Observatório Constitucional

Limites constitucionais do voto de qualidade do presidente do STF

Autor

  • Damares Medina

    é advogada doutora em Direito professora do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e coordenadora de pesquisa do Instituto Constituição Aberta (ICONS).

14 de outubro de 2017, 8h03

No processo decisório judicial, o voto de qualidade é a prerrogativa que o Regimento Interno do tribunal confere ao seu presidente (ou ao vice-presidente no exercício da presidência) de desempatar alguns julgamentos, votando duas vezes. É comum que o voto de qualidade seja equivocadamente confundido com o voto de minerva, cujas distinções delinearemos nas linhas seguintes.

O voto de qualidade encontra previsão no regimento interno de todos os tribunais brasileiros, desde os tribunais de justiça, os tribunais regionais do trabalho, os tribunais regionais federais, o Tribunal Superior Eleitoral, o Superior Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Superior do Trabalho, inclusive no julgamento de ações rescisórias originárias. Nesse texto trataremos da utilização do voto de qualidade pelo Supremo Tribunal Federal, à luz dos precedentes RE 630.147 e RE 631.102.

Revisitando princípios
A amplitude da controvérsia explicitada e a compreensão de seus meandros perpassa o radical de princípios assentados ainda na Grécia Antiga, como o in dubio pro reo. De igual forma, o non liquet, a coisa julgada e o devido processo legal são princípios cuja ponderação há de se levar em consideração na presente temática.

Os contornos do princípio do in dubio pro reo foram delineados ainda no areópago, que sagrava vencedor todo acusado que obtinha um empate no julgamento: o mesmo número de votos pela sua condenação e pela sua absolvição. Como descreve Aristóteles, em passagem acerca da constituição de Atenas[1], o areópago era um conselho decisório formado por 12 aristocratas gregos que observava o rito segundo o qual cada julgador recebia duas pedras diferentes, uma significando o voto pela absolvição e outra a condenação, sendo que o empate favorecia sempre o réu.

Da mitologia grega colhemos o registro do voto de minerva que é tido como um marco da passagem do matriarcado para o patriarcado, mas, também, como a consagração do princípio do in dubio pro reo.

No julgamento de Orestes, que vingara a morte do seu pai, Agamemnon, matando a sua própria mãe e o amante (Clitemnestra e Egisto)[2], a deusa grega Palas Atena (Minerva para os romanos) proferiu o voto de minerva, desempatando o julgamento a favor da absolvição de Orestes, reafirmando o princípio do in dubio pro reo. Diante do empate ao qual chegara o júri dos 12, Atena proferiu um único e decisivo voto, que inocentou Orestes. Veja que nem mesmo Atena votou em dobro, o seu voto apenas confirma o princípio do in dubio pro reo diante do empate do areópago.

Ainda que se possa identificar, no voto de minerva, as origens do voto de qualidade, as duas figuras decisórias são bastante distintas. Isso porque, no voto de minerva, o ‘presidente’ vota apenas em caso de empate, proferindo um único voto. Já no voto de qualidade, o presidente sempre vota e, excepcionalmente, tem a peculiar prerrogativa de votar duas vezes, situação na qual o seu voto tem um peso em dobro.

Contudo, saliente-se que apesar de o voto de qualidade significar semanticamente a atribuição de um poder decisório diferenciado a um dos julgadores, seu sentido teleológico não pode dissociar-se de seu radical histórico, vocacionando-se a sua aplicação como um critério para dirimir o impasse, a dúvida, sempre em prol do acusado[3].

No direito romano, a expressão non liquet é abreviação da frase iuravi mihi non liquere atque ita iudicatu illo solutus sum, que representa o juramento proferido pelo juiz ao abster-se de julgar por entender que a causa não estava suficientemente clara[4]. Embora a expressão in dubio pro reo não fosse empregada de modo expresso no direito romano, é possível observar certa correlação entre o princípio in dubio pro reo e o non liquet. A existência de outras figuras análogas ao benefício da dúvida, juntamente com a possibilidade de decretação do non liquet, evidenciam que, no caso de dúvida razoável, deveriam ser aplicadas as consequências menos gravosas e mais benignas às partes[5].

Ainda no direito romano, a coisa julgada possui raízes eminentemente práticas: para que a vida social se desenvolva segura e pacífica é necessário imprimir certeza ao gozo dos bens da vida e, sobretudo, garantir o resultado do processo (a res in iudicium deducta). O processo, por sua vez, é um conjunto de regras (devido processo legal) que devem ser entendidas como um instituto público destinado à atuação da vontade lei, culminando na pronuntiatio iudicis: que condena ou absolve, reconhece ou desconhece, mas, sobretudo, garante a segurança e perenidade do bem disputado[6].

A título meramente exemplificativo, temos a utilização do voto de qualidade nos julgamentos de ações rescisórias: em se tratando de rescisão de coisa julgada, chegando o colégio decisório a um empate (vale dizer, a falta de clareza acerca da possibilidade ou não de desconstituição da coisa julgada), qual a solução menos gravosa às partes e à ordem jurídico-constitucional? Preservar a coisa julgada ou rescindi-la? Ao conferir ao presidente do tribunal a prerrogativa de votar em dobro em caso de empate, o Regimento Interno está a autorizar o prejuízo do réu da ação rescisória e a desconstituição da coisa julgada material? Nunca é demais lembrar que a nossa Constituição protegeu a coisa julgada da incidência prejudicial das leis e, até mesmo, das emendas à constituição, o que dizer da proteção contra o empate conjuntural no julgamento de ação rescisória.

São muitas indagações às quais pretendemos lançar algumas luzes nas linhas subsequentes.

O voto de qualidade na jurisprudência do STF: análise dos precedentes RE 630.147 e RE 631.102.
No julgamento do RE 630.147, o Plenário do STF emitiu tese acerca dos limites constitucionais para utilização do voto de qualidade do presidente.

O apelo extremo versava sobre a aplicação da Lei da Ficha Limpa já nas eleições de outubro próximo, tema constitucional de altíssima envergadura que, literalmente, dividiu o Pleno do STF, sendo que a sociedade ansiava por uma pronta resposta do guardião da Constituição.

Entretanto, essa resposta jurisdicional foi sustada, toldando-se o debate acerca da questão e fundo (aplicação da ficha limpa) pela celeuma em torno dos limites constitucionais e democráticos nos quais o presidente do STF poderia usar o voto de qualidade e votar em dobro.

Após 10 horas de julgamento, o colégio pleno do STF havia chegado a insuperável empate, já que o tribunal estava excepcionalmente com a composição paritária, em decorrência da demora da Presidência da República na indicação de um novo ministro, que viria a ocupar a vaga proveniente da aposentadoria do Min. Eros Grau. Travou-se o debate cuja transcrição se segue:

“O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Presidente, somente um aspecto. Gostaria de saber em que situação concreta de julgamento poderá ser aplicado o inciso IX do artigo 13 do Regimento Interno?

‘Art. 13 (…) IX – proferir VOTO DE QUALIDADE nas decisões do Plenário, para as quais o Regimento Interno não preveja solução diversa, quando o empate na votação decorra de ausência de Ministro em virtude de:’ (…)

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR) – Onde está dito que prevalece a decisão dos cinco, de Vossa Excelência?

O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI – A presunção é de equívoco no empate? Num Tribunal Superior integrado por três Ministros da Suprema Corte? Data vênia!

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Ministro, não está dito em lugar nenhum, porque está empate.

A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – Não houve número suficiente para derrubar o acórdão, permanece hígido, portanto, o ato.

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR) – Onde está dito que prevalece o voto de Vossas Excelências, que formam o bloco dos cinco?

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Não há voto para reformar e não há voto para manter o acórdão. Há empate. (…)

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR) – Mas qual é a intenção de Vossa Excelência se houver novo empate? Vossa Excelência pretende desempatar? (…)

O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO (PRESIDENTE) – Ministro, vamos partir do seguinte pressuposto: EU NÃO TENHO NENHUMA VOCAÇÃO PARA DÉSPOTA, NEM ACHO QUE O MEU VOTO VALHA MAIS DO QUE QUALQUER DOS OUTROS MINISTROS, PORQUE, SE VALESSE, CINCO MINISTROS NÃO TERIAM DISCORDADO DO MEU VOTO!

O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO (RELATOR) – Excelente.

O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO – Se subsistir o empate, e desde que o eminente Ministro Presidente já afirmou que não irá exercer a prerrogativa de proferir o voto de qualidade, a única solução será suspender-se e aguardar-se a nomeação e posse do novo Ministro.” (destaques atuais)

 

Em que pese o objeto estrito do referido recurso (afastar a aplicação imediata da Lei da Ficha Limpa) a perspectiva aberta da causa de pedir no controle de constitucionalidade exercido por esse E. STF amalgama a ratio decidendi e obiter dictum proferidos nas decisões do STF.

De outro giro, o desenvolvimento dos pronunciamentos, as teses emitidas e a dimensão do impasse que se instalou, a partir do empate decisório, conduzem à conclusão de que a questão procedimental ultrapassou, em muito, um mero obiter dictum.

Configurou-se um momento ímpar na jurisprudência do E. STF, no qual os ministros, dentre eles o presidente do tribunal, estabeleceram limites recíprocos de atuação constitucional e de aplicação do voto de qualidade.

Se a questão acerca da solução do empate no julgamento fosse meramente procedimental, um simples obiter dictum, a decisão constitucional de fundo (objeto central do recurso extraordinário) jamais teria sido sustada pelo empate e pela consequente dificuldade em superá-lo.

Inobstante a previsão regimental, a aplicação do voto de qualidade não pode divorciar-se dos contornos constitucionalmente fixados para o desenvolvimento válido do devido processo legal, do princípio da colegialidade e do juiz natural que, no caso, é o colégio decisório, e não o presidente do tribunal.

Operou-se verdadeiro impasse no tocante ao procedimento que seria adotado para a resolução do empate, já que o Min. Cesar Peluso, então presidente do STF, se recusava a valer-se do voto de qualidade e votar em dobro, ocasião na qual proferiu a célebre frase: “Eu não tenho nenhuma vocação para déspota, nem acho que meu voto valha mais do que qualquer dos outros Ministros”.

O pedido de desistência na candidatura do recorrente no RE 630.147 e a consequente perda de objeto do recurso acabaram por postergar a solução do empate. Entretanto, a absoluta e inafastável excepcionalidade do uso do voto de qualidade, apenas em situações de insuperável empate foi a nota marcante dos debates, tendo o tema voltado à baila menos de um mês depois.

Tamanha a seriedade e envergadura constitucional do tema acerca dos limites constitucionais para o exercício do voto de qualidade pelo presidente do tribunal que, em outubro de 2010, o problema da solução de empates insuperáveis persistia no Pleno do STF, especificamente no julgamento do RE 631.102.

Durante horas de debates, todos os ministros se dedicaram a encontrar a melhor forma para solucionar uma votação empatada, tendo em vista não apenas o irrefreável tributo aos direitos e garantias fundamentais das partes em litígio, mas, sobretudo, a incolumidade do entendimento de cada um dos integrantes que formam o todo do colégio decisório que, meio a meio, se encontrava vencido e vencedor.

Neste sentido, assinale-se o posicionamento do exmo. Ministro Celso de Mello, por ocasião do julgamento do RE 631.102, verbis:

“Desejo enfatizar, neste ponto, por necessário, que a Emenda Regimental nº 35/2009, ao introduzir a norma inscrita no inciso IX do art. 13 do RISTF, contemplou hipótese de verdadeira maioria ficta, produzida pelo exercício, sempre excepcional, do voto de qualidade atribuído ao Presidente do Supremo Tribunal Federal.

É certo, no entanto, que essa técnica de votação (e de decisão), necessária para definir situações insuperáveis de empate (ressalvados os casos no parágrafo único do art. 146 e no art. 205, parágrafo único, inciso II, ambos do RISTF), não se mostrará compatível com a cláusula de reserva de plenário fundada no art. 97 da Constituição (…)”

 

O impasse foi solucionado mediante a aplicação analógica do inc. II do art. 205 do RI do STF, preservando-se o ato impugnado por intermédio do RE 631.102.

Apenas no julgamento dos embargos de declaração interpostos contra o acórdão, o tema acerca da solução do empate na votação do julgamento do RE 631.102 foi retomado, em 9.11.2011, ocasião na qual se decidiu pela suspensão do julgamento para que se aguardasse a nomeação e a posse do novo ministro indicado pela Presidência, Min. Luiz Fux, para decidir a causa. Passado mais de um mês, enfim, deliberou-se por encerrar o julgamento com a aplicação do voto de qualidade previsto na alínea ‘b’ do inc. IX do art. 13 do RISTF.

O contexto fático, procedimental e decisório acima descrito dá a envergadura do presente tema, bem como a profundidade dos pronunciamentos e teses com as quais os ministros do STF se comprometeram, especificamente no tocante aos limites constitucionais do uso do voto de qualidade do presidente em caso de empate, no julgamento dos RE 630.147 e 631.102.

Conclusão
Após um breve resgate dos princípios que oferecem sustentação à versão atualizada do voto de qualidade praticado no dia a dia do processo decisório judicial brasileiro, perpassando pelos precedentes paradigmáticos do STF, concluímos que, como qualquer prerrogativa institucional, o voto de qualidade deve obediência aos princípios constitucionais que moldam o seu exercício, sendo vedado o seu uso alargado das balizas fixadas pela Constituição Federal, dentre os quais, o benefício do réu afigura-se como limite material intransponível, a condicionar o exercício do voto de qualidade pelo presidente do tribunal.


[1] ARISTOTLE. Constitution of Athens (vol.20/23). Cambridge, MA, London: Loeb Classical Library, 1952. Translated by H. Rackham.

[2] Os crimes contra o próprio genos eram tradicionalmente punidos com a morte pelas Erínias, seres demoníacos para as quais o matricídio era o mais grave e imperdoável de todos os crimes. Temeroso do terrível castigo, Orestes apelou para o deus Apolo que, advogando em seu favor, levou o julgamento ao Areópago. As Erínias foram as acusadoras, em um júri formado por 12 cidadãos ateniense e presidido por Atena (que corresponde à deusa romana Minerva).

[3] PANDOLFO, Rafael. O in dubio pro reo e sua aplicabilidade às sanções tributárias. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

[4] Noctes Atticae, de Aulus Gellii, Livro XIV, Cap. 2, ver. 25.

[5] PANDOLFO, Rafael. O in dubio pro reo e sua aplicabilidade às sanções tributárias. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).

[6] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Bookseller: Campinas – SP, 1998, p. 447.

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