Jurisprudência de crise

"Supremo precisa assumir que contexto influencia decisões da corte"

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24 de dezembro de 2017, 7h38

Spacca
Não é segredo que crises interferem diretamente no processo decisório do Supremo Tribunal Federal, embora seja um assunto relegado aos bastidores e corredores da corte.

Dificuldades econômicas são frequentemente citadas como justificativa para determinado posicionamento do tribunal, porém quem fala isso são analistas, jornais e, às vezes, os ministros em entrevistas. Em votos proferidos no Plenário, quase nunca.

Nada disso quer dizer que o STF não tenha uma “jurisprudência de crise”  conceito adotado por cortes constitucionais de outros países , conforme analisa Andréa Magalhães, assessora do ministro Luiz Fux no Supremo e autora do livro Jurisprudência de Crise, um olhar pragmático.

“A grande questão é que o Supremo já considera o contexto, mas não fala sobre isso”, diz em entrevista à ConJur, citando julgamentos como o da desaposentação e conflito federativo envolvendo juros de dívidas que a União cobra de estados.

A solução, afirma Andréa, é dar transparência. Se a crise já é argumento, melhor então assumir e passar a tratar as dificuldades momentâneas como fundamento. Dessa forma, defende, será possível criar uma metodologia de decisão, com previsibilidade e prestação de contas. “A ideia é usar o consequencialismo como uma das ferramentas de estratégia de decisão.”

O livro é resultado da dissertação de mestrado da autora, aprovada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob orientação do professor Daniel Sarmento, que também assina a apresentação da obra. Luiz Fux escreveu o prefácio.

Leia a entrevista:

ConJur — O que se considera “jurisprudência de crise”?
Andréa Magalhães —
O termo era usado há muitos anos, no início do século passado, para falar do republicanismo de Weimar. Mais recentemente, para falar da crise, foi usado por Portugal, mas no modelo deles, que é realmente uma jurisprudência para a crise, específica. Depois vi que outros países adotam esse modelo decisório, como Grécia e Lituânia.

ConJur — E no Brasil?
Andréa Magalhães —
Foi como eu cheguei ao tema da dissertação. Propus ao meu orientador falar de alguns casos desses países que citei para descrever o modelo, mas ele não gostou, disse que eu precisava falar do Brasil. Eu disse: “Aqui não tem jurisprudência de crise. O Supremo não fala que está em crise. Julga pelas consequências, mas sem dizer”. Ele sugeriu, então, que eu escrevesse isso. E na pesquisa, vi que entre os extremos que havia constatado existem outras fórmulas.

ConJur — Quais?
Andréa Magalhães —
Por exemplo, quando o ministro [Luiz Edson] Fachin teve que resolver conflito federativo entre todos os entes e a União [sobre juros da dívida], ele considerou: “O que fazer? Se eu decidir para um lado, um ente quebra, se não decidir, estou aprofundando o problema”. A solução dele foi estipular um prazo para que se chegasse a um acordo ou então ele daria a liminar.

Houve também o caso da Lei Kandir, da compensação pela isenção de ICMS de produtos para exportação, em que o ministro Gilmar [Mendes] propôs que, se o Congresso não resolvesse em um ano, o Tribunal de Contas da União deveria estipular os critérios. Portanto, são decisões que consideram o contexto, embora não falem especificamente em crise econômica.

ConJur — Isso também é considerado jurisprudência de crise?
Andréa Magalhães —
É, porque a crise influencia muito, tem um peso gigante nas decisões. O Supremo tem de decidir, não pode simplesmente dizer que não vai resolver. A grande questão é saber como ele vai resolver. Vai aplicar o direito, doa a quem doer? Não vai.

ConJur — Como funciona esse entendimento em outros países analisados na dissertação? 
Andréa Magalhães —
Em Portugal, por exemplo, os juízes dizem que a decisão só se aplica àquela situação, ou a situações daquele tipo, e são restritas no tempo. E geralmente para medidas de austeridade, como uma lei de corte de salários, que tinha validade de quatro anos. O tribunal decidiu que, como havia compromissos com o FMI, com outras entidades internacionais, de implantar medidas de austeridade, poderia haver corte de salários se fosse proporcional, se não fosse discriminatório etc., e desde que se implantassem medidas compensatórias. Há decisões que dizem explicitamente que os direitos estão sendo cortados porque o contexto exige. “Se amanhã o contexto deixar de exigir, vamos reavaliar.” É o modelo mais evidente.

ConJur — A sinopse do livro fala na “franqueza do modelo europeu”. É sobre esses casos?
Andréa Magalhães —
É isso. Na Lituânia, o tribunal foi consultado em tese pelo Parlamento para saber até onde poderia chegar com as medidas de austeridade. E aí, em tese, a corte falou: “Se você fizer assim, assim, assado, ok”. E foi feito. Só que o Parlamento não cumpriu exatamente as diretrizes, porque não previu compensação, que era um dos requisitos. Aí o tribunal declarou essa parte da medida inconstitucional. Isso é lidar com a crise escancaradamente, é falar “a gente está tomando medidas de emergência”.

ConJur — Há uma crítica contundente a esse tipo de pensamento, tratada no livro, que é o de considerar que medidas de exceção são feitas para um estado de exceção. Ou seja, estamos num estado de exceção, em que vale tudo em nome da necessidade?
Andréa Magalhães —
É uma questão bastante interessante. Uma das grandes críticas feitas ao tribunal constitucional português foi de que ele estaria relativizando a Constituição por um conceito não declarado. Defendo no livro que não se trata de estado de exceção. Não se abriu mão de princípios do direito posto nem foram tomadas decisões não-jurídicas com base num contexto de crise. Todas as alternativas usadas pelos tribunais estavam dentro das constituições nacionais. Portanto, se a Constituição me dá ferramentas, eu tenho um campo de interpretação possível. Dentro dessa margem, posso considerar os impactos.

O jurídico é o Direito junto com sua interpretação. O Direito não foi afastado para se decidir e justificar com base na economia, que foi a crítica feita ao nazismo. Os tribunais continuaram atuando dentro de suas instituições. A gente continua no Estado de Direito. Se a alternativa é inconstitucional, não pode ser considerada.

ConJur — O livro também fala em “cronoterapia”.
Andréa Magalhães —
É a terapia do tempo, esperar as coisas melhorarem. Na Argentina, a corte constitucional tomou medidas do tipo “agora está tudo ruim, vamos esperar”. E aí usou de vários artifícios, como falta de juízes, pedidos de vista, pronunciamentos alongados, para engavetar. Quando o contexto melhorou, a medida já havia produzido efeitos e a crise já tinha passado, sem precisar de interferência do Judiciário.

ConJur — No Brasil vemos isso também, com pedidos de vista para esperar um pronunciamento do Congresso, ou pautar um caso para depois retirá-lo de pauta.
Andréa Magalhães —
É uma estratégia de decisão bastante frequente. Temos alguns exemplos, como o da prerrogativa de foro, ou do fornecimento de medicamentos de alto custo pelo SUS, que não tiveram desfecho.

ConJur — Ou seja, temos, sim, uma jurisprudência de crise, mas implícita, que nunca é chamada assim.
Andréa Magalhães —
É. Existem vários modelos no Brasil, mas como o de Portugal, de falar expressamente “estamos em crise”, ainda não. O que temos aqui é o papo de “a crise não tem a ver com o Judiciário, aplicamos o Direito independentemente do contexto”. O ministro Marco Aurélio, por exemplo, ajudou muito com o trabalho. Ele sempre fala que o consequencialismo é absurdo. Mas isso é o oposto do que vemos na prática. Outro caso interessante ocorreu no julgamento sobre a desaposentação: o Supremo afastou esse tipo de prática por não haver previsão. 

ConJur — Depois, o ministro Fux disse que o tribunal tinha evitado um rombo de bilhões de reais…
Andréa Magalhães —
Foi o que chamo de “reações”. É um diálogo entre os entes que deixa bem clara a mensagem do tribunal: agora não pode, amanhã vai poder. É para que a corte não precise dizer que houve superação de precedentes – a questão ficou aberta e foi devolvida ao Congresso para que decida. A mensagem ali foi “se modificar a situação, a desaposentação passará a ser aceita”.

ConJur — Foi como fizeram no caso do amianto, pelo menos no voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado pela maioria: a lei era constitucional quando foi sancionada, mas passou por um “processo de inconstitucionalização”.
Andréa Magalhães —
No modelo português, é tudo temporário, porque as leis são temporárias. E isso é explícito: a decisão é essa porque o contexto é esse. Aqui não há isso. As leis não são consideradas temporárias, simplesmente se muda a jurisprudência. Ou muda deixando a questão em aberto ou muda sem falar nada, apenas mudando.

ConJur — O livro fala bastante em contexto, e são muito comuns os argumentos catastrofistas, especialmente por parte da União. O que vemos, porém, são contas exageradas, supondo que a União será derrotada em 100% dos casos e sempre pelo máximo possível, caso determinada tese seja aplicada pelo Supremo. Ou, mais grave ainda, o caso do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, em que a Receita não sabe explicar da onde tirou os números que apresentou ao STF…
Andréa Magalhães —
Essa é outra crítica muito forte, e que tem toda a pertinência: dizer que vai quebrar tudo, mas sem comprovação, sem base empírica, sem avaliação. Vejo algumas formas de o Judiciário lidar com isso: transferir o ônus de comprovar para a parte que alegou ou contratar um perito para verificar as informações, o que é previsto em lei, mas nunca usado.

ConJur — O Judiciário tem esse papel? O Supremo tem de se preocupar com os reflexos econômicos ou fiscais de uma decisão?
Andréa Magalhães —
O Supremo é um poder político. Não por ser a cúpula de um dos três poderes nem por causa de sua composição. Mas porque o agir dele tem impacto muito grande em todo o país. Dizer que o STF não faz política pública não é bem verdade. Quando chega uma ADPF para dizer que determinada política pública é inconstitucional, ou para reconhecer a inconstitucionalidade da inexistência dessa política, o tribunal está criando. Portanto, não é papel do Supremo encarar isso, mas inevitavelmente esse será o impacto das decisões. Fechar os olhos e dizer “a gente não tem capacidade institucional para isso”, além de não ter fundamento jurídico, teria um efeito prático muito ruim.

ConJur — O outro lado é ver o tribunal sempre jogando a favor do cofre, ou da Fazenda Pública.
Andréa Magalhães —
Os exemplos que conheço de fato são assim. Mas quando ele não faz isso, o que acontece? Vai lá e diz que não pode ter corte no salário dos servidores, mas acontece o corte mesmo assim. A forma de lidar com a proteção dos direitos não é fechando os olhos. “Vamos proteger o que seja, da forma que seja”. Isso teria efetividade comprometida, na prática.

ConJur — Conhece exemplos disso?
Andréa Magalhães —
Na Colômbia, a corte constitucional proibiu uma lei que retirou o direito a reajuste anual de servidores que ganhavam acima de dois salários mínimos. O tribunal vetou, dizendo que a medida violava o princípio da igualdade, porque todos os servidores têm direito ao reajuste. Foi um “auê”, a imprensa bateu muito, a repercussão foi muito ruim. Anos depois, com outra composição, a corte teve de enfrentar a decisão de novo, jogou com o contexto e permitiu a medida. Portanto, o melhor não é dar tudo para a União nem dar o direito doa a quem doer, mas admitir que, em determinados casos, alguns sacrifícios mínimos, razoáveis e programados são necessários.

ConJur — Melhor, então, abraçar o uso das consequências como argumento para decidir?
Andréa Magalhães —
Sim, porque o Supremo já considera o contexto. Essa é a grande questão. Ele só não fala. Mas se começar a falar, pode criar uma metodologia mais jurídica para isso, em vez de apenas usar argumentos retóricos. Pode exigir que se tragam dados, ou uma previsão concreta do que se alega. Por exemplo, analisar as consequências de médio e longo prazo para dar ou não um pedido da União, porque, se eu retirar um imposto da base de cálculo de outro, vai haver aumento da alíquota no dia seguinte, então não vai haver impacto real. Ou pedir que se diga claramente quem vai pagar esse aumento, quem são os contribuintes desse imposto, quem arcará com o aumento. Queremos que esse grupo seja impactado? Mas se ele puder suportar o impacto em nome de maior equilíbrio na relação tributária de outro grupo com menor poder aquisitivo, pode ser.

ConJur — O livro sugere um modelo de consequencialismo. Como seria a aplicação dessa proposta?
Andréa Magalhães —
A ideia é a seguinte: usar o consequencialismo como uma das ferramentas de estratégia de decisão. Não a única nem de maneira exauriente. É fazer essa avaliação de longo, médio e curto prazo, se é reversível, se posso compensar, considerar quais direitos estão envolvidos e qual contribuição uma decisão ou não decisão poderá trazer.

Por exemplo, o caso do presídio de Pedrinhas [localizado no Maranhão, que se tornou conhecido após uma série de mortes dentro da unidade]. Era o caos, o lugar precisava de investimentos urgentes. O tribunal vai dizer “estamos em crise”? Claro que não, seria desumano. Nessas situações de perecimento de um bem jurídico e de violação muito drástica de direitos fundamentais, o argumento econômico fica muito pequeno. Portanto, não proponho esse modelo para todos os casos, e sim uma calibragem entre os bens jurídicos em jogo e a repercussão econômica da decisão judicial. Claro que nunca vai ser um prognóstico perfeito, mas melhor um prognóstico imperfeito do que nenhum.

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