Direito Civil Atual

Obra Coletiva reconhece a importância de Orlando Gomes para o Direito

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20 de novembro de 2017, 7h00

Que o sistema de ensino e estudos” não exponha aos riscos “de nos tornarmos um povo de advogados, de chicanistas, de fazedores de petição, sem critério, sem ciência, sem ideal”. Os professores devem ter “coragem e abnegação para se despirem de suas becas mofadas e teorias caducas”. GOMES, Orlando. Missão do Advogado. In: Harengas. Salvador: Fundação Gonçalo Muniz, 1971, p. 55.

Orlando Gomes foi um dos maiores juristas do Brasil e honra a todos nós, merecendo ser sempre rememorado por sua indiscutível contribuição para o Direito Civil, o Direito do Trabalho e o Direito Econômico. Torna-se fundamental que os acadêmicos dos cursos jurídicos e os operadores do direito jamais olvidem os ensinamentos deste grande mestre, razão pela qual, após seminário realizado em 2016, na Congregação da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, deliberou-se pela organização da obra coletiva intitulada A Importância de Orlando Gomes para a Defesa dos Interesses Sociais.

Em 2017, foi publicada a referida coletânea contendo palestras proferidas no mencionado evento, bem como artigos aprovados após publicado edital destinado a tal mister[1]. Encontra-se a dita Coletânea composta por seis partes, quais sejam: I – A Influência de Orlando Gomes na Teoria Geral do Direito Civil; II – A Relevância de Orlando Gomes para as Obrigações, os Contratos e os Direitos Reais; III – Orlando Gomes e o Direito de Família; IV – Orlando Gomes e o Direito do Trabalho; V – A Importância de Orlando Gomes para a Proteção do Consumidor; VI- O Direito Autoral na Vida e Obra de Orlando Gomes.

Examinou o jurisconsulto não somente a parte introdutória do Direito Civil, debruçando-se sobre as questões referentes às obrigações, aos contratos, à responsabilidade civil, à família e às sucessões. Considera-se que uma das suas contribuições mais geniais foi a antevisão do surgimento de normas protetivas para duas categorias fragilizadas de sujeitos, compostas pelos trabalhadores e os consumidores. Para o mestre, o direito deve orientar-se, em grande parte, para o fim de “moderar os grandes e escudar os pequenos, refrear os opulentos e abrigar os pobres, conter os fortes e garantir os fracos”[2].

O jurista alerta que todas as medidas destinadas a proteger o trabalhador, a amparar o devedor, a tutelar os fracos, consubstanciadas numa “legislação cada vez mais audaciosa, não respondem a outra finalidade do que a de restabelecer um equilíbrio social irremediavelmente perdido”. A opressão do “fraco pelo forte, do tolo pelo esperto, do pobre pelo rico” fora denunciada por Orlando Gomes desde 1945 quando escrevera a obra “A Crise do Direito”, enunciando que a proteção das categorias mais vulneráveis suscitava uma renovação de “instituições obsoletas”, “organismos decrépitos” e “conceitos jurídicos amortecedores”[3]. Para Orlando Gomes, o direito teria que ser um instrumento vocacionado para a proteção dos mais fracos, resultando daí a sua tentativa de promover discussões doutrinárias sobre o panorama vivenciado pelos trabalhadores e consumidores.

Foi o autor da primeira obra brasileira sobre a proteção dos empregados ou operários, denominada de “A convenção coletiva de trabalho”, datada de 1938[4], examinando o “conteúdo de classe do direito civil” e asseverando a socialização do direito privado[5]. A proteção dos interesses e dos direitos dos consumidores fora prenunciada, em caráter original, por Orlando Gomes ao dissertar sobre a contratação massificada e a responsabilidade civil do fornecedor, amparando-se na doutrina estrangeira desenvolvida sobre o tema. Em 1955, o mestre, ao abordar o tema “A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica”, na obra “A Crise do direito”[6], verberou que de acordo com os novos ditames da consciência social, “não há mais que indagar se o agente foi culpado”, visto que a questão não seria mais de responsabilidade, propriamente dita, “mas de simples distribuição dos riscos, de predeterminação dos que devem suportar o prejuízo, independentemente da ideia de culpa”.

A hermenêutica jurídica, para Orlando Gomes, jamais poderia estar alicerçada na mera exegese literal da lei, suscitando a tarefa de uma análise do fenômeno jurídico com as demais searas do conhecimento humano. Defendia que se deve ir além da mera e singela leitura das normas, sendo crucial uma visão histórica, socioeconômica[7] e política do direito, posto que os valores que o permeiam devem ser considerados. O verdadeiro jurista, segundo ele, é o que “tem os pés no chão e os olhos nas variantes do contexto histórico em que vive”, conforme “escala de valores que, na aparente neutralidade do direito positivo, transpira do seu conteúdo ideológico”[8].

Em 1971, em palestra proferida nos oitenta anos da Faculdade de Direito da UFBA[9], o jurista atentou que a consequência imediata da desarticulação do universo jurídico com as Ciências Humanas “é o empalidecimento do significado do Direito na vida ética e cultural da sociedade”, como se fosse “assaltado por uma anemia perniciosa, agravada pelos desacertos da política legislativa, judiciária e administrativa, que o acumulam, de heresias e equívocos” [10]. Os próprios juristas, segundo o autor, “atônitos em face dessa desordem”, passaram a vislumbrar, “nas devastações que lhe desfiguraram a imagem”, os sinais de uma “crise mortal”, esquecidos muitos de que “os princípios da Justiça têm a sua aplicação subordinada à situação histórica que os inspira”[11].

A preocupação de Orlando Gomes com a qualidade da educação nos cursos jurídicos foi sempre constante em suas obras e nas palestras proferidas, defendendo que os profissionais da área deveriam ter uma formação ampla e não restrita ao exame das leis. Aduzia o mestre que “Nós, os professores, continuamos a transmitir noções, conceitos e construções jurídicas inaplicáveis às novas estruturas sociais”, seguindo “um curriculum sem funcionalidade didática e prática”[12].

Questionava que os aplicadores do direito estavam “presos a Códigos anacrônicos que nos distraem a atenção do estudo de institutos florescentes às suas margens”, propalando, enfim, conhecimentos “hauridos em livros calcados na dogmática do século passado”[13]. Quanto ao método didático, preconizava o ilustre docente que “o monólogo catedrático deverá ser substituído pelo diálogo entre professores e estudantes”, realizando-se “a discussão em torno de problemas ou de casos”. Esse método “exige dos alunos bastante tempo para o estudo preparatório da matéria a ser debatida”[14].

Conclui-se no sentido de que o pensamento de Orlando Gomes permanecerá imortal e inesquecível, devendo continuar sendo transmitido pelas décadas, séculos e gerações vindouras. Não se constrói um presente robusto sem se ater às bases fortalecedoras do passado; isso não significa que a doutrina atual não seja satisfatória e interessante, mas, sim, que se encontra sedimentada em pilares alavancados por aqueles que iniciaram a história do Direito Brasileiro. O inolvidável mestre baiano estará sempre presente na seara do direito privado por sua inestimável contribuição!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


[1]As palestras foram degravadas por acadêmicos do Projeto de Extensão Associação Baiana de Defesa do Consumidor (ABDECON) da Faculdade de Direito da UFBA, instituído com o escopo de promover a difusão do Direito das Relações de Consumo para a sociedade, educando os cidadãos acerca, bem como os informando como proceder em caso de violações, além de propiciar o treinamento do processo coletivo.

GOMES, Orlando Gomes. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 103.

Ibidem, idem.

[4] GOMES, Orlando. A democracia e o direito operário. Revista Forense 75, 1938.

[5] Consultar a obra de Orlando Gomes denominada “A crise do direito”, publicada, em 1955, pela Max Limonad.

[6] GOMES, Orlando. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica. In: A Crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 247-248.

[7]Cf.: GOMES, Orlando; VARELA, Antunes. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1977.

[8] GOMES, Orlando. A casta dos juristas. In: Escritos menores. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 23.

[9] GOMES, Orlando. Nos oitenta anos da Faculdade de Direito. In: Harengas. Salvador: Fundação Gonçalo Muniz, 1971, p. 12.

GOMES, Orlando. As classes sociais na formação do direito. In: A crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1945, p. 7.

[11] GOMES, Orlando. Nos oitenta anos da Faculdade de Direito. In: Harengas. Salvador: Fundação Gonçalo Muniz, 1971, p. 12.

[12] GOMES, Orlando. O direito em crise. In: Direito econômico e outros ensaios. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 65.

Ibidem, idem.

Ibidem, p. 3.

Autores

  • é promotora de Justiça do Consumidor do Ministério Público da Bahia, professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), diretora do Instituto Brasileiro de Politica e Direito do Consumidor (Brasilcon) para a Região Nordeste e coordenadora científica da Associação Baiana de Defesa do Consumidor. Possui mestrado e doutorado em Direito pela UFBA.

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