Opinião

Sentimento das massas não deve ser o condutor das decisões judiciais

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16 de abril de 2018, 7h01

O juiz que decidisse a controvérsia sem pedido das partes, não oferecesse à parte contrária razoável oportunidade de defesa, ou se pronunciasse sobre o seu próprio litígio, embora vestindo a toga de magistrado e a si mesmo se chamando de juiz, teria na realidade cessado de sê-lo.”[1]
(Mauro Cappelletti)

De tempos em tempos, me vejo forçado a retomar o assunto relativo ao ativismo judicial. Nos dias de hoje, com uma politização da justiça em níveis alarmantes, volto ao tema. Toda vez que a maioria deposita uma fé cega no Augusto Poder Judiciário — muito além da “fé nos juízes”, proclamada por Piero Calamandrei —, um arrepio invade minha espinha dorsal.

É aquele receio que todo amante da liberdade sofre quando se defronta com a adoração por personalidades, e suas opiniões de cunho individual, sempre que estas estejam — aparentemente — em consonância com os anseios das massas.

Nesse particular, para facilitar o entendimento do que se seguirá nas próximas linhas, gostaria de retomar o conceito de homem massa, apresentado por José Ortega y Gasset, e sua visão do Estado:

o homem-massa vê no Estado um poder anônimo, e como ele se sente a si mesmo anônimo vulgo —, crê que o Estado é coisa sua. Imagine-se que sobrevém na vida pública de um país qualquer dificuldade, conflito ou problema: o homem-massa tenderá a exigir que imediatamente o assuma o Estado, que se encarregue diretamente de resolvê-lo com seus gigantescos e incontrastáveis meios[2].

Pior, pede, praticamente, que o Judiciário aja como os jacobinos, cortando cabeças em praça pública. É o sentimento de vingança — não de justiça — saindo como larva de um vulcão em erupção. Aliás, tal qual disse a personagem Dona Benta de Monteiro Lobato, “logo que os homens se reúnem em multidão, o nível mental baixa muito. Quanto maior a multidão, mais baixo o nível mental”.

Será que devemos seguir esse trágico caminho, principalmente no âmbito das decisões judiciais? Não deveríamos, sob pena de retornarmos à barbárie e mostrarmos ao mundo que somos uma republiqueta de bananas. A orientação do ordenamento jurídico impõe, em grande medida, seguir o caminho da segurança jurídica e do respeito ao império das leis.

Nesse passo, San Tiago Dantas esclarecia, com clareza solar, que:

Muita gente diz que a finalidade do direito é produzir a justiça, mas tão importante é a produção de justiça como a produção da segurança e numerosos institutos e normas jurídicas não compreenderíamos se a única finalidade do direito fosse fazer justiça. É que ele quer fazer justiça, mas quer fazer também segurança[3].

O sentimento das massas, com suas contradições e idiossincrasias, não deve ser o condutor das decisões judiciais. Deve-se observar o direito e seguindo o preceito do filósofo estoico e Imperador Marcus Aurelius, separar o acidental do essencial. Veja-se, por oportuno, uma advertência importantíssima do Justice Oliver Wendel Holmes, em voto vencido, perante a Suprema Corte americana:

Grandes casos, assim como casos difíceis tendem a gerar precedentes ruins. Isso porque, esses casos não são grandes ou grandiosos em razão de sua importância para moldar a jurisprudência do futuro, mas, sim, em razão de uma peculiaridade que cria um grande interesse imediato, apelando para os sentimentos e distorcendo a capacidade de julgamento. Esse interesse imediato cria uma forma de pressão, levando ao que previamente era claro parecer duvidoso. Diante disso, até os princípios legais mais bem consolidados são torcidos e retorcidos (tradução livre)[4].

Pouco mais de um século depois, o Chief Justice John Roberts salientou:

Os membros desta Corte possuem a autoridade de interpretar a lei; não detemos a expertise nem a prerrogativa de proferir julgamentos sobre políticas. Essas decisões são atribuídas aos líderes eleitos de nossa nação, que podem ser expulsos de seus cargos se o povo discordar deles. Não é nossa função proteger o povo de suas escolhas políticas (tradução livre)[5].

Mas, ora bolas, qual seria o grande receio de conferir mais liberdades aos magistrados em geral? Por que, raios, a mais alta corte de um país não poderia proteger o cidadão das lambanças do legislador? A resposta para essa indagação vem nas palavras de Lord Devlin:

é grande a tentação de reconhecer o judiciário como uma elite capaz de se desviar dos trechos demasiadamente embaraçados da estrada do processo democrático. Tratar-se-ia, contudo, de desvio só aparentemente provisório; em realidade, seria ele a entrada de uma via incapaz de se reunir à estrada principal, conduzindo inevitavelmente, por mais longo e tortuoso que seja o caminho, ao estado totalitário[6].

Eis aí a pièce de résistance, não se troca o arbítrio de um poder pelo outro. Da mesma forma, não se substitui o bom julgador por suposto representante dos anseios das massas. Sinto falta, por exemplo, de juízes e juristas da estirpe de Aliomar Baleeiro, que, em voto contundente, arrematou:

Por vezes, sustentei que não aplicar o dispositivo indicado, ou aplicar o não indicado, assim como dar o que a lei nega, ou negar o que ela dá, equivale a negar vigência de tal lei. E ainda continuo convencido disso, pois nenhum juiz recusa vigência à lei, salvo casos excepcionalíssimos de direito intertemporal ou de loucura furiosa (RTJ 64/677).

No pórtico do presente, apresentou-se uma transcrição de Mauro Cappelletti — o qual, como se sabe, defendia a “criatividade da função jurisdicional”. Todavia, o grande processualista respeitava os limites legais para a criatividade, que, primordialmente, deveria ser utilizada para preencher as lacunas legais.

Aliás, vale lembrar a diferença abismal entre o processo judicial e o legislativo. Um não tem nada a ver com o outro. Logo, se tomamos de empréstimo a liberdade do legislador e a transferirmos, sem quaisquer limites, aos magistrados, corremos o risco do totalitarismo judicial como alertou Lord Devlin.

Vale dizer, por fim, que nem a visão consequencialista da Análise Econômica do Direito, e.g., poderia ser capaz de obstar a aplicação do texto legal. Na mesma esteira, não se pode usar a sociologia, a política e a “vontade das massas” para este mesmo fim.

O Direito posto deve manter-se como guia fiel do julgador, sem que se permita o socorro ao subterfúgio com malabarismos dialéticos. Checks and Balances e criatividade não se confundem com ativismo e na perigosíssima tendência de legislar da toga.

De outra forma, parafraseando Winston Churchill, o sistema jurídico se torna “um mistério, envolto por um enigma, embrulhado num segredo”. De rebarba, o país se torna uma “República de Ocasião”, sem um pingo de segurança jurídica, que, por óbvio, prejudica o próprio desenvolvimento econômico e social do país. Brasil, onde as leis mudam ao sabor das massas e da conveniência. Esse slogan acabaria com a nossa jovem democracia. Precisamos, urgentemente, de “juízes em Berlim”!


[1] “Juízes Legisladores?”, Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.
[2] A Rebelião das Massas Página 8 – http://www.cisc.org.br/portal/biblioteca/rebeliaodasmassas.pdf
[3] Programa de Direito Civil – Parte Geral, Ed. Rio, 4ª Tiragem, 1979, pág. 37.
[4] “Great cases, like hard cases, make bad law. For great cases are called great not by reason of their real importance in shaping the law of the future, but because of some accident of immediate overwhelming interest which appeals to the feelings and distorts the judgment. These immediate interests exercise a kind of hydraulic pressure which makes what previously was clear seem doubtful, and before which even well settled principles of law will bend.” (Northern Securities Co. v. United States, 193 U.S. 197 (1904), Dissenting Opinion – Justice Oliver Wendell Holmes)
[5] “Members of this Court are vested with the authority to interpret the law; we possess neither the expertise nor the prerogative to make policy judgments. Those decisions are entrusted to our Nation’s elected leaders, who can be thrown out of office if the people disagree with them. It is not our job to protect the people from the consequences of their political choices.” (National Federation of Independent Business v. Sebelius, 567 U.S. 519 (2012) – Chief Justice John Roberts)
[6] In “Judges and Lamakers”, em Modern Law Ver., 39 (1976), p. 16, apud Mauro Capelleti, “Juízes Legisladores?”, Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, pág. 93.

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