Garantias do Consumo

Por uma adequada resolução dos conflitos de consumo

Autor

  • Fabiana D'Andrea Ramos

    é professora associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) mestre em Direito pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e 2ª vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

25 de abril de 2018, 8h40

A Resolução 125/2010, do Conselho Nacional de Justiça implantou no Brasil a chamada Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses. Tal política caracterizou-se, sobretudo, pela inclusão e fomento dos meios consensuais de solução de disputas, especialmente a mediação[1]. A motivação para esta alteração reside em grande parte no desejo de oferecer ao cidadão brasileiro acesso à ordem jurídica justa, inviabilizada pela excessiva judicialização dos conflitos e esgotamento operacional do sistema de serviços judiciários. À Resolução 125 junta-se a promulgação da Lei de Mediação e do Novo Código de Processo Civil, que aperfeiçoaram as regras relativas à solução adequada de conflitos por meio de métodos consensuais e que reunidas, configuram o principal arcabouço jurídico do atual sistema brasileiro de resolução de disputas.

Neste cenário, os conflitos de consumo assumem especial relevância, considerando que nas estatísticas nacionais, sobretudo naquelas divulgadas pelo relatório Justiça em Números, do CNJ, aparecem no topo do rol de demandas judicializadas.

Urge, pois, que se aprofunde a análise desses conflitos e, sobretudo, que se identifique um sistema que contribua para sua efetiva resolução, através dos meios mais adequados.

Primeiramente, entendemos por conflito o choque de interesses. Trata-se de uma concepção bastante ampla, que abrange desde o desentendimento entre duas pessoas, como a guerra entre nações. No estreito contexto desse texto, o conflito a que nos referimos consiste no choque de interesses no âmbito da sociedade de consumo. Entendemos que tais choques podem ocorrer entre os partícipes da relação de consumo: consumidor e fornecedor, onde teríamos o choque entre os interesses desses particulares. A esses chamaremos de conflitos interpessoais.

Há, no entanto, uma outra sorte de conflitos, de extrema importância no contexto das relações de consumo, que têm uma dimensão bem mais alargada. São aqueles que consistem no choque entre interesses pertencentes a políticas institucionais de mercado e aqueles que integram as políticas públicas. Esses chamaremos de conflitos sociais ou interinstitucionais. Dentro da nova Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos, conhecer e identificar o tipo correto de conflito é condição sine qua non para indicar, dentre os vários tratamentos possíveis, aquele que seja o mais conveniente para cada espécie.

Os conflitos interpessoais são aqueles mais simples e triviais, mas também próprios de um mercado de consumo massificado. Aqui se encontram situações tais como: não observância de prazos de entrega; vícios do produto ou serviço; cobrança indevida, ou seja, sempre que se estiver diante de direitos subjetivos individuais. Nesses casos há três caminhos para resolução de conflitos, a via privada, a via administrativa e a via judicial.

Na via privada contamos atualmente com três alternativas distintas e não excludentes entre si. A primeira é a utilização dos canais de atendimento oferecidos pelos próprios fornecedores. A incidência da cláusula geral da boa-fé presente em nosso ordenamento jurídico impõe ao fornecedor o dever de atendimento adequado e eficiente no pós-venda, de modo a acolher dúvidas e reclamações dos seus clientes, bem como indicar a possível solução. No Brasil tais canais atuam ainda com grandes deficiências. Com um sistema cada vez mais automatizado e despersonalizado, o consumidor enfrenta inúmeras barreiras para ser efetivamente escutado nas perversas centrais telefônicas e chats online. A criação das obrigatórias ouvidorias não trouxe melhora para essa situação, ao contrário, somente aumentou as instâncias da verdadeira via crucis, que os consumidores enfrentam para terem suas reclamações atendidas.

A mediação e a conciliação privadas também podem ser utilizadas para solução dos conflitos interpessoais. Aqui se trata ou de câmaras privadas ou da escolha conjunta de um mediador ou conciliador privado. Ainda que se trate de uma via em tese possível, na prática esbarra no inafastável desequilíbrio entre consumidor e fornecedor, caracterizado na vulnerabilidade do primeiro, que inviabilizaria uma escolha isenta e consciente. Entendemos que o sistema brasileiro ainda não avançou o suficiente para que essa opção se apresente como verdadeiramente razoável.

Outra forma de solução privada de conflitos interpessoais de consumo é a utilização de plataformas on-line de negociação. Tais plataformas podem ser mantidas pelos próprios fornecedores (o que não é nada desejável pois acarreta grande prejuízo de neutralidade das eventuais decisões apresentadas), ou por terceiros, como é o caso dos sites Reclame Aqui ou Mercado Livre. As redes sociais também são bastante utilizadas pelos consumidores, tendo em vista a ampla e imediata divulgação da reclamação, que causa verdadeiro desconforto e eventualmente mesmo um prejuízo à imagem ou marca do fornecedor, mas nesse caso não se trata de uma plataforma construída especificamente para a finalidade de resolução de conflitos.

Na via administrativa, há também plataformas públicas, tais como a consumidor.gov.br, que tem por vantagem a neutralidade e possibilidade de construção de dados estatísticos públicos a respeito das espécies de reclamações e participação dos fornecedores. Mas a plataforma só faz conectar consumidor e fornecedor, que ainda negociam diretamente, mesmo que de maneira virtual, no “espaço” público. Não obstante seja uma opção muito prática, cujo uso é bastante desejável, a opção mais comum na via administrativa ainda é a utilização dos Procons, entidades integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e que exercem um papel fundamental na defesa do vulnerável. Vale mencionar aqui que muitos Procons no Brasil já disponibilizam atendimento virtual, o que também para muitos consumidores é bastante prático e benéfico. Além disso, há casos também de implantação de mediação e conciliação nos Procons. Atualmente, o Provimento 67/2018, do CNJ permite ainda que a mediação ou conciliação sejam realizadas nos Cartórios de Notas ou Registros do Brasil, o que ainda está em fase de implementação, mas pode se tornar mais uma opção de solução de conflitos de consumo.

Por fim, há a via judicial, onde a mediação e a conciliação têm sido amplamente utilizadas como forma de reduzir o excesso de litígios. Nesses casos, tais procedimentos são feitos nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSCs) de cada foro, comarca ou tribunal e podem ser pré-processuais, ou seja, antes da instauração de processo litigioso, ou a qualquer tempo, no decorrer do processo, que permanecerá suspenso até que se encerre a via consensual, com ou sem acordo. E há ainda a tradicional via litigiosa, tanto nos Juizados Especiais, como na Justiça Comum, essa, no entanto, é que se busca reduzir com a criação das demais vias de solução.

Atualmente, tem sido comum se referir a conflitos de consumo considerando somente os conflitos interpessoais. Mas não se pode olvidar os conflitos sociais, ou interinstitucionais, pois é a solução desse tipo de conflito que traz uma significativa melhora na qualidade dos produtos e serviços oferecidos no mercado de consumo, pois sua repercussão é coletiva. Aqui estaríamos diante das situações de proteção dos direitos coletivos ou individuais homogêneos, pelo que é fundamental que as vias de solução dos conflitos sejam da mesma forma coletivas e não singulares ou particulares. Os conflitos aqui não seriam decorrentes de uma falha no sistema de produção em massa, mas sim derivados de políticas de mercado dos fornecedores contrárias (em choque, portanto) à política pública (de origem constitucional) de defesa do consumidor. A título exemplificativo poderíamos mencionar os casos de políticas de marketing dirigido às crianças, que se chocam com a proibição da publicidade abusiva; ou o uso de cláusulas sabidamente abusivas em contratos de adesão, como os contratos bancários e de saúde; ainda, políticas de ocultação de informação importantes para a preservação da saúde e segurança dos consumidor, como no caso da indústria do tabaco; práticas de assédio ao consumo dirigidas a idosos, como acontece na oferta de crédito consignado; ou ainda, mais concretamente, podemos mencionar o escândalo dos carros a diesel, produzidos pela Volkswagen, que intencionalmente desenvolveu um software que enganava a análise de emissão de gases poluentes, lesando os consumidores e o meio ambiente.

Para esses casos não é conveniente a solução privada dos conflitos, tendo em vista a repercussão dos interesses envolvidos. Aqui as vias adequadas são somente a administrativa ou a judicial, que podem ser acionadas preventivamente, ou, como sói acontecer, posteriormente, para reparação dos danos. Importante esclarecer que não se trata de intervenção estatal na economia ou limitação indevida da iniciativa privada, mas sim do cumprimento da garantia de qualidade e segurança no mercado de consumo, absolutamente necessárias para o melhor exercício da liberdade do consumidor, cujo processo de decisão depende essencialmente desses padrões para que seja justo e essencialmente livre!

A via administrativa nesses casos é muito adequada para uma atuação preventiva e de fiscalização. Entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, tais como a Senacon e, especialmente, os Procons, podem desempenhar um papel muito relevante na solução desses conflitos. Também o Ministério Público tem sido muito atuante na prevenção e fiscalização coletivas. Da mesma forma, as agências reguladoras, cuja função técnica original foi tão deturpada nos últimos anos, devem assumir esse compromisso de fiscalização e regulação preventiva de práticas em desacordo com os padrões de qualidade e segurança exigidos pela legislação brasileira. É muito importante lembrar que a mediação ou a negociação coletivas podem ser utilizadas nesse contexto. Resguardadas a necessária imparcialidade do mediador e voluntariedade dos mediandos, essa via se apresenta como uma opção excelente para, ao mesmo tempo, impactar positivamente o mercado de consumo e evitar a judicialização. Essa opção, no entanto, infelizmente não tem sido fomentada tal qual a mediação para conflitos interpessoais. Por fim, resta a via judicial das ações coletivas, via essa já implantada desde as origens do Direito do Consumidor, mas até hoje infelizmente tão negligenciada por nossos tribunais.

Dessa breve descrição dos conflitos de consumo no Brasil e das suas diferentes formas possíveis de resolução, resta o pensamento de que o verdadeiro tratamento adequado dos conflitos não pode se resumir à desjudicialização dos conflitos interpessoais, o que, não obstante traga satisfação para o consumidor envolvido, não causa o impacto necessário na melhoria de da qualidade, adequação e segurança no mercado. Acreditamos que seja o momento de voltar os olhos para os conflitos sociais ou interinstitucionais e empreender efetivos esforços para sua solução, seja por meio da via coletiva administrativa ou judicial, pois sem a garantia de padrões de qualidade e segurança nunca alcançaremos o ideal de um mercado realmente livre!


1 A resolução se refere à mediação e conciliação, mas é fato que essa última já estava integrada à atividade do Poder Judiciário de forma ampla desde pelo menos a instituição dos Juizados Especiais, anteriormente, Tribunais de Pequenas Causas.

Autores

  • é professora associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e 2ª vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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