Em uma democracia, o Poder Judiciário deve assumir um papel representativo?
4 de agosto de 2018, 8h00
É natural que, prima facie, a resposta pareça óbvia, afinal — em tempos de binarismo político e espetacularização da Justiça —, a pergunta parece ter como pano de fundo a legitimidade da prisão do ex-presidente Lula enquanto líder nas pesquisas de intenção de voto. E, também naturalmente, a resposta de qualquer cidadão consciente que subscreva à ideia de que decisões judiciais devem ser cumpridas será algo na linha de “ora, é claro que Lula deve ser preso!”.
Só que a pergunta não é essa. E a resposta, aparentemente tão óbvia, já não mais parece tão simples quando damos um passo atrás e questionamo-nos mais abstratamente. Em termos mais simples: se, ao menos por um tempinho, deixarmos Lula, Temer e Bolsonaro de lado — o que, às vezes, é uma questão de sanidade —, conseguiremos refletir, de forma razoável, sobre esse hipotético conflito entre uma minoria dotada de autoridade e uma maioria que, de uma forma ou outra, a essa autoridade responde[1].
Se ainda assim a resposta segue parecendo óbvia, até mesmo ao leitor que aceita o convite ao passo atrás, a pergunta ainda vale a pena. Quando não nos questionamos sobre aquilo que, em sociedade, já parece ter atingido um patamar de obviedade consensual, corremos o risco de, por meio de ações irrefletidas, perpetuarmos costumes e comportamentos irracionais e iníquos (Felizmente, Emmeline Pankhurst e as suffragettes questionaram a tão óbvia proibição do voto feminino e conquistaram o sufrágio universal, garantindo que as gerações seguintes de mulheres não sofressem as consequências de viver em uma sociedade que se adapta, triunfantemente, à degradação dos tempos[2]).
Não nos cabe responder diretamente à pergunta que abre este ensaio; além de Faggion já o ter feito magistralmente, interessa-nos, mais do que investigar as bases filosóficas da (i)legitimidade de absolvições populares, tomar as reflexões subjacentes ao artigo como leitmotiv para tecer alguns questionamentos acerca de qual é e qual deve ser o papel e a atuação do Poder Judiciário em uma sociedade verdadeiramente democrática. Colocamos a pergunta, assim, de forma mais ampla, em termos como numa democracia, o Poder Judiciário deve assumir um caráter representativo?
A pergunta já seria de difícil resposta ao levantar — direta e indiretamente — conceitos de tão complexa definição, como democracia, representação, participação. Se isso já não fosse suficiente, ela, quando contextualizada, torna-se ainda mais complicada: em nossos interessantes tempos[3] de crise político-institucional, vemos um Judiciário cada vez mais atuante — para o bem e para o mal —, cada vez mais midiático.
E muitas vezes esse protagonismo do Poder Judiciário é justificado por seus protagonistas (com a devida licença para uma aparente redundância) com, já não mais tão nova, a partir da qual se assume que juízes, ou ministros, devem ouvir a “voz das ruas” — ou, é claro (com a devida licença para uma certa dose de cinismo), aquilo que se diz ser a “voz das ruas”. Diante do cenário de nossa já mencionada crise político-institucional e sua decorrência lógica — uma crescente insatisfação popular com um Congresso tido como corrupto, engessado, incapaz de acompanhar o ritmo que as demandas sociais exigem e de representar àqueles a quem devia —, fortalece-se o movimento, intrínseco e extrínseco, por um Supremo Tribunal iluminista, que deve atender ao clamor social e atribuir a si mesmo um papel de guia da história[4].
Parece inegável (i) que vivemos em uma sociedade que se pretende democrática, (ii) que democracia pressupõe a participação dos cidadãos, e (iii) que esses cidadãos são os destinatários das normas sociais; assim, parece natural, desejável e nada mais que democrático que tenhamos uma suprema corte que saiba atender ao clamor social. A defesa de uma concepção de democracia que pressupõe um Judiciário representativo parece se fortalecer ainda mais quando nos deparamos com um Congresso Nacional que, ao fazer por merecer muitas das críticas que recebe — da esquerda e da direita —, transmite aos cidadãos a ideia de que não mais os representa.
Mas será? Será mesmo que, de nossas premissas estabelecidas, segue-se essa conclusão? É possível derivar logicamente esse dever ser das circunstâncias que formam o nosso ser? Uma vez mais, o óbvio não é tão óbvio quando olhado de perto.
De novo, é um trecho do artigo de Faggion que serve de ponto de partida à(s) nossa(s) resposta(s), sempre parciais (tanto no sentido de em andamento — porque não pretendemos chegar em um ponto último —, quanto no sentido de que toma partido — porque (i) somos céticos quanto a respostas moralmente neutras e (ii) partimos do pressuposto de que a democracia é algo positivo —, quanto no sentido de incompletas — porque a maioria de nossas colocações são interrogações).
O trecho em questão lê o seguinte: “Em sociedades cada vez mais moralmente fragmentadas, a independência do sistema normativo estatal com relação à moralidade social também pode surgir como uma virtude, o modo artificial possível de assegurarmos alguma coesão social”.
A colocação traz consigo um poderoso insight, a partir do qual pensamos ser possível dar início à elaboração de algumas perguntas que seguem carentes de respostas.
1. Qual é a voz das ruas? O que ela diz?[5] Uma sociedade democrática — ou, (repetimos) no mínimo, que se pretende democrática — é, eminentemente, uma sociedade pluralista. Some-se a isso o fato de que somos um país desigual por essência, e temos que nossa sociedade parece cada vez mais fragmentada em todos os aspectos: moral, político, social, econômico. Disso, naturalmente, segue-se que também as demandas sociais são variadas, por vezes conflitantes. Se em um contexto hipotético de coesão social, a subjetividade humana, traduzida nas individualidades, já seria capaz de apresentar opiniões muito distintas em questões divisivas, que dizer de um contexto como o nosso, binário e polarizado? Talvez as ruas tenham mais vozes que se pense. E parece muito mais lógico que elas se façam ouvir no parlamento; enquanto este é justamente o ambiente institucional ao qual as democracias modernas atribuem a função representativa, a ausência de uma mesma previsão, a priori, com relação ao Judiciário torna-nos vulneráveis à possibilidade de que as cortes escolham qual voz deve ser ouvida.
2. Caso saibamos identificar a voz das ruas, ela deve servir de base para uma decisão judicial? Para fins de argumentação, aceitemos que seja possível, em meio à nossa multiplicidade contemporânea, identificar uma voz das ruas, uma unidade em meio ao pluralismo. Parece-nos que, em meio a tantas diferenças, essa unidade só poderia ser apontada a partir de termos abstratos com os quais todos concordariam e que, por isso mesmo, poderiam justificar qualquer decisão que não se sustentaria a partir de argumentos jurídicos. Ilustrando em termos mais claros a partir de um exemplo: absolutamente ninguém se diz ou diria contra, digamos, a necessidade de justiça. Contudo, parece muito difícil visualizar qualquer situação minimamente aproximada de unanimidade que não seja assim: nada mais que uma redução a uma essência simplista que, em verdade, de tão abstrata, torna-se desprovida de sentido. Kierkegaard, sempre genial, já dizia que conceitos abstratos só não são invisíveis quando tornados concretos[6].
A voz das ruas clama por conceitos diante dos quais essa voz é dividida em muitas outras que discordam sobre quais são as melhores concepções acerca desses conceitos. Todos concordamos com a justiça; discordamos profundamente sobre o que ela significa. É por isso que a responsabilidade política subjacente ao papel institucional do juiz impõe que suas respostas sejam jurídicas — ou seja, aquelas que foram previamente delineadas e estabelecidas através das vias legislativas[7].
Nesse sentido, é possível ir além: e quando a “voz das ruas” tem um caráter eminentemente antijurídico? O (suposto) clamor social (qual seria sua definição autêntica?) pode colidir com uma cláusula pétrea. Qual é o limite? Quem traça a linha divisória entre a reivindicação legítima e a voz das ruas que exige decisões contra legem? Esse, naturalmente, é só (mais) um dos riscos mais óbvios que apresenta um órgão dotado de um poder sem qualquer instância que o regule. É a ideia de liberdade negativa, de Constant[8], que impõe uma barreira no caminho da tirania[9]. Uma vez mais, ecoa a importante lição de Faggion: “Em sociedades cada vez mais moralmente fragmentadas, a independência do sistema normativo estatal com relação à moralidade social também pode surgir como uma virtude, o modo artificial possível de assegurarmos alguma coesão social”.
3. Considerando os níveis de desaprovação da população para com seus representantes, por uma série de motivos (por exemplo, corrupção, ineficiência), não é melhor que sejamos representados por juízes?[10] Ainda que respondidas as primeiras perguntas — com as ideias de que (i) a pluralidade social impede a identificação de unidade nas reivindicações que dão significado ao “clamor social” e (ii) ainda que este pudesse ser identificado, só o seria em termos abstratos que nada significam em um contexto prático —, resta uma terceira: se reconhecemos a crise de representatividade pela qual atravessamos e, ao mesmo tempo, reconhecemos também que há boas razões para que os cidadãos não se sintam representados de forma legítima, não seria melhor que outorgássemos a tarefa representativa a outro órgão? A pergunta, por mais natural que seja, parece-nos apressada; a conclusão, um silogismo bastante problemático. Desilusões não se resolvem a partir de ilusões, e não podemos cair na armadilha de comparar a péssima imagem do parlamento — que, convenhamos, parece muitas vezes esforçar-se para merecê-la — com uma imagem idealizada das cortes. Que o pior do Judiciário seja comparado ao pior do Legislativo, e que aquilo que o Legislativo tem de melhor seja comparado àquilo que de melhor tem o Judiciário. E, para além disso, ainda, não podemos perder de vista o papel constitucional de cada um.
Fiquemos com a importante lição de Jeremy Waldron: “Se importantes decisões em questões divisivas devem ser feitas […], parece apropriado que elas sejam feitas em um ambiente institucional que seja mais aberto — mais explícita e deliberadamente aberto à participação social do que são as Cortes”[11].
Não é porque algo parece estar em desacordo com seu telos que a solução é esperar que a finalidade em questão seja bem atendida por aquilo que jamais a teve. O que se quer dizer é que, gostemos ou não — e, em caso negativo, é um ônus da democracia —, a função representativa cabe ao parlamento, e não às cortes. Se ele não nos ouve, façamo-nos ouvir. A cidadania deve ser exercida; se já parece um clichê dizer que temos responsabilidade enquanto eleitores, talvez assim seja porque a ideia é verdadeira. E se também é bem verdade que o sistema político da era Cunha (que, não nos enganemos, não terminou só porque Eduardo está na cadeia) tem reforçado os meios de perpetuação no poder, disso não se segue que a saída não mais esteja no exercício da cidadania do indivíduo. Muito pelo contrário: é paradoxal, e talvez contraditório, esperar que um órgão do Estado nos salve da falência de outro órgão do Estado.
E bem ou mal, mal ou bem, a participação e a representação são elementos que se encontram no parlamento. Esperar que a resposta moralmente correta e politicamente adequada venha de um órgão sem accountability, especialmente em uma sociedade pluralista em profundos desacordos, parece ilusório e problemático. Contraditoriamente (e pensamos que inegavelmente), o populismo — característica típica de quem reivindica para si justamente a voz “do povo” — é uma das maiores ameaças às democracias autênticas. Por que um Judiciário populista não o seria? Seja a vox populi reivindicada por um líder carismático ou pelas autoridades às quais compete a função jurisdicional, a demagogia é sempre uma ameaça ao rule of law.
Trazemos um ponto de Madeleine Albright, em recente entrevista à The Economist: “Nenhuma instituição, por melhor construída que seja, poderá ajudar se perdermos nosso senso de humanidade compartilhada”. As respostas nem sempre vêm de cima para baixo. Talvez não precisamos de uma corte iluminista que guie a história. Por vezes, as respostas vêm de baixo pra cima, e sua manifestação nos meios institucionalmente adequados é uma questão de democracia.
Porque, como Albert Camus bem respondia quando questionado se o fim justifica os meios, somente os meios podem justificar o fim[12].
[1] Se o leitor exige um exemplo concreto, imagine, no lugar da figura de um ex-presidente popular, um cenário hipotético em que uma pequena comunidade, com um sistema de Justiça constituído, tem um de seus membros condenado ao responder por algo pelo qual a maioria da população diz absolvê-lo.
[2] Para (mais uma) belíssima reflexão — agora sobre essa adaptação de gerações passadas ao que, hoje, parece aberrante —, ver GIANNETTI, Eduardo. Trópicos Utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 20-21.
[3] “Que você viva em tempos interessantes”, dizia a maldição chinesa. Ao que tudo indica, os deuses não nos pouparam.
[4] Preocupa-nos sobremaneira que ministros do Supremo Tribunal Federal subscrevam, consciente ou inconscientemente, de um modo ou outro, ou (i) à tese de uma história a ser empurrada na direção de princípios formais, transcendentais e abstratos, ou (ii) à uma história sem transcendência, absolutamente racional, que consagra um perigoso relativismo ao tudo justificar em nome de seu fim. Uma corte suprema é só uma corte suprema; o fato de um tribunal ser de justiça significa que ele é, em parte, responsável pelo sistema de Justiça, e não pela perfectibilização de uma Justiça transcendente.
[5] A partir de outra perspectiva — em uma crítica tão contundente quanto rica, que parte do dualismo metodológico de Laband e Jellinek —, Lenio Streck questiona esse mesmo problema em texto publicado também na ConJur.
[6] “Abstract concepts are as invisible as a straight line; they are only visible when they are made concrete”. Cf. KIERKEGAARD, Søren. Kierkegaard’s Journals and Notebooks, vol. 2. Editado por Niels Jørgen Cappelorn, Alastair Hannay, David Kangas, Bruce H. Kirmmse, Vanessa Rumble, e K. Brian Söderquist. Princeton: Princeton University Press, 2008, p. 42.
[7] Evidentemente, não se imagina, aqui, ingenuamente, que seja possível conceber um código completo, capaz de conter todas as respostas de forma tal que sejam anteriores até mesmo às perguntas. Bem se sabe que faz parte de qualquer prática jurídica, seja ela pertencente ao civil law ou ao common law, aquilo a que a tradição anglo-saxã (especialmente com Dworkin) chama de hard cases. De todo modo, somente as mais radicais vertentes do realismo jurídico aceita(ria)m uma decisão que não estivesse minimamente vinculada a uma ideia de observância à lógica estruturante do sistema vigente.
[8] Àqueles que desejam compreender melhor o(s) conceito(s) de liberdade, recomendamos (muito) a participação da professora Andrea Faggion no Café Filosófico, na qual a filósofa discorre sobre liberdade, democracia e escolhas.
[9] Sem o ideal do rule of law, não é nada absurdo imaginar um Judiciário hobbesiano, em que não há nada que vincule previamente quais serão as diretrizes daquele que detém a autoridade — que, por isso mesmo, acaba por não estar vinculada às próprias diretrizes.
[10] Para uma reflexão sobre a irrelevância do posicionamento no espectro político para, ainda assim, ver a supremacia judicial com — no mínimo — ressalvas, ver recente coluna de um dos autores deste ensaio.
[11] WALDRON, Jeremy. Refining the question about judges' moral capacity. International Journal of Constitutional Law, vol. 7, n. 1, jan. 2009, pp. 69–82.
[12] «La fin justifie les moyens? Cela est possible. Mais qui justifiera la fin? À cette question, que la pensée historique laisse pendante, la révolte répond: les moyens.» Cf. CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1951, p. 361.
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