Retrospectiva 2017

Ano mostrou o resultado de décadas de demagogia na área do Direito Penal

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29 de dezembro de 2017, 6h45

Ufa, finalmente entrego esta retrospectiva, reminiscências de um ano que não quer acabar. Bom que atrasei a entrega, assim deu tempo de assistir aos estertores da cena judiciária, que mais parece o prenúncio do fim de uma era, ou o advento daquilo que já se denomina era da pós-democracia.

Como não ficar boquiaberto com o áudio no qual um juiz supostamente contrariado com uma decisão do ministro Gilmar Mendes, determinando a soltura do ex-governador Anthony Garotinho, resolve dardejá-lo com um rosário de suspeitas e calúnias, que miram na verdade o próprio direito de defesa e a mínima possibilidade de um juiz decidir a favor do réu.

Varejo, mas falho na tentativa de encontrar definição mais apropriada: fascismo.

O indulto é outra história. Mês de dezembro no Brasil tem duas tradições que já viraram sagradas: o show do Roberto Carlos na Globo e a crítica ao decreto de indulto natalino. Mas, desta vez, nem os melhores cientistas políticos, ou os mais respeitados penalistas, ainda que contassem com uma mãozinha de algum comentarista da Globonews, teriam condições de explicar como o governo Temer foi capaz de editar um decreto de indulto mais benevolente que o dos governos anteriores, historicamente sensíveis a uma agenda penal de viés iluminista.

Não, não foi para obstruir a “lava jato”, foi para atender o cliente comum da justiça penal, o da terceira classe mesmo, até porque as penas da “lava jato” são medidas em décadas e não em anos como costuma ocorrer na justiça comum. Penas de 30 anos precisam de pelo menos seis anos – um quinto – de cana para se enquadrar no indulto. É só fazer a conta. A “lava jato” completou três anos em novembro. O “grande feirão de Natal”, como, demagogicamente, Deltan Dallagnol chamou o indulto, não é nenhuma vantagem perto das Black Fridays (de fato, sempre às sextas-feiras!) que foram alguns acordos de delação premiada barganhados pela força-tarefa da “lava jato”, estes sim responsáveis por mandar muita gente para casa antes do tempo legal de prisão, além de outras proezas, como revogação de prisões preventivas de quem aceita delatar (a lei permite negociar pena e não prisão preventiva).

Se um dia a menos de prisão fosse fator de atraso civilizatório, o tanto de pena que a força-tarefa aceitou barganhar nos faria remontar a Cabral.

A ministra Cármen Lúcia deu liminar na ação movida pela Procuradoria-Geral da República, suspendendo parcialmente o decreto de indulto. Ironicamente, o indulto continua valendo em todo território nacional para crimes praticados com violência ou grave ameaça. A decisão só suspende o indulto para os crimes menos graves. Uma boa síntese de todos os nossos problemas prisionais, não acham?

Em um ponto, a PGR, autora da ação, parecer ter razão, o artigo 2º, parágrafo 1º trata os reincidentes de forma mais benéfica do que os não reincidentes, provavelmente um erro material, mas que, todavia, não pode permanecer no texto da forma atual. A liminar, neste caso, poderia ter sido deferida para corrigir, desde logo, o erro, em vez de mandar suspender a possibilidade de aplicação do dispositivo, sobretudo porque, pela sua natureza, indulto humanitário, requer urgência na sua aplicação.

O indulto foi exagerado? Não sei. Para falar a verdade, o indulto é a cara do Brasil. Como aqui os direitos dos presos não são assegurados durante o ano, a população carcerária recebe esta benevolência do Papai Noel. Somos o país da caridade e não dos direitos. 

O “exagero” apontado por alguns talvez possa ser explicado pelos próprios dados do Infopen, que apontam também um exagero enorme no uso da prisão em todo país, que vem crescendo em crimes sem violência ou grave ameaça. A medida do indulto se tornou um importante instrumento de saneamento do sistema prisional, ferramenta à disposição do presidente, constitucionalmente prevista, adequada para amenizar o encarceramento em massa vivido no país. 

Recente relatório do INFOPEN finalmente fez o diagnóstico que o olhar clínico de muitos especialistas já apontava. O Brasil partiu para uma política de encarceramento desenfreada. Atingimos a marca de 3ª maior população carcerária do mundo. Isto não tem nada a ver com o aumento da bandidagem ou da criminalidade violenta como tentou justificar editorial do jornal “O Estado de São Paulo”, basta ver que parte considerável desta população está presa por crime sem violência, relacionado, em sua grande parte, à lei de drogas, e mesmo assim a situações limítrofe entre o porte para uso próprio e o tráfico privilegiado.

O indulto veio a calhar num ano em que o sistema prisional resolveu mostrar mais uma vez a sua cara. Naquele alvorecer de 1º de janeiro, quando o ano despertava da ressaca da festa de ano novo, ainda sob os auspícios das promessas de bom ano, o país inteiro foi convocado a olhar-se no espelho e a imagem refletida foi a face mais terrível do que sua equivocada política de combate às drogas e encarceramento em massa produziu. Mais de 50 presos mortos brutalmente por outros presos em Manaus e alguns dias depois no Rio Grande do Norte.

Décadas de demagogia na área penal, com produção de leis que visam suprimir direitos, aumentar penas, operando com a lógica de que quanto mais gente presa mais seguro será o país, desencadeou um processo de fortalecimento do crime organizado que domina os presídios, numa espécie de cartel, onde é combinado com o poder público a cargo de qual facção fica o controle de cada unidade prisional.

As autoridades envolvidas com o problema responderam com palavras protocolares de velório: “Contem comigo”; “precisamos cuidar disto”; “vamos dar toda a assistência que precisarem”. Mas nada, absolutamente nada, foi feito para mudar. 

A disputa por protagonismo foi enorme para ver quem tinha a solução mais mirabolante para o problema. Onde, no entanto, sobraram profetas, faltou quem se dispusesse a assumir sua dose de responsabilidade. 

Não deixa de ser irônico que a crítica mais ácida vinda do STF durante todo o ano não foi endereçada a nenhuma autoridade ou poder responsável pelas mazelas, mas à advocacia, em recente acórdão no qual a ministra Cármen Lúcia credita os problemas da justiça penal ao abuso do direito de defesa (julgamento de recurso interposto pela defesa de Paulo Maluf). 

Enquanto em matéria penal a pressão da imprensa e da opinião pública ditarem as regras, o país continuará afundando. Se houvesse um Tribunal de Contas para controlar a forma como o poder punitivo compromete o futuro do país em troca de demagogias imediatistas, a justiça penal seria a campeã em “pedaladas”, as “pedaladas penais”.

Por que prendemos tanto? Por que tantos presos provisórios? Por que tanto preso por crime sem violência ou grave ameaça? Por que tanto preso por questões ligadas à lei de drogas? Por que tanta relutância de tribunais estaduais em cumprir súmulas dos Tribunais Superiores? Por que tanta prisão preventiva, se os dados mostram que, ao final, quase 40% são condenados a pena de prisão em regime diverso do fechado? Por que tanta ginástica e retórica para simplesmente descumprir a lei?

2017 deixou estas perguntas sem resposta. Em matéria penal, a responsabilidade pelo encarceramento em massa tem nome próprio: poder judiciário. É o judiciário que detém o poder de revogar prisões, poder muito maior que o de prender, reservado, em regra, às polícias.

Como bem anotou Thiago Bottino, em artigo no jornal O Estado de São Paulo, no último dia 26 de dezembro, no tocante às decisões que versam sobre prisão, a Justiça Penal virou uma grande loteria. Aliás, manchete de um importante jornal, reproduzida aqui na ConJur, mostra que a 2ª Turma do STF solta estatisticamente mais do que a 1ª. Alguma coisa está errada. A nosso ver, ao lado da falta de segurança jurídica, que acomete a todos, na área penal vivemos uma grave crise do respeito à estrita legalidade.

Seja como for, confesso que li várias vezes a decisão da ministra Cármen e falhei em encontrar a norma constitucional violada pelo decreto de indulto. Vou ler de novo.

Qualquer observador do mundo jurídico dirá que já não vivemos mais sob o império da Lei, mas debaixo da vontade de juízes. Quando há cerca de dois anos o saudoso ministro Teori Zavascki decidiu “decretar” uma prisão em flagrante de um congressista (Delcídio do Amaral), e a 2ª Turma referendou a decisão, já era um sinal de que o Direito Penal sofria um giro Copérnico, havia sido aberta a Caixa de Pandora, e a partir de então a criatividade de cada juiz e a conveniência do momento passariam a ocupar o lugar da lei na solução dos conflitos penais. Era a morte do princípio da estrita legalidade.

Não é mera coincidência que 2017 tenha sido o ano de maior debate em torno de uma nova Lei de Abuso de Autoridade, em meio à qual a grita maior de juízes é de que punir abusos significa perseguir o juiz independente, deram até um nome pomposo, crime de hermenêutica.

Não obstante a necessária independência judicial para qualquer democracia, se na área penal o juiz puder qualquer coisa, como fica o princípio da legalidade? Ora, dirão os críticos do projeto, “quem não gostou da decisão, que recorra”. Sim, é verdade, mas se esquecem de que até serem providos os recursos, males como prisão, condução coercitiva ilegal, e outras tantas medidas, já terão causado danos irremediáveis. Quem paga por isto?

Afinal, não esqueçamos que este foi o ano do suicídio, incômodo suicídio, do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, que alguns cinicamente amenizam com alusões a quadros depressivos precedentes. Olvidam-se de que, no próprio Direito Penal, a preexistência não exclui o nexo causal, ou seja, medidas ilegais podem estar sim, e provavelmente estão na linha de causalidade da decisão de ceifar a própria vida. Mas que nada, em matéria de admitir erros, os réus da “lava jato” andam melhores que alguns de seus investigadores.

Pese todo o empenho do Senado Federal na análise do projeto de lei do Abuso de Autoridade, proposta levada por nós (IDDD), que chegou a ser contemplada no relatório do senador Requião, acabou não sendo incorporada. Uma pena, pois é a razão, a nosso ver, para que a Lei de Abuso de Autoridade hoje em vigor não ter nenhuma aplicação prática. A lei não legitima o ofendido a propor ação penal, mas apenas o Ministério Público. Se o ofendido tivesse legitimidade ativa para propor a ação penal, ou até mesmo a OAB, seria muito mais difícil o engavetamento dos abusos. Alguém espera que o MP tome as dores do réu que ele mesmo acusa? Isto quando o próprio MP não é o autor do abuso.

O mesmo se diga em relação à lei que criminaliza as ofensas às prerrogativas do advogado promulgada no final do ano. Uma grande vitória da advocacia. É preciso dizer, no entanto, como bem observou Alberto Zacharias Toron, em palestra proferida no Iasp no mês de dezembro, e noticiada neste veículo, que a preocupação maior não devia ser a criação de crimes que de certa forma já existem – na própria Lei de Abuso de Autoridade editada no regime militar – mas de dar poderes ao ofendido exercer a titularidade da ação penal, sem precisar depender da boa vontade do Ministério Público. Neste aspecto, infelizmente, permanecemos na mesma.

Antes que viesse uma resposta do Congresso sobre a melhor Lei de Abuso de Autoridade, o STF tomou a dianteira, não para fazer ativismo judicial, mas o contrário, para proibi-lo. Falo da liminar das conduções coercitivas, da lavra do ministro Gilmar Mendes. Decisão certa na hora certa. Um alento para quem vinha acompanhando o descumprimento sistemático de uma norma cuja literalidade impede interpretações tão díspares. O juiz que a usar de modo ilegal responde agora no mínimo por crime de desobediência à decisão da Suprema Corte.

Vale lembrar que este foi o ano da condenação de Lula e dos processos contra Temer. Não acho, no entanto, que uma retrospectiva penal deva tratar de casos concretos, por maior que seja sua repercussão. 

Não posso, porém, deixar de mencionar as delações da Odebrecht e da J&F, e seus desdobramentos, tendo em vista a miríade de questões jurídicas que suscitaram.

Pode o réu colaborador começar a cumprir pena antes de ser processado e muito menos sentenciado? Pode o MP celebrar com o réu acordo, lhe garantindo, sem participação do Judiciário, imunidade total? O MP pode definir a pena no acordo de delação? Pode o Legislativo cassar prisão de seu membro decretada pelo Judiciário? Medidas alternativas à prisão impostas a parlamentar também devem ser referendadas pelo legislativo para que possam ser aplicadas? Pode o STF, ao declinar da competência, e sem fazer análise aprofundada, eleger outro critério que não o territorial para escolha do juízo de primeiro grau? Toda e qualquer doação eleitoral por fora é propina? Qual o critério de distinção? Qual o critério para definir foro por prerrogativa de função?

Muitas destas questões ainda estão pendentes de solução, mas algumas foram decididas. O Pleno do STF decidiu por maioria, por exemplo, que o pacto firmado entre delator e MP, regular, voluntário e legal deve ser respeitado pelo judiciário, decisão que pode impactar todo o processo penal brasileiro, ainda muito resistente a aceitar um processo penal acusatório pleno (Questão de Ordem na Pet. 7074, por maioria, rel. p/acórdão ministro Edson Fachin, julgado em 29 de junho de 2017). No entanto, em outra decisão de grande repercussão também, o ministro Ricardo Lewandowski decidiu que o MP não tem poderes para, no acordo de colaboração, definir a pena de um acusado, questão que deve necessariamente ser decidida pelo juiz na sentença (Pet 7.265/DF, decisão monocrática de 14 de novembro de 2017).

No julgamento das ADI 5.526, por maioria (relator p/acórdão o ministro Alexandre de Moraes), o Pleno do STF decidiu, em 11 de outubro deste ano, que, naquelas medidas que envolvem restrição da liberdade de ir e vir e afetam o exercício do mandato, deve a casa legislativa correspondente dar a palavra final sobre a necessidade e adequação da constrição. Com base neste precedente, o Senado decidiu derrubar as medidas impostas pelo STF ao senador Aécio Neves.

Na questão da competência, em agravo interposto contra a decisão do ministro Edson Fachin (Pet n. 7075), que determinava a remessa de diversas questões para a primeira instância de Curitiba por prevenção, a 2ª turma do STF proferiu a primeira decisão derivada da J&F determinando que fosse respeitado o critério territorial nestas remessas ao primeiro grau (agravo provido por maioria, rel. p/acórdão ministro Gilmar Mendes, julgado em 15 de setembro 17).

Já no tema envolvendo competência por prerrogativa de foro, o Pleno do STF iniciou julgamento na Questão de Ordem na Ação Penal 937, com proposta do ministro Barroso de restringir o alcance constitucional da prerrogativa de foro, mas o julgamento foi interrompido em razão de pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Causou grande polêmica, no entanto, a decisão do ministro Barroso de mandar, nos últimos dias do ano judiciário, o caso de um parlamentar para a primeira instância, aduzindo que já conta com alguns votos favoráveis sua proposta de só manter no STF casos de agentes que estão no cargo e que respondem por crimes supostamente praticados no exercício do mandato (Inq. 3.026/RN, decisão monocrática de 19 de dezembro de 2017).

Também foi o ano de colocar limites à validade da delação. O próprio TRF-4, implacável na condenação e distribuição de altíssimas penas aos réus, absolveu Vaccari em duas ações penais, porque a condenação de primeiro grau, sobretudo a comprovação do elemento subjetivo (conhecimento) veio lastreada apenas na palavra do delator. Decisão semelhante foi dada para absolver três executivos da empresa Engevix.

No STF, o rigor foi até maior, denúncias foram rejeitadas logo em seu nascedouro porque desacompanhadas de qualquer elemento de prova adicional à palavra do delator (Inq. 4.216/DF, rel. Fachin, v.u., 10 de outubro de 2017). No caso de precedente relatado pelo ministro Dias Toffoli, há um ingrediente a mais, porque se considerou que mesmo provas produzidas unilateralmente pelo delator, como anotações, se ressentem, a exemplo de sua mera palavra, de validade para lastrear uma acusação (Inq. 3.994/DF, rel. p/acórdão Dias Toffoli, julgado em 18 de dezembro de 2017).

2018 promete bastante debate – mas que seja com menos prisões provisórias, menos publicidade opressiva do processo, menos ativismo e mais respeito à legalidade.

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