Opinião

O uso do Direito Penal como arma política pelos legisladores

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18 de abril de 2018, 6h39

Direito Penal em evidência. Garantias penais em alta. Por que não se aproveitar disso, dançar conforme a música e “de quebra” angariar alguns votos? O tão falado uso político do Direito Penal ataca mais uma vez. Há alguns dias, o senador Lasier Martins (PSD-RS) protocolou Projeto de Lei 166/20181 para alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal Brasileiro.

Em seu projeto, o senador, em clara afronta ao artigo 5, inciso LVII, da Constituição Federal, propõe a reforma do artigo 283, CPP, de modo que determina que ninguém será tratado como culpado até o trânsito da sentença penal condenatória, entretanto, poderá cumprir a pena imposta (?) a partir da condenação em segundo grau. Ou seja, eu digo para João que ele não é culpado, mas João irá para o presídio mesmo assim, afinal o tribunal assim o entendeu, independentemente que anteriormente tenha sido considerado inocente ou que futuramente venha a ser. A situação acima narrada nada mais é do que o uso simbólico do Direito Penal: legislações sendo criadas com um fim fora da própria norma.

O uso político do Direito Penal nasce e se prolifera exatamente da ideia que é propagada pelos meios de comunicação, tanto televisivos como cinematográficos, que divulgam ao público que o Direito Penal é a solução para todos os problemas do dia a dia, de modo que passa a ser visualizado como o Direito por excelência2. Diante de toda essa situação, o legislador se sente na obrigação de agir, de modo que produz legislações visando o agrado social. Legislando exatamente com tal finalidade: produção de sentimento de tranquilidade social, normas que produzam e retratem os anseios da população, que sejam convenientes para ela.

Assim, o que se está a criticar aqui é o simbolismo penal. Aquele uso simbólico do Direito Penal pelo legislador, que busca transparecer aos cidadãos que está atento aos problemas da sociedade e decidido a combater os seus males3. De modo que absorve todas as reivindicações populares, e após se criam normas atendendo-as para obter a satisfação do público4. A função simbólica então estará presente na norma desprovida de funções instrumentais, ou seja, que não prevê de fato a proteção a um bem jurídico e um modo de coibir práticas futuras a esse ilícito, mas que prevê apenas um efeito psicológico no próprio legislador e em seus eleitores, gerando sensação de satisfação, tranquilidade5 e confiança6.

O simbolismo fomenta-se e desenvolve-se em sociedades (caso do Brasil) em que o Estado é visto como combatente da criminalidade. Desse modo, toda vez que endurece e alarga penas impostas, prende e condena sujeitos determinados pela sociedade como criminosos, é bem recebido pela população7. Assim, tem-se a função simbólica na norma, quando suas funções latentes suplantam as funções manifestas. Em outras palavras, quando a norma tem por função demonstrar que o Estado é forte e combativo, diante de uma necessidade, em vez de ser objetiva e visar apenas proteger o bem jurídico ali tutelado8.

Entretanto, ao utilizar Direito Penal, o resultado buscado não é almejado. Isso se dá porque os seus meios de solução não são versáteis, uma vez que dependem de inúmeras regras e princípios, tais como o princípio da reserva legal; princípio do in dubio pro reo; princípio da presunção de inocência etc.9 O legislador, pressionado pela população, que espera uma solução imediata, vê-se muitas vezes sem saída, o que faz com que passe a buscar por tal controle ainda pelo Direito Penal, mas de forma que não necessite observar todos os critérios acima mencionados.

Assume-se uma postura política, pois legitima e direciona a consciência dos cidadãos, apropriando-se de um papel que correspondia à ética e à moral, representando uma reforma do poder punitivo, assumida pelos poderes públicos10. A partir desta tentativa de controle de situações recorrentes na sociedade utilizando o Direito Penal, ele é empregado no campo político11 como forma de encobrir e ocultar as contradições do sistema, viabilizando a personalização de problemas sociais em detrimento de uma imputação política. Assim, o legislador disfarça os seus reais interesses e cria dispositivos declarando uma determinada finalidade, entretanto, no seu íntimo, persegue outra, de modo que o cidadão acaba sendo enganado12 13.

Em virtude disso, o Direito Penal passa a ser utilizado como uma arma política: esquerda e direita usam dos problemas corriqueiros da sociedade e apresentam como solução a sua criminalização, angariando, desse modo, votos. Assim, as reais causas do problema são deixadas de lado, e o interesse público passa a ser facilmente negociado, ou seja, em troca do consenso eleitoral, têm-se demandas simbólicas de seguridade, fomentadoras de movimentos como o de “lei e ordem”14.

Por fim, em um ano eleitoral, deve-se atentar aos candidatos e às suas medidas e, desse modo, analisar até que ponto suas propostas legislativas não são meramente simbólicas; até que ponto ele não busca o mero consenso popular, em vez de buscar a solução efetiva do problema. O representante deve estar preocupado com a sociedade, e não apenas com a manutenção do seu mandato.


1 Art. 1º. O art. 283 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: “Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão: I – em flagrante delito; II – por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente; III – em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado; ou IV – no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. § 1º As medidas cautelares previstas neste Título não se aplicam à infração a que não for isolada, cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade. § 2º A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio. § 3º A prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente decorrente de juízo de culpabilidade poderá ocorrer a partir da condenação em segundo grau, em instância única ou recursal. § 4º Ninguém será tratado como culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.” (NR)
2 SILVEIRA. Renato de Mello Jorge. Direito Penal Supra-Individual. Interesses difusos. Vol. 3. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2003. p.170.
3 JAKOBS. Gunther. MELIÁ. Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: Noções e Críticas. Trad. André Luis Callegari e Nereu Giacomolli. Editora Livraria do Advogado. 6ª Ed. Porto Alegre: 2012. p. 79.
4 DÍEZ RIPOLLÉS. José Luis. A Política Criminal na Encruzilhada. Trad. André Luís Callegari. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2015. p. 26.
5 Nesse mesmo sentido: “Se lleva a cabo frecuentemente uma instrumentalización del Derecho Penal en su utilización como medio pedagógico para tranquilizar a la ciudadanía, para inspirar la suficiente confianza en el sentido de demostrar que los gobernantes políticos y los representantes del pueblo se preocupan por el problema de la inseguridad ciudadana y de la violencia en La sociedad. Se suele recurrir entonces a un notable adelantamiento de la barrera punitiva de la defensa social. Para ello se utilizan técnicas de tipificación que construyen las correspondientes figuras delictivas sobre elementos subjetivos del tipo, y cuyo contenido del injusto viene marcado normalmente por el peligro abstracto.” [BORJA JIMENEZ. Emiliano. Globalizacion y concepciones del derecho penal. Estudios Penales y Criminológicos, vol. XXIX (2009). ISSN 1137-7550: p. 176 Disponível em <http://www.dialnet.unijora.es> Acesso em 27/5/2017.]
6 SANTOS, Ângelo Marcelo Curcio dos. A função simbólica do Direito Penal, 2012. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/artigo/10709-A-funcao-simbolica-do-Direito-Penal>. Acesso em: 27.mai.2017.
7 SOUZA. Luciano Anderson de. Expansão do Direito Penal e Globalização. Editora Quartier Latin. São Paulo: 2007. p. 155.
8 HASSEMER. Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política. Editora Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 2008. p. 221.
9 HASSEMER. Winfried. Direito Penal. Fundamentos, estrutura, política. Editora Sérgio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 2008. p. 228.
10 BORJA JIMENEZ. Emiliano. Globalizacion y concepciones del derecho penal. Estudios Penales y Criminológicos, vol. XXIX (2009). ISSN 1137-7550: p. 176 Disponível em <http://www.dialnet.unijora.es> Acesso em 27/5/2017.
11 De modo que, “considerando-o não tanto como um sistema de produção de segurança real dos bens jurídicos, mas sim como instrumento de resposta simbólica à exigência de pena e segurança por parte do ‘público’ da política [BARATTA. Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 5/1994 | p. 5 – 24 | Jan – Mar / 1994 Doutrinas Essenciais de Direito Penal | vol. 2 | p. 495 – 522 | Out / 2010 DTR1994603]
12 A respeito do engano, afirma Baratta: Trata-se de um problema geral que se refere à própria estrutura do sistema de representação política na sociedade industrial avançada e às relações de comunicação entre todos os atores implicados: "políticos", publicistas, expertos e público.São criados "círculos fechados" nos quais se estabiliza não uma visão realista, mas sim uma visão deformada dos problemas e das incidências que sobre eles possa ter o sistema punitivo. O "engano" […], não é tanto um complô de "políticos" para colocar em "xeque" seu público, mas sobretudo a expressão do colapso em que se encontra o sistema decisório representativo devido às disfunções da estrutura política e comunicativa da sociedade. [BARATTA. Alessandro. Funções instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 5/1994 | p. 5 – 24 | Jan – Mar / 1994 Doutrinas Essenciais de Direito Penal | vol. 2 | p. 495 – 522 | Out / 2010 DTR1994603.]
13 WERMUTH. Maiquel Ângelo Dezordi. Medo e Direito Penal. Reflexos da expansão punitiva na realidade brasileira. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2011. p. 55.
14 Conforme Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, Notas sobre a Lei 8.072. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 1994. p 32: Entende-se por movimentos de Lei e Ordem, aquele que diante de um quadro de violência proposto, principalmente, pelos meios de comunicação, movidos por interesses políticos obscuros, de forma que ambos exageram a situação real, como a única forma de combate da criminalidade ou de um tipo de criminalidade. De modo que a luta contra tais espécies de criminalidade, dá-se sem respeito a qualquer tipo de “proteção”, sendo indiferente para os seus defensores que tal luta signifique na perda das tradicionais garantias processuais penais ou do próprio Direito Penal.

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