Opinião

Aspectos controversos sobre a prescrição e a decadência no Direito do Consumidor

Autor

  • Julio Moraes Oliveira

    é mestre em Instituições Sociais Direito e Democracia pela Universidade Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura). Especialista em Advocacia Cível pela FGV. Membro do Brasilcon e do Iberc (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). Advogado e professor de graduação e pós-graduação em Direito.

19 de abril de 2018, 6h38

Os conceitos de prescrição e decadência sempre foram um ponto de divergência na teoria geral do Direito Civil. Afirma Agnelo Amorim Filho que a questão referente à distinção entre prescrição e decadência é tão velha quanto os dois velhos institutos de profundas raízes romanas e continua a desafiar a argúcia dos juristas[1].

Alguns autores afirmam que a prescrição é a perda da pretensão de reparação de um direito violado, em virtude da inércia de seu titular, nos prazos previstos em lei. E a decadência seria perda de um direito potestativo pelo decurso do tempo e também pela inércia de seu titular.

O objeto do presente estudo não tem a pretensão de dirimir essa divergência existente na doutrina há séculos, muito longe disso, existem estudos e trabalhos monográficos específicos sobre assunto. Aliás, a maioria da doutrina consegue apontar mais as consequências e diferenças entre uma e outra do que conceituar. A intenção aqui é apontar e denunciar que, no Direito do Consumidor, tais institutos são extremamente controversos também, principalmente quanto aos prazos aplicáveis.

Dispõe o artigo 26, parágrafo 2º, do CDC que “obstam a decadência: I – a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II – (Vetado). III – a instauração de inquérito civil, até seu encerramento”.

Com relação ao primeiro inciso, não se exige que a reclamação seja por escrito. Pode-se dar por meio eletrônico, oral, telefônico etc. É importante que o consumidor indique meios para comprovar sua reclamação como número de protocolo e outros dados que se fizerem necessários[2].

A partir de 1º de dezembro de 2008, entrou em vigor o Decreto 6.523, que fixa normas gerais sobre os serviços de atendimento ao consumidor (SAC). Em seu artigo 15, parágrafo 3º, está estipulado que “é obrigatória manutenção da gravação das chamadas efetuadas para o SAC, pelo prazo mínimo de 90 (noventa) dias, durante o qual o consumidor poderá requerer acesso ao seu conteúdo”.

A outra hipótese, mais rara de acontecer, é a possibilidade de se obstar o curso do prazo decadencial através do inquérito civil, que é o procedimento administrativo investigatório utilizado pelo Ministério Público para apurar lesão a direitos coletivos, permitindo posterior ajuizamento de ação coletiva. Tal procedimento tem previsão na Constituição (artigo 129, III) e na Lei 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública).

Em termos de benefícios individuais imediatos, o referido dispositivo tem pouca aplicação prática para os consumidores individuais, já que as investigações instauradas pelo MP, através desse inquérito, podem demorar bastante.

A doutrina também aponta divergência sobre o verbo “obstar” do artigo 26, parágrafo 2º, do CDC. É importante reconhecer que os prazos podem ser suspensos ou interrompidos. Na suspensão, o prazo volta a fluir com o restante que faltava no momento da suspensão; já na interrupção, o prazo volta ser contado novamente do zero.

A divergência existe até mesmo com relação aos critérios científicos para se diferenciar prescrição e decadência. Antônio Rizzatto Nunes afirma que a opção pelo termo “obstar” se deu para fugir da discussão doutrinária a respeito da prescrição, se ela pode ser interrompida ou suspensa[3].

A doutrina tem entendido que, apesar das discussões técnicas acerca do tema, a melhor solução seria entender que o termo “obstar” teria o mesmo significado de interrupção, ou seja, o prazo, uma vez obstado, começaria a contar do início novamente. Tal entendimento se coaduna mais com o caráter protetivo do Código de Defesa do Consumidor.

Outro ponto polêmico com relação aos prazos é o que diz respeito ao prazo prescricional previsto na Convenção de Varsóvia. O CDC prevê um prazo prescricional de cinco anos, enquanto a referida convenção, da qual o Brasil é signatário, prevê um prazo de dois anos. O STF já teve a oportunidade de se manifestar sobre o tema no RE 297.901/RN, ocasião em que entendeu que prevalecia o prazo previsto na convenção.

Apesar dessa decisão, o STF, nos últimos julgados, vem estabelecendo uma preferência pela aplicação do CDC em detrimento da Convenção de Varsóvia. Esse também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que entende ser o prazo de cinco anos previsto no CDC o correto (AgRg no AREsp 96.109/MG, rel. in., Luis Felipe Salomão, 4 T., Dje 29/9/2009).

Em 25 de maio de 2017, por maioria de votos, o Plenário do STF decidiu, no julgamento conjunto do Recurso Extraordinário 636.331 e do RE com Agravo 766.618, que os conflitos que envolvem extravios de bagagem e prazos prescricionais ligados à relação de consumo em transporte aéreo internacional de passageiros devem ser resolvidos pelas regras estabelecidas pelas convenções internacionais sobre a matéria, ratificadas pelo Brasil, inclusive com relação aos prazos prescricionais.

O prazo prescricional do CDC refere-se ao acidente de consumo. Assim, o STJ tem entendido que, nas outras situações que não envolvam acidente de consumo, o prazo prescricional será o disposto no Código Civil, de um ano.

“Caracterizada a inexecução contratual, é ânuo o prazo prescricional para ação de cobrança do valor complementar de indenização securitária” (REsp 574.947/BA, rel. min. Nancy Andrighi, 2 T., Dj 28/6/2004).

A doutrina e a jurisprudência não têm unanimidade com relação à aplicação dos prazos prescricionais nas demais situações que envolvem as relações de consumo, já que o prazo de cinco anos, do artigo 27, refere-se única e exclusivamente ao acidente de consumo. Desse modo, a discussão sobre a pretensão à reparação de danos decorrente da violação de um contrato, para uns estaria sujeita ao prazo prescricional de três anos, previsto no artigo 206, parágrafo 3º, V, para outros, estaria sujeito também ao prazo do artigo 27, de cinco anos, ou, diversamente, se enquadraria na regra geral, que prevê o prazo prescricional de dez anos, nos termos do artigo 205 do Código Civil, ressalvadas, naturalmente, as hipóteses em que a lei prevê prazo especial para determinadas espécies de contratos.

O Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, não teve unanimidade na apreciação do fato. A primeira decisão apareceu em 2006, concluindo pela aplicação do prazo de três anos também para a responsabilidade contratual. Já no ano de 2008, a matéria foi novamente submetida à apreciação do tribunal, que pela sua 2ª Seção, composta da 3ª e da 4ª Turma da corte e responsável por julgar as questões de Direito Privado, decidiu que o prazo prescricional se enquadrava na regra geral e, portanto, era de dez anos, do artigo 205 do CC.

Nos anos seguintes, o mesmo tribunal ora aplicou a prescrição trienal, ora aplicou a decenal. No primeiro semestre de 2016, houve mais dois acórdãos, ambos favoráveis à prescrição decenal. Nos últimos anos, houve uma prevalência da aplicação do prazo decenal, mas, no final de 2016, no julgamento do REsp (1.281.594/SP. 3ª Turma. Rel. min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22/11/2016), o STJ acabou adotando novamente o prazo trienal. O relator e os demais ministros votantes reviram suas posições anteriores, para, então, afirmar que a “pretensão à reparação civil” indica não apenas a indenização por danos advindos de ilícitos absolutos, mas também a indenização devida em razão de danos provocados pelo inadimplemento contratual.

Nesse sentido, vale destacar o entendimento do STJ:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC/1973. PRESCRIÇÃO. PRETENSÃO FUNDADA EM RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL. PRAZO TRIENAL. UNIFICAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA A REPARAÇÃO CIVIL ADVINDA DE RESPONSABILIDADE CONTRATUAL E EXTRACONTRATUAL. TERMO INICIAL. PRETENSÕES INDENIZATÓRIAS DECORRENTES DO MESMO FATO GERADOR: RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. DATA CONSIDERADA PARA FINS DE CONTAGEM DO LAPSO PRESCRICIONAL TRIENAL. RECURSO IMPROVIDO. 1. Decidida integralmente a lide posta em juízo, com expressa e coerente indicação dos fundamentos em que se firmou a formação do livre convencimento motivado, não se cogita violação do art. 535 do CPC/1973, ainda que rejeitados os embargos de declaração opostos. 2. O termo “reparação civil”, constante do art. 206, § 3º, V, do CC/2002, deve ser interpretado de maneira ampla, alcançando tanto a responsabilidade contratual (arts. 389 a 405) como a extracontratual (arts. 927 a 954), ainda que decorrente de dano exclusivamente moral (art. 186, parte final), e o abuso de direito (art. 187). Assim, a prescrição das pretensões dessa natureza originadas sob a égide do novo paradigma do Código Civil de 2002 deve observar o prazo comum de três anos. Ficam ressalvadas as pretensões cujos prazos prescricionais estão estabelecidos em disposições legais especiais. 3. Na V Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça, realizada em novembro de 2011, foi editado o Enunciado n. 419, segundo o qual “o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual”. 4. Decorrendo todos os pedidos indenizatórios formulados na petição inicial da rescisão unilateral do contrato celebrado entre as partes, é da data desta rescisão que deve ser iniciada a contagem do prazo prescricional trienal. 5. Recurso especial improvido. (STJ – REsp 1.281.594/SP – Terceira Turma – Relator Min. Marco Aurélio Bellizze – j. 22.11.2016 – Dje 28.11.2016).

Esse, também foi o entendimento adotado na V Jornada de Direito Civil que deu origem ao Enunciado 419:

“Art. 206, § 3º, V. O prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto responsabilidade extracontratual”.

Já com relação à prescrição das ações por repetição de indébito, o STJ editou a Súmula 412 que dispõe:

“A ação de repetição de indébito de tarifas de água e esgoto sujeita-se ao prazo prescricional estabelecido no Código Civil”. 

Isto é, nessas ações, o prazo será o do artigo 205 da lei civil, de 10 anos. Todavia, outras discussões sobre repetição de indébito em outros tipos de serviços começaram a aparecer no Superior Tribunal de Justiça, como, por exemplo, nos serviços de telefonia.

De início, houve uma divergência entre os prazos na 1ª e na 2ª Seção do STJ; a 1ª Seção tinha o entendimento de que o prazo era o decenal, de acordo com a Súmula 412 do STJ. Já a 3ª Turma tinha o entendimento de que o prazo seria o trienal, do artigo 206, parágrafo 3º, V, ou até mesmo o inciso IV, que trata do enriquecimento ilícito. Pacificando o entendimento, o STJ, no julgamento dos embargos de divergência, entendeu que, nos serviços de telefonia, aplica-se analogicamente a Súmula 412, ou seja, o prazo prescricional será também de 10 anos.

Assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SERVIÇO DE TELEFONIA. COBRANÇA DE VALORES INDEVIDOS. PRAZO PRESCRICIONAL PARA REPETIÇÃO DE INDÉBITO: DEZ ANOS (ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL). SÚMULA N.º 412/ STJ. APLICAÇÃO ANALÓGICA. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS. 1. Prescreve em dez anos (art. 205 do Código Civil) a pretensão de repetição de indébito relativa a valores indevidamente cobrados por serviço de telefonia. Aplicação analógica da solução conferida pelo Superior Tribunal de Justiça ao REsp, representativo de controvérsia, n.º 1.113.403/RJ. 2. Embargos de divergência acolhidos. (STJ – Corte Especial – Rel. Min. Laurita Vaz – EREsp 1515546 / RS – j. 18/05/2016 e DJe 15/06/2016)

Desse modo, a tendência é que o próprio STJ aplique o prazo decenal a todas as hipóteses de ações de repetição de indébito, não só aos serviços de água e esgoto ou telefonia.

Com relação à negativação indevida, o STJ tem tido o entendimento de que se aplica o prazo trienal do artigo 206, parágrafo 3º, V, do Código Civil (AgInt no REsp 1.294.478 / RS – rel. min. Luis Felipe Salomão – j 20/4/2017 e Dje 3/5/2017).

No que diz respeito aos planos de saúde, a 2ª Seção do STJ, na sessão de 10 de agosto de 2016, concluindo o julgamento de recursos especiais repetitivos (REsp 1.361.182/RS e 1.360.969/RS), firmou a tese de que, na vigência dos contratos de plano ou de seguro de assistência à saúde, a pretensão condenatória decorrente da declaração de nulidade de cláusula de reajuste nele prevista prescreve em 20 anos (artigo 177 do CC/1916) ou em três anos (artigo 206, parágrafo 3º, IV, do CC/2002).

O Superior Tribunal de Justiça também entendeu pela incidência da prescrição trienal sob a pretensão de restituição de valores pagos a título de comissão de corretagem ou serviço de assistência técnico-imobiliária pagos indevidamente no julgamento do REsp. 1.599.511 – SP – rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino – j. 24/8/2016).

A doutrina, nos termos da teoria do diálogo das fontes, entende que, com base no artigo 7º, caput, do CDC, deve-se aplicar a lei mais vantajosa ao consumidor, com relação aos prazos prescricionais ou decadenciais, isto é, a possibilidade de mistura de regimes legais para conferir maior proteção ao consumidor.


[1] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as ações imprescritíveis, RT, 300:7, out.1960, reproduzido na RT, 711:725-6, out. 1997.
[2] OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor completo. 4 ed. Revista, Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2017. p. 227.
[3] NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. p. 368.


Bibliografia
AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a Prescrição da Decadência e para identificar as ações imprescritíveis, RT, 300:7, out.1960, reproduzido na RT, 711:725-6, out. 1997.
OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor completo. 4 ed. Revista, Atualizada e Ampliada. Belo Horizonte: D’Plácido Editora, 2017. p. 227.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

Autores

  • Brave

    é professor da Fapam - Faculdade de Pará de Minas e da Faculdade Asa de Brumadinho, mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela Universidade Fumec, especialista em Advocacia Civil pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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