Diário de Classe

O nascimento do constitucionalismo e o papel do Judiciário

Autores

25 de agosto de 2018, 8h00

No último encontro em sala de aula, discutiu-se sobre um tema aparentemente esquecido, ou ignorado por alguns setores da comunidade jurídica cujas aventuras evolvem, por exemplo, a defesa de teses que atribuem ao Judiciário um papel de “representatividade”. A discussão centrou-se sobre o fenômeno constitucionalismo, seu nascimento e significado para a democracia atual. Do encontro, restou o seguinte ensaio, que é, por sua vez, um questionamento acerca da função legítima a ser exercida pelo Judiciário, feito a partir de reflexões históricas. Em tempos em que se tornou urgente discutir como as democracias morrem, também nos pareceu interessante recuperar um pouco sobre como elas nascem, destacando o que foi fundamental para sustentar a convivência entre os diferentes[1].

O professor Horst Dippel[2] assevera que o constitucionalismo moderno, caracterizado por uma redefinição do esquema tradicional de domínio político[3], teve sua origem nos Estados Unidos, mais precisamente a partir da celebração do documento conhecido pela História como Declaração de Direitos de Virginia[4] (junho/1776). No entanto, é seguro dizer que foi com a ratificação da Constituição norte-americana de 1789 e do projeto político nela inserido que o mundo testemunhou uma real redefinição, não apenas da maneira como era concebida a relação vertical entre cidadão e Estado, mas da democracia como um todo, principalmente no que diz respeito à dinâmica da relação entre os poderes públicos.

Após a sua independência, os EUA, constituído à época por uma união de estados confederados, viu-se em um contexto institucional tão desafiador quanto aquele enfrentado no começo do conflito com a metrópole[5]. O fraco laço político que unia os estados-membros — cada um desses representando uma soberania paralela à própria União — tornava quase impossível a articulação de medidas econômicas essenciais à restruturação de um tesouro nacional, reduzido a migalhas em função dos gastos durante a guerra emancipatória[6]. Tal cenário dificultava, por exemplo, a realização de um processo unificado de tributação, uma vez que cada estado contribuía na medida em que entendesse adequada aos seus próprios interesses. Ainda, era difícil a adoção de uma moeda nacional e comum a todos os mercados estaduais, o que tornava o comércio um sistema marcado pela insegurança e desorganização.

O Congresso Continental — órgão legislativo máximo da União —, por sua vez, era um fracasso explícito, não conseguindo impor suas medidas aos estados, que permaneciam em um constante clima de desconfiança e inimizade. Uma guerra pela delimitação de fronteiras era travada de um lado, e de outro, no campo econômico, uma “guerra fiscal” ocorria entre os entes da federação que buscavam dar vazão aos seus produtos, através da imposição de medidas protecionistas, prejudicais à consolidação de um laço nacional[7].

Todo esse contexto transmutou-se, dentro do espectro social, na forma de um conflito entre maiorias devedoras e falidas contra minorias credoras[8]. Com a quebra do laço que unia a metrópole (Inglaterra) à colônia (EUA), os mercadores e financistas britânicos começaram a pressionar os seus devedores norte-americanos, que ainda ficavam sem a possibilidade de pedir novos créditos. Essa classe mercante norte-americana voltou olhares para os seus devedores compatriotas, pequenos proprietários, os quais ficaram sem ter a quem recorrer, ou créditos a reivindicar. Cada um desses dois grupos encontrou amparo em um braço do poder do Estado: os credores acabavam indo até o Judiciário, onde, pela pena dos juízes, conseguiam com que o Estado coibisse os devedores a honrarem suas dívidas, sob pena de terem todos os seus bens confiscados, ou mesmo de terem sua liberdade ceifada[9]. Já a maioria massiva de devedores insolventes teve de recorrer à única coisa que possuía a seu favor, a força da sua condição de fato como maioria: invasões às sessões dos tribunais, a estabelecimentos de guarnição de armas, e — a prática mais marcante — através da força, faziam com que as legislaturas locais cedessem perante suas reivindicações[10], que iam desde a imposição da impressão de papel moeda à remissão de dívidas. Não havia uma distância física nem institucional entre o corpo dos representantes e o corpo dos representados[11]. Logo, legisladores, diretamente ameaçados pelos seus representados, serviam apenas como figurantes em uma tragédia de paixões.

Veio então a dita Convenção da Filadélfia, formada, em 1787, por 55 delegados escolhidos pelos congressos de cada estado, que deliberaram sobre uma nova carta política para substituir os “Artigos da Confederação”, carta política então vigente — mas comprovadamente falida, considerando-se o contexto narrado.

Durante a campanha em favor da ratificação do texto constitucional elaborado pelos delegados, vários artigos de opinião[12] (The Federalist Papers) foram publicados na imprensa nova-iorquina, sob a assinatura de Publius, pseudônimo utilizado por John Jay, James Madison e Alexander Hamilton, em defesa da Nova Constituição e da sua ratificação pelo Congresso Estadual de Nova York[13]. Esses artigos entraram para a história como um dos principais tratados de ciência política e Direito Constitucional, mas, também, sobre a própria natureza humana e a correlação dessa com as dinâmicas internas às sociedades políticas.

Com o intuito de evitar que o seu país jamais recuperasse a estabilidade institucional, temendo a facilidade com que o Estado fora tomado pelos sentimentos autodestrutivos das massas, legitimamente descontentes, e pelos egoísmos facciosos oportunistas, os idealizadores do projeto da Constituição de 1789 buscaram meios de racionalizar o processo político de tomada de decisões, encontrando a resposta em um “duplo esquema de segurança contra a tirania”[14]. Este compunha-se, de um lado, pela forma federal de organização do estado — com cada ente da federação cumprindo o papel de guardião das liberdades dos cidadãos, em caso de a soberana União acabar sendo corrompida, atentando de algum modo contra essas liberdades (guard dogs[15]) —, e de outro pelo princípio de separação dos Poderes. Mas não uma separação estrita onde cada Poder existe de maneira isolada, em sua esfera reduzida de atuação. O sistema proposto pelos federalistas envolvia uma ideia de harmonização entre os Poderes, mecanismos que não servissem como mútuos entraves, mas que fossem articulados de tal modo a refinar a operação estatal, evitando assim que um dos seus três “ramos” se sobrepusesse aos demais.

No entanto, a atenção era direcionada com maior peso ao Legislativo, fonte de maior autoridade em um regime democrático, o que, sob o olhar de homens como Madison, exigia que fossem institucionalizados instrumentos constitucionais dispostos aos demais Poderes para que esses pudessem, se necessário, se insurgir. E aqui entra o ponto central, pois a ideia do judicial review surge e ganha força, justamente dentro de todo esse contexto histórico narrado, no qual se tentava encontrar meios para evitar que o poder representativo — volátil, embora legítimo — fosse consumido pela irracionalidade de paixões momentâneas e imprudentes, interesses egoísticos de uma maioria.

Este último conceito, de maioria, assume contornos peculiares atualmente, considerando o nosso contexto informacional, no qual ela não é mais necessariamente uma maioria de fato, mas uma maioria construída por narrativas e opiniões publicadas, que não necessariamente condizem com o que se poderia entender por opinião pública, ou uma maioria numérica. Agora, fala-se que o Judiciário deve seguir aquilo que clamam as ruas, deve cumprir um papel representativo da vontade do povo (ler aqui a contundente crítica do professor Lenio Luiz Streck a esse respeito). Ou seja, no passado, ao Judiciário foi dada a função de amarras, a prender-nos ao mastro. Agora queremos usá-lo como roupa de mergulho? Antes de o fazer, clamemos por prudência.

É necessário dizer: a função da jurisdição constitucional não é de atravancar o caminho do progresso, afinal, “freios” não servem apenas para parar o veículo, mas também para desacelerar, acalmar antes das curvas que eventualmente venhamos a ter de percorrer.

Evidentemente, os tempos em que vivemos exigem mudanças no que diz respeito ao funcionamento da máquina pública em geral, mas não podemos ignorar de modo grosseiro a origem das coisas, o motivo de ser de determinada prática institucionalizada[16], sob pena de extinguirmos irrefletidamente um arranjo que tanto se lutou para conquistar, por mero desconhecimento ou ignorância quanto ao seu legítimo propósito[17].


[1] Nessa linha, veja-se o impacto de livros como: LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die: What History Reveals About Our Future. New York: Crown, 2018.
[2] DIPPEL, Horst. História do constitucionalismo moderno – novas perspectivas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
[3] CANOTILHO, J.J. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 52.
[4] DIPPEL, Horst. Op. Cit, p. 9.
[5] NEVINS, Allan; STEELE COMMAGER, Henry. Breve história dos Estados Unidos. n. 2. v. 39. São Paulo: Alfa Omega, 1986.
[6] Idem, ibidem.
[7] Idem, ibidem.
[8] Idem, ibidem.
[9] GARGARELLA, Roberto. Em nome da constituição. O legado federalista dois séculos depois. In: BORON, Atilio A. Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006.
[10] Idem, ibidem.
[11] Idem, ibidem.
[12] HAMILTON, Alexander; JAY, John; MADISON, James. O Federalista. Tradução de Ricardo Gama Rodrigues. Campinas: Russell Editores, 2003.
[13] NEVINS, Allan; STEELE COMMAGER, Henry. Breve história dos Estados Unidos. n. 2. v. 39. São Paulo: Alfa Omega, 1986.
[14] Defending Federalism: realizing Publius's vision. Harvard Law Review. 122, 2, 745-766, Dez. 2008, p. 746.
[15] Idem, ibidem.
[16] Do mesmo modo que a reprodução acrítica de uma prática cultural pode ser perigosa. A opção entre conservação e mudança na vida pública deve ser sempre bem examinada. Nesse sentido: STRECK, Lenio Luiz. Não sei… mas as coisas sempre foram assim por aqui. Revista Eletrônica Consultor Jurídico, 19 de set. 2013, São Paulo. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2013-set-19/senso-incomum-nao-sei-coisas-sempre-foram-assim-aqui> Acesso em: 23 de ago. 2018
[17] Obviamente, não se trata aqui de naturalizar modelos institucionais de contextos históricos alheios às peculiaridades brasileiras (extraindo automaticamente um “dever-ser” daquilo que “é”, ignorando a necessária fundamentação ou contextualização). Nosso propósito é partir de uma reconstrução histórica para destacar as justificativas de tal arranjo, as razões substantivas que se mantêm atuais para a nossa experiência concreta.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!