Tribuna da Defensoria

A atuação da Defensoria Pública em complementaridade à advocacia privada

Autor

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

11 de julho de 2017, 8h10

Parte 1. Hipótese de vulnerabilidade econômico-geográfica
A Defensoria Pública é a procuratura constitucional dos necessitados[1] e integra um sistema de Justiça e proteção social em face de todas as formas de vulnerabilidade a que estejam submetidos os indivíduos ou as coletividades, em consonância com os fundamentos, objetivos, direitos e garantias proclamados pela Constituição Federal e concretizados pelo legislador infraconstitucional[2].

“O múnus da Defensoria Pública não se liga exclusivamente à proteção daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica, senão em diversas outras situações relacionadas a direitos indisponíveis, como a vida, a liberdade, a dignidade, a saúde, ou, ainda, indivíduos ou coletividades especialmente protegidas, como crianças, adolescentes, mulheres vítima de violência, idosos, doentes, populações de rua, abrangendo outras vulnerabilidades sob o prisma organizacional…”[3]

A atuação do defensor público no processo penal pode se dar como representante judicial da parte acusada, mas também do ofendido ou seus sucessores para o patrocínio da ação penal privada ou da assistência à acusação, ou, ainda, como órgão interveniente, na condição de custos vulnerabilis — terceiro interessado em nome próprio e não como representante direto de uma das partes da demanda penal, já suficientemente representadas por advogado particular.

Luigi Ferrajoli sugere que o defensor público, enquanto magistrado — na significância de carreira estatal que desempenha as funções ligadas à Justiça —, atue como um Ministério Público da Defesa, responsável pela consecução do interesse público na tutela dos acusados, como órgão complementar e subsidiário ao procurador constituído, e não em substituição deste, com poderes públicos para a investigação e colheita de elementos para a refutação das provas[4].

Tal atuação custos vulnerabilis atende fielmente ao cumprimento da missão constitucional da Defensoria Pública e se harmoniza com as disposições constitucionais fundamentais do Estado Democrático de Direito e com as normas infraconstitucionais vigentes conforme já tratamos em outro artigo.

Oferecemos como exemplo de atuação da Defensoria Pública ao lado da Advocacia Privada o caso de

“ações e incidentes que tenham como escopo a liberdade, a obtenção de algum benefício previsto na execução penal ou, ainda, o esclarecimento de questão essencial relativamente ao preso provisório, a atuação custös vulnerabilis guarda perfeita conformação com os marcos normativos regentes, entre outros o disposto nos artigos 1º, 3º e 134, caput e parágrafos, da CRFB, nos artigos 1º e 4º, XI e XVII da Lei Complementar 80/94 – Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública (Londep), nos artigos 81-A e artigo 2º, parágrafo único, e, ainda, artigo 41, VII e artigo 42, os últimos quatro da Lei 7.210/85 – Lei de Execuções Penais (LEP)”.

Entretanto, uma outra hipótese interessante e importante — que deve ser estudada com profundidade — é o caso de recursos e ações originárias no 2º grau provenientes de processos em curso em comarcas do interior dos estados ou em outros estados em que o acusado se vê diante de dificuldades de ordem financeira e geográfica que obstacularizam a atuação do membro da advocacia privada responsável por sua representação judicial na origem.

São casos em que o acusado, não obstante tenha constituído advogado privado para a defesa, não possui condições financeiras para incluir no contrato os custos com o deslocamento deste causídico até a capital onde fica a sede dos tribunais de Justiça estaduais, ou, ainda, em caso de processo perante a Justiça Federal, podendo inclusive exigir deslocamento para outro estado da federação distante milhares de quilômetros de onde se encontre, se levarmos em consideração que o Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem sede em Brasília e compreende as seções judiciárias do Acre, Amapá, Amazonas, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins.

Também se assemelha a essa hipótese a pessoa hipossuficiente que é acusada perante órgão jurisdicional que ainda não é provido dos serviços de Defensoria Pública, em favor do qual é nomeado advogado dativo, ou, ainda que conte com representante da instituição, em razão de conflito de teses de defesa haja a necessidade de constituição de defensores diferentes para cada réu, não haja em número suficiente.

O mesmo raciocínio se aplica no caso de acusado que mora em unidade da federação diversa de onde corre o processo e que não tem como custear o advogado privado no local onde reside — e necessita da atuação em carta precatória, por exemplo.

Em nenhuma dessas hipóteses o acusado pode contar com um representante judicial que tenha como viajar para a cidade sede do tribunal a fim de fazer a sustentação oral — ato estratégico e muitas vezes indispensável de defesa —, o que se apresenta como uma clara vulnerabilidade econômico-espacial.

Diante dessas vulnerabilidades, que violam nitidamente a dignidade humana do acusado, a atuação da Defensoria Pública para a sustentação oral poderia (deveria) ser solicitada pelo advogado privado ou dativo ou mesmo provocada pelo próprio relator do processo, como forma de garantir o acesso à ordem jurídica justa expressada na defesa eficiente, no contraditório substancial e na efetiva influência na decisão judicial, materialmente garantindo a paridade com a acusação e fomentando o equilíbrio processual, de ordem pública e de interesse social.

Assim reclama a ordem jurídica republicana e democrática a que está submetido o sistema acusatório adotado pela Constituição Federal, e tem sido reconhecido, ainda que timidamente, pelo Poder Judiciário.

Emblemático é o caso ocorrido no estado do Amazonas, em que a juíza de Direito Patrícia Macêdo Campos, do Tribunal de Justiça local,

“reconheceu a dúplice vulnerabilidade geográfico-financeira do acusado no Processo Penal, enquanto fator desencadeador de especial atenção do magistrado para a preservação das garantias do devido processo legal, da isonomia, do contraditório e da ampla defesa dos participantes do processo.

No caso, o acusado era residente e domiciliado em estado diferente de onde é processado e — possuindo advogado constituído nos autos —, manifestou-se declarando suas dificuldades de deslocamento e a impossibilidade financeira de comparecer à audiência, bem como de custear a ida e volta de seu patrono para participação no sobredito ato processual. Ao fim de seu requerimento, o réu postulou sua oitiva por Carta Precatória”[5].

Assim, tanto na hipótese em que o acusado tem sua defesa patrocinada por advogado dativo, por inexistência de órgão de atuação da Defensoria Pública instalado ou na insuficiência do número de defensores quando conflitante as teses de defesa, quanto na hipótese em que o acusado tenha constituído advogado privado para o patrocínio da causa, mas não possui condições financeiras para incluir no contrato os custos com o deslocamento deste até a cidade sede do juízo ou tribunal, está patente a dúplice vulnerabilidade geográfico-financeira, devendo o advogado esclarecer essa circunstância dentro do recurso interposto ou da ação originária ajuizada, requerendo a intimação do membro da Defensoria Pública com assento perante o órgão de 2º grau para atuação como custos vulnerabilis a fim de se fazer presente à sessão de julgamento e realizar a sustentação oral — como dito, ato estratégico e muitas vezes indispensável —, caso entenda ser cabível e conveniente à defesa do acusado.

Por fim, como se trata de efetivação da ampla defesa e contraditório substancial para uma efetiva influência na decisão judicial, como corolários da garantia do acesso à ordem jurídica justa, em verificando o relator do processo a presença dessa dupla vulnerabilidade — econômica e espacial —, deve intimar a Defensoria Pública para a sessão de julgamento, atendendo ao bem comum e aos fins sociais que determinaram pelo constituinte originário a criação de uma instituição voltada para a promoção dos direitos humanos e da assistência jurídica integral e gratuita.


[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Informação Legislativa, v. 29, n. 116, out./dez. 1992, p. 79-102.
[2] Artigo 134 da Constituição e reforçado pelo artigo 1º da Lei Complementar 80/94 e artigo 185 do novo CPC.
[3] http://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4ª Ed. 2014 . p. 537.
[5] http://emporiododireito.com.br/a-duplice-vulnerabilidade-geografico-financeira-no-processo-penal-por-maurilio-casas-maia.

Autores

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Penal e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sócio-fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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