Opinião

Tanto a lei quanto a jurisprudência do STF admitem que Lula fique em liberdade

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11 de abril de 2018, 13h40

De 1941 (quando foi editado o Código de Processo Penal) até 2009 (quando o Plenário do STF julgou o HC 84.078), permitia-se a prisão depois da decisão de segunda instância e antes, portanto, do trânsito em julgado. No que tange à liberdade individual, a exposição de motivos do CPP não poderia ser mais clara acerca do tratamento que se pretendia dar à presunção de inocência:

“É restringida a aplicação do in dubio pro reo. É ampliada a noção do flagrante delito, para o efeito da prisão provisória. A decretação da prisão preventiva, que, em certos casos, deixa de ser uma faculdade, para ser um dever imposto ao juiz, adquire a suficiente elasticidade para tornar‑se medida plenamente assecuratória da efetivação da justiça penal” (sem grifos no original).

De fato, o CPP previu três modalidades de prisões “automáticas”, sem caráter de antecipação de pena, mas dotadas de “cautelaridade presumida” juris tantum:

(1) prisão decorrente da sentença condenatória recorrível[1], constante do artigo 393, I, conjugada com a exigência de recolhimento à prisão como condição para apelar[2], estabelecida no artigo 594;

(2) prisão decorrente da pronúncia[3], prevista no artigo 408, 1º; e

(3) prisão decorrente de acórdão condenatório[4], conforme disposto no artigo 637.

Essas prisões cautelares “por força de lei” (sem necessidade de fundamentação específica) mantiveram-se em vigor sob a égide das Constituições de 1937 (decretada pelo presidente da República sem a participação do parlamento), de 1946 (produzida em Assembleia Constituinte), de 1967 (aprovada pelo Congresso Nacional, que se encontrava fechado desde outubro de 1966 e foi reaberto para aprovar a Constituição, segundo as regras determinadas pelo Ato Institucional 4, de dezembro de 1966), e de 1969 (decretada pelos ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, durante o recesso parlamentar de 10 meses, com base no Ato Institucional 5, de 1968). Uma jurisprudência consolidada. Pacífica. Um critério que valia para todos os cidadãos. Sinônimo de segurança jurídica.

Com o advento de uma nova Constituição em 1988, cujo artigo 5º, LVII, estabeleceu como direito individual fundamental a garantia de que “Art. 5º, LVII – Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, houve um movimento de modificar a jurisprudência a fim de que somente fosse possível prender alguém se demonstrada a necessidade específica (prisão cautelar) ou após o trânsito em julgado (prisão pena).

A doutrina sustentava que o conceito de in dubio pro reo recebera um novo status, de garantia fundamental. Por conseguinte, a necessidade da prisão antes da condenação definitiva deveria ser um ônus da acusação, não podendo ser aplicada “automaticamente”. Afinal, a Constituição de 1988 inovara: nenhuma das Constituições anteriores havia previsto tal princípio em seu catálogo de direitos individuais.

Inobstante o posicionamento de alguns ministros (notadamente Sepúlveda Pertence e Marco Aurélio Mello) defendendo a necessidade de mudança na interpretação do STF sobre tais prisões, os primeiros julgados logo após a promulgação mantiveram a jurisprudência pré-Constituição, afirmando que as regras infraconstitucionais relativas à prisão constantes do Código de Processo Penal, eram compatíveis com a redação da Constituição de 1988.

Uma a uma, as prisões automáticas constantes do CPP foram declaradas recepcionadas pela Constituição:

(1) prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, constante do artigo 393, I: HC 67.841, 2ª Turma, 1990; e HC 72.366, Pleno, 1995; e a exigência de recolhimento à prisão como condição para apelar, estabelecida no artigo 594: HC 68.841, 1ª Turma, 1991; e HC 69.263, 2ª Turma, 1992;

(2) prisão decorrente de pronúncia, prevista no artigo 408, 1º: HC 67.707, 1ª Turma, 1989; HC 68.499, 2ª Turma, 1991; e HC 68.583, 2ª Turma, 1991;

(3) prisão decorrente de acórdão condenatório, conforme o disposto no artigo 637 (HC 67.245, 2ª Turma, 1989[5]; HC 67.707, 1ª Turma, 1989; e HC 68.037, 2ª Turma, 1990).

No tocante a esta última modalidade, depois de enfrentar o tema nas suas duas turmas durante os anos de 1989 e 1990, o Plenário do STF julgou a questão no HC 68.726, em 1991 (posteriormente reforçado no HC 69.964, Pleno, 1992, e no HC 72.061, Pleno, 1995).

Nessas três ocasiões (em 1991, 1992 e 1995), o Plenário do STF entendeu que o texto constitucional não proibia a prisão depois da decisão de segunda instância, se a lei assim o previsse. E de fato a lei não previa que a interposição do recurso extraordinário suspenderia a execução da pena.

De 2009 até 2016 (quando o Plenário do STF julgou o HC 126.292), vigorou o entendimento oposto, ou seja, o de que o acusado não poderia ser preso antes do trânsito em julgado, salvo se houvesse fundamentação cautelar específica que demonstrasse a necessidade dessa prisão, não bastando o texto da lei.

A mudança de orientação do STF não foi fruto de qualquer voluntarismo garantista. Isso se deveu ao fato de o Congresso Nacional ter revogado os artigos 408, parágrafo 1º (prisão decorrente de pronúncia) e 594 (recolhimento à prisão como condição para apelar), por meio das leis 11.719/2008 e 11.689/2008, respectivamente.

Com a revogação dos dispositivos que previam prisões cuja fundamentação cautelar era juris tantum, ou seja, presumia-se a necessidade da prisão, o STF avançou a jurisprudência para acabar com a “cautelaridade presumida” nos demais casos (artigo 393, I e 637, que tratavam da prisão decorrente de sentença condenatória e de acórdão condenatório, respectivamente), proibindo qualquer prisão sem expressa fundamentação cautelar.

Em outras palavras, no HC 84.078, de 2009, a decisão do STF transferiu o ônus de demonstrar a necessidade da prisão (ou de qualquer outra cautelar) para quem a requeresse, na medida em que a lei fora modificada para extinguir duas das três prisões automáticas.

Na sequência, o Congresso Nacional promulgou a Lei 12.403/2011, revogando o artigo 393, I e editando o artigo 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Pela redação desse dispositivo, a prisão cautelar limita-se às hipóteses de flagrante delito, prisão temporária ou prisão cautelar.

O texto é de clareza solar. Permite (1) a prisão em flagrante; (2) a temporária e preventiva (com ordem escrita e fundamentada); ou (3) a decorrente de sentença condenatória transitada em julgado.

Recentemente, em fevereiro de 2016, julgando o HC 126.292, o Plenário do STF fez retornar a jurisprudência ao período anterior a 2009, permitindo a prisão antes do trânsito em julgado sem necessidade de fundamentação específica, bastando o comando da lei. Uma decisão que, ao interpretar a Constituição, ignorou que cabe ao Congresso Nacional, antes de todos, fazer escolhas por meio da lei, desde que não contrariem a Constituição. E ainda que a Constituição não obrigasse o trânsito em julgado, claramente não exige que a prisão-pena seja executada antes da decisão se tornar definitiva.

A decisão do HC 126.292 foi reafirmada pelo Plenário nos julgamentos do RE 964.246, com repercussão geral (2016), e mais recentemente no HC 152.272 (2018), impetrado em favor do ex-presidente Lula.

Contudo, a prisão depois da decisão de segunda instância e antes do trânsito em julgado não é obrigatória. Nem nunca foi. Afinal, trata-se de uma prisão que ainda não é pena. É cautelar.

Com efeito, mesmo em 1991, quando permitiu a prisão antes do trânsito em julgado após a Constituição de 1988, a jurisprudência do STF não admitiu os demais efeitos da pena definitiva, como o lançamento do nome do réu no rol dos culpados (HC 69.696, Pleno, 1992), ou pagamento da pena acessória de multa (Pet-AgR_1079, Pleno, 1996).

Assim, por não ser ainda uma condenação definitiva, a prisão decorrente de segunda instância sempre foi tratada como prisão cautelar, ainda que a necessidade não precisasse ser demonstrada, admitindo-se a “cautelaridade presumida” decorrente do texto da lei infraconstitucional.

Segue daí que, se essa prisão decorrente de acórdão condenatório é cautelar, e não uma antecipação da pena, ela está sujeita ao regime jurídico das medidas cautelares. E, nesse ponto, tanto o CPP quanto a jurisprudência do STF permitem que a prisão cautelar do acusado seja substituída por outra medida cautelar diferente da prisão, como a fiança.

Essa possibilidade de concessão de fiança constava expressamente das redações dos artigo 393, I; artigo 408, parágrafo 1º e artigo 594. Além disso, o CPP possui regra específica sobre a concessão de fiança, mesmo no caso de prisão decorrente de acórdão condenatório: “Art. 334. A fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória[6]. Esse dispositivo segue em plena vigência, sem que jamais tenha sido questionada sua constitucionalidade.

Assim como seguia a lei para autorizar as prisões, o STF também autorizava, com base na lei, tanto nas turmas como no Plenário, em casos idênticos ao do ex-presidente Lula, que o acusado prestasse fiança para aguardar em liberdade o trânsito em julgado: HC 72.169, 1ª Turma, 1995[7]; RHC 75.917, 2ª Turma, 1998[8]; e HC 76.714, Pleno, 1998, restando este último assim ementado: “Inexistindo condenação anterior com trânsito em julgado, cabível é a fiança, assistindo ao paciente o direito de aguardar em liberdade o trânsito em julgado da condenação”.

Em 1998, quando o Plenário concedeu o HC 76.714 por maioria (vencido apenas o ministro Marco Aurélio, que concedia a ordem em maior extensão ainda, permitindo a liberdade até o trânsito em julgado mesmo sem prestação de fiança), não havia a previsão legal de outras medidas cautelares, como hoje.

Desde 2011, com a alteração do artigo 319, CPP, a fiança pode ser concedida cumulativamente com outras cautelares, como o recolhimento domiciliar no período noturno quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos. A prisão, diz a lei, deve ser limitada apenas aos casos em que nenhuma outra medida cautelar se mostrar suficiente (artigo 282, parágrafo 6º, CPP. “A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319)”).

Portanto, salvo se demonstrada a necessidade da prisão do ex-presidente Lula, tanto a lei quanto a própria jurisprudência do STF admitem que ele fique em liberdade, seja por meio do pagamento de fiança, seja mediante a imposição de outra medida cautelar.

Então, pergunta-se: por que Lula está preso?


[1] “Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível: I – ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança” (redação vigente de 1941, até sua revogação pela Lei 12.403/11).
[2] “Art. 594. O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto” (redação vigente de 1973, até sua revogação pela Lei 11.719/08).
[3] “Art. 408, § 1º Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol dos culpados, recomendá-lo-á, na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para a sua captura” (redação vigente de 1973 a 1995) e “Art. 408, § 1o Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura” (redação dada pela Lei 9.033/95, vigente até sua revogação pela Lei 11.689/08).
[4] “Art. 637. O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença” (redação original de 1941, vigente até hoje).
[5] “Tendo o paciente sido condenado em primeiro grau, por crime de homicídio, mas, em face de sua primariedade e de seus bons antecedentes, aguardando em liberdade o julgamento da sua apelação, tendo vindo a ser mantida a condenação também em segundo grau, não é de se lhe conceder ‘habeas corpus’ para permanecer solto, aguardando julgamento de recurso extraordinário, pois, como resulta do art. 637 do CPP, não possui este efeito suspensivo. Não ampara sua pretensão o disposto no art. 5º, LVII da nova Constituição Federal.”
[6] A redação original foi alterada pela Lei 12.403/2011, sem modificação, contudo, de sua abrangência e significado: “Art. 334. A fiança poderá ser prestada em qualquer termo do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória” (redação original do CPP de 1941).
[7] “II. Fiança: prestação a qualquer tempo, enquanto não transitar em julgado a decisão condenatória (C.Pr.Pen., art. 334): irrelevância da inexistência de efeito suspensivo dos recursos contra ela cabíveis e de a prisão dele decorrente constituir execução provisória da condenação: retratação de entendimento contrario em decisões precedentes (HC 70.798, Plen., 14.12.93, Pertence; HC 70.662, 1. Turma, 21.6.94, C. Mello).”
[8] “1. A ordem de prisão decorrente de decisão condenatória proferida por juiz competente não configura constrangimento ilegal ou abuso de poder. Consoante reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal, a determinação para expedição de mandado de prisão não conflita com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII) nem com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). 2. Tendo em conta que a pena mínima cominada para o crime previsto no art. 299, parágrafo único, do C.P., é de um ano e dois meses, tem-se como cabível a prestação da fiança a teor do art. 323, I, do C.P.P., conforme a atual jurisprudência do STF. 3. O fato de haver sido revogado o sursis em face da superveniência de nova condenação não impede a concessão da fiança enquanto não transitar em julgado a decisão condenatória. 4. Recurso conhecido e provido, para deferir, em parte, o habeas corpus.”

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