor ou completar mera lacuna de lei poderia pressupor apenas algumas exigências mínimas.

A Suprema Corte Americana acabou por desenvolver um modelo com esse tipo de preocupação — e que poderia ser inspiração para nós — quando fez surgir de sua jurisprudência ativista durante o Tribunal Waren o chamada strict scrutiny para examinar a Cláusula da Igual Proteção (Equal protection clause) prevista na Seção 2 da Emenda XIV[1]. Assim sendo, a Corte avaliou que determinados atos estatais que fizessem uso dos chamados “critérios suspeitos de diferenciação” deveriam se submeter a determinados requisitos substantivos especiais sob o risco de serem declarados inconstitucionais. Uma grande parcela das legislações estaduais de cunho racial foi declarada inconstitucional com base nesse escrutínio.

O strict scrutiny se diferenciava das premissas corriqueiras de julgamento de inconstitucionalidade de atos normativos (o chamado rational basis test) e também de um terceiro grupo de casos que, embora exigissem mais do que a mera análise racional da pertinência do uso do fator de discriminação, pressuporia mais rigor na fundamentação (o chamado intermediate scrutiny)[2].

A questão interessante aqui é destacar a disposição de o tribunal elaborar uma espécie de metodologia para conduzir seus próprios julgamentos, tornando-os mais coerentes e com fundamentações mais claras. O critério de rigor na análise para a judicial review também permitiu ao grande público melhor estudar, monitorar e julgar a atividade desenvolvimento pela Suprema Corte. A gradação em três níveis com diferentes pré-requisitos de fundamentação tornou, em outras palavras, a Suprema Corte Americana mais consistente e permitiu que a eventual crítica a uma de suas decisões pudesse ser feita em bases teóricas mais sofisticadas.

Minha sugestão segue essa metodologia com a diferença de que, ao invés de o tribunal exigir condições especiais a serem respeitadas pela legislação federal ou estadual de modo a ser considerada constitucional (como no sistema rational basis testintermediate scrutinystrict scrutiny), o Supremo Tribunal Federal passaria a exigir premissas extraordinárias para justificar a sua própria decisão ativista ou de natureza legiferante nos vários níveis de julgamento que um caso pode exigir. Essa medida certamente traria transparência à atividade da Corte ao mesmo tempo em que construiria robustez e consistência à sua própria jurisprudência.

Quais seriam essas tais premissas especiais a serem respeitadas? Ora, tais premissas são aquelas dedutíveis das próprias críticas que o tribunal recebe quando exagera em seus julgamentos ativistas. Também poderiam considerar preocupações institucionais relacionadas ao próprio princípio da separação de poderes (artigo 2º da CF) e aos esforços do Executivo e do Legislativo para resolver o problema apresentado. Também não se deve afastar que a consistência de um julgamento está intimamente relacionada ao ato normativo objeto da análise do tribunal, tanto à sua hierarquia no ordenamento, quanto ao tipo e envergadura da “lacuna” nele identificada.

Em outras palavras, o tribunal, antes mesmo de decidir, precisa diagnosticar o caso que está sob sua responsabilidade, demonstrando ao público, à comunidade jurídica e política e aos próprios ministros que entende bem o que está em jogo, conhece as consequências de sua futura decisão e se tem condições técnicas ou políticas de decidir aquele tema. Essa é inclusive a preocupação de fundo quando se critica o STF por sua atuação ativista ou legiferante. Isso porque a necessidade de uma decisão criativa do tribunal não deve se sustentar em algum tipo de apelo teórico, militância política ou vaidade acadêmica, mas apenas no auto-convencimento de que não restam outros caminhos, de que se uma decisão não for dada, consequências graves, imediatas e concretas ocorrerão para o sistema político, para o exercício de direitos ou para as bases do modelo econômico.

Assim, de forma a balizar essa preocupação que deveria ser do STF, para nortear e estabelecer os limites e a responsabilidade do tribunal em relação ao que julga, algumas perguntas — transformadas em algum tipo de checklist a exigir uma fundamentação mais sofisticadas e profunda — poderiam ser colocadas. Por exemplo:

1. A interpretação criativa tem como foco a Constituição ou a lei?

2. Há texto expresso (literal) em sentido contrário ao que se quer decidir?

3. Trata-se de questão sobre a qual o Congresso Nacional já decidiu recentemente ou está em processo de discussão?

4. O tribunal está diante de um problema prático e urgente ou está diante de mera divergência teórico-doutrinária com pouco impacto concreto imediato?

5. O tribunal está decidindo um caso concreto ou está julgando uma lei em abstrato?

6. O tribunal dispõe de dados, informações ou elementos objetivos seguros para uma decisão? Há divergência em relação à consistência ou resultados das pesquisas e dados informações ao tribunal?

7. Há algum tipo de consenso científico em torno da questão?

8. A eventual decisão do tribunal criará problemas institucionais graves, seja na relação entre os Poderes, seja no próprio modelo federativo?

9. O tribunal dispõe de expertise econômico, orçamentário ou financeiro para a decisão, tendo claro a avaliação de custos e de benefícios da medida que será objeto da decisão?

Tais questões (além de outros que podem ser ainda propostas), se respondidas adequadamente pelo Tribunal, podem desenhar uma quadro mais exato dos riscos e responsabilidades da Corte com uma decisão ativista.

Não seria razoável, do ponto de vista jurídico, político e institucional, que o STF se arvorasse em uma decisão contrária ao texto literal da Constituição, especialmente se a questão tratada não fosse urgente ou de consequências imediatas graves. Estaríamos claramente diante de uma espécie de abuso da jurisdição constitucional. Da mesma forma, seria contra-indicado alguma decisão do tribunal em tema já recentemente discutido pelo Parlamento e para cuja solução os dados disponíveis não fossem absolutamente consistentes e confiáveis. Ainda nesse mesmo grupo de casos, estaria aquele por meio do qual o tribunal fosse obrigado a decidir para resolver contenda teórica ou abstrata, com graves riscos para a divisão e harmonia dos poderes.

Por outro lado, uma decisão ativista, mesmo que integrasse lacuna da Constituição, poderia ser mais aceitável se, em relação a ela, houvesse consenso científico, dados confiáveis e um problema prático real a ser evitado ou mesmo o estabelecimento de normas e regras para completar um hiato legislativo de maneira a trazer equilíbrio financeiro e proteção de algum grupo subjulgado.

É importante destacar que a função “legiferante” do STF não deixa de ser uma aspecto quase que ontológico da interpretação judicial, aliás como já bem reconhecia Lúcio Bittencourt em seu famoso texto de 1943[3]. Ocorre que essa “atribuição” somente se encaixa no modelo da separação de poderes se exercida com parcimônia e equilíbrio. O ativismo não pode ser visto como algum tipo de consectário natural de um Tribunal sedento por reconhecer direitos e gravar o seu nome na história. Ao contrário, ele somente se justifica a partir da necessidade premente e pragmática de uma decisão excepcional do STF quando está diante de um contexto crítico e singular.


[1] Embora sua origem primária esteja localizada antes do Tribunal de Earl Warren (como em casos como Skinner v. State of Oklahoma, ex. rel Williamson, 316 U.S. (1942)), foi a partir de 1953 que esse “método” de abordagem ganhou corpo, especialmente em casos como Brown v. Board of Education, 347 U.S. 483 (1954), Griswold v. Connecticut, 381 U.S. 479 (1965), One, Inc. v. Olesen, 301 U.S. 340 (1958) e Sherbert v. Verner, 374 U.S. 398 (1963);

[2] Craig v. Boren, 429 U.S. 190 (1976); Mississippi University for Women v. Hogan, 458 U.S. 718 (1982);

[3] BITTENCOURT, C. Lúcio. A interpretação como parte integrante do processo legislativo. In: Revista Forense, edição comemorativa dos 100 anos. Volume 1 – Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005, pág. 55;

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