Opinião

Licença-prêmio e férias de 60 dias para MP e juízes são inconstitucionais

Autor

  • Alessandro Soares

    é advogado professor de Direito Constitucional e Administrativo na Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) doutor em Direito Administrativo Financeiro e Processual pela Universidade de Salamanca e doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP).

7 de novembro de 2017, 5h53

O Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral no recurso extraordinário que debate a aplicação da isonomia entre as carreiras da magistratura e do Ministério Público no que diz respeito à licença-prêmio ou à indenização por sua não fruição[1].

No referido recurso, um juiz trabalhista pretende ter direito à licença-prêmio remunerada de 3 meses a cada quinquênio (5 anos) no exercício de sua função, aplicando-se a regra prevista no artigo 222, inciso III, § 3º, da Lei Complementar 75 de 1993, a qual dispõe sobre o Estatuto do Ministério Público. O magistrado alega isonomia de tratamento entre ambas as carreiras. O problema é que a regra da licença-prêmio, conforme delineada na lei que rege o Ministério Público da União, viola os princípios da cidadania, igualdade, moralidade e razoabilidade, os quais são pressupostos de um regime político republicano como o instituído pela Constituição brasileira de 1988.

Não deixa de ser sintomático quanto a essa inconstitucionalidade que o Estatuto do Servidor Público Federal, Lei 8.112 de 1990, tenha sofrido alteração no ano de 2006, retirando-se do seu conteúdo a previsão de licença-prêmio (artigo 87) para estabelecer, desde então, uma licença para capacitação, que será deferida a critério do Poder Público, não constituindo um direito líquido e certo do servidor.

A realidade desigual brasileira, condicionada a um regime de baixos salários de caráter patológico, leva a uma situação em que a ocupação de cargos públicos efetivos, isto é, concursados, seja o objeto de desejo de muitas cidadãs e cidadãos que não querem se lançar em um mercado trabalho competitivo e arriscado. Uma manifestação de tal perspectiva está refletida no grande número de estudantes em faculdades de Direito; afinal, a formação jurídica abre as portas para diversos concursos. Como objeto de desejo maior citem-se os cargos superiores do Estado, cuja representação é o Ministério Público e a magistratura, que dão a quem alcança tais posições institucionais não só recursos materiais mais robustos em comparação com outras carreiras mas também reconhecimento social de poder. Tradicionalmente, sempre foram as altas camadas sociais brasileiras que ocuparam essas funções, a ponto de se encontrar até hoje famílias que têm trajetória geracional em certas carreiras públicas.

Embora a Constituição brasileira de 1988 estabeleça em seu artigo 5º um regime de igualdade entre toda a cidadania, a verdade é que tal fato se dá apenas no campo formal. Conforme já ressaltado, o que se revela no contexto histórico brasileiro é a estruturação funcional de um sistema social de ampla desigualdade[2]. Para se ter uma ideia, basta constatar que 53,5% das famílias brasileiras atualmente têm renda até R$ 1.957 e 31,9% possuem renda entre R$ 1.957 e R$ 4.720[3]. Esse cenário faz com que os altos cargos do Poder Público, sobretudo do Judiciário e do Ministério Público, sejam selecionados entre agrupamentos de classe média que têm recursos para realizar uma preparação altamente especializada. As exceções quanto a essa situação somente comprovam a regra.

Após um longo período de estudos — normalmente nas melhores faculdades e cursos preparatórios — e esforços, aqueles que alcançam o objetivo almejado e passam a integrar o corpo da magistratura ou do Ministério Público esperam receber o “prêmio merecido”. Assim, todos os direitos presentes nos respectivos estatutos não são, de maneira alguma, percebidos como privilégios, mas como direitos, reforçados pela forma da lei. Trata-se, ao final, apenas de mérito pessoal. Com efeito, a licença-prêmio e — para não esquecer — também a garantia de férias de 60 dias (art. 220, da LC n. 75/1993) aparecem como justificadas e lícitas porque legalmente determinadas.

Ao receber remunerações acima de R$ 14 mil por mês, um membro do Ministério Público ou da Magistratura faz parte dos 2% dos mais ricos do país, setor exclusivo que detém a maior fatia da renda nacional, compondo o que podemos chamar de alta elite interna brasileira.

A partir dos dados expostos anteriormente, devemos nos perguntar qual é a lógica do benefício da licença-prêmio. O que legitima, perante uma sociedade democrática e desigual como a brasileira, um servidor ter direito a ficar 3 meses afastado de suas funções recebendo recursos públicos (remuneração) pelo simples fato de ter cumprido o seu dever nos últimos 5 anos? Como se explica isso para o resto da população, sobretudo em momentos de crise econômica, como a que vivemos hoje? O que justifica as férias de 60 dias? Logicamente, alegar que a lei traz tal previsão não é suficiente, pois esta deve respeitar a Constituição brasileira.

Um servidor do Ministério Público ou da magistratura que goza da licença-prêmio não está vinculado a qualquer meta especial de trabalho alcançada para gozar de tal benefício, como normalmente acontece com certos benefícios no mundo empresarial. Comparado ao regime de trabalho do mercado privado brasileiro, o seu mundo profissional parece inclusive mais equilibrado e salutar. Estivesse a magistratura ou o Ministério Público submetido às situações de trabalho que muitas professoras e professores de escola pública se encontram atualmente no país, talvez encontrássemos algum argumento lógico-racional para a licença-prêmio e para as férias de 60 dias. Não é o caso.

Observa-se ainda que o legislador infraconstitucional não está habilitado a garantir de forma ilimitada qualquer direito aos servidores públicos, devendo, portanto, respeitar os parâmetros igualitários previstos na Constituição. Horas extras, indenizações e adicionais de insalubridade, por exemplo, são plenamente legitimáveis perante a nossa Carta Republicana; entretanto, tal fato não ocorre com a licença-prêmio, posto que não encontra qualquer razoabilidade de existência nos termos em que está delineada na Lei Complementar 75/1993. Parece, a toda evidência, até mesmo violar a moralidade pública.

O recurso extraordinário que levou ao Supremo a questão da isonomia da licença-prêmio entre os membros do Judiciário e do Ministério Público reflete apenas uma corrida antirrepublicana que busca ampliar privilégios num processo de reprodução da estrutura desigual do país. Infelizmente, para os corpos do Estado que procuram garantir privilégios, tudo se passa como se tratasse de uma questão de direitos e justiça.


[1] Conforme SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Reconhecida repercussão geral de recurso que discute direito de juízes a licença-prêmio. Brasília, 27 out. 2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=360306>. Acesso em: 29 out. 2017.

[2] Ver VILLAS BÔAS, Bruno. Em um de cada cinco lares do país ninguém tem renda do trabalho. Valor Econômico. Brasil. São Paulo, 29 ago. 2017. Disponível em: <http://www.valor.com.br/brasil/5098370/
em-um-de-cada-cinco-lares-do-pais-ninguem-tem-renda-do-trabalho
>. Acesso em: 29 out. 2017; KAFRUNI, Simone. Cerca de 23% da população ganham menos que o salário mínimo. Correio Braziliense. Economia. Brasília, 12 jul. 2016. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/
economia/2016/07/12/internas_economia,539871/cerca-de-23-da-populacao-ganham-menos-que-o-salario-minimo.shtml
>. Acesso em: 29 out. 2017.

[3] GERBELLI, Luiz Guilherme. Classe A tem maior fatia de renda do País. Estadão. Economia & Negócios. São Paulo, 16 jan. 2016. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,classe-a-tem-maior-fatia-da-renda-do-pais,10000007285>. Acesso em: 29 out. 2017.

 

Autores

  • é doutor em Direito pela Universidade de Salamanca (USAL) e pela Universidade de São Paulo (USP). É Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), diretor acadêmico da Faculdade Escola Paulista de Direito (EPD) e sócio do Martins Cardozo Advogados Associados.

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