Observatório Constitucional

No Estado Constitucional pluralista e aberto, segurança jurídica é dinâmica

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9 de dezembro de 2017, 7h05

Um dos principais dilemas das jurisdições constitucionais contemporâneas diz com a localização teórica e prática da segurança jurídica, corolário inegável do modelo político que ficou conhecido como Estado de Direito, no século XIX, e como Estado Constitucional, no século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial.

A velocidade e a complexidade das relações sociais parecem impor uma ressignificação do âmbito de proteção da segurança jurídica como direito fundamental, pois que as fórmulas consagradas e sedimentadas pela doutrina e jurisprudência dos dois últimos séculos não mais se revelam suficientes e adequadas ao século XXI.

A segurança jurídica apresenta-se não apenas como uma decorrência lógica do princípio do Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, da Constituição da República), mas também, e, principalmente, como corolário do princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV, da Constituição da República), tanto na sua perspectiva adjetiva, quanto na substantiva.

Isso significa que não bastam a definição e o conhecimento das regras de convívio em sociedade, pois elas devem ser conhecidas e respeitadas, para que se possa gozar dos benefícios das relações sociais sustentáveis. Além do princípio da legalidade, que indeclinavelmente conduz a uma quanto maior possível força normativa da Constituição, também os procedimentos legais formais e a proporcionalidade,como elemento intrínseco do processo de ponderação dos direitos fundamentais, devem ser frequentes no modelo político que nos acolhe como comunidade social.

A segurança jurídicapassa a abarcar, a partir desse ponto de vista, além dos atributos próprios de um conceito jurídico, também os elementosconcretos da realidadeque conduzem e dão a sensação de vida digna, elementos estes que se expressam na “continuidade das normas jurídicas, (n)a estabilidade das situações constituídas e (n)a certeza jurídica que se estabelece sobre situações anteriormente controvertidas”[1].

A ideia de segurança, na perspectiva de direito fundamental, remonta à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na França,a qual prescrevia a segurança como um direito natural e imprescritível do homem, reconhecendo-a em paridade com a propriedade, a liberdade e a resistência à opressão. [2]

É nesse sentido que surge a expressão histórica da segurança jurídica, como um mecanismo jurídico capaz de salvaguardar os indivíduos dos eventuais abusos cometidos pelo Estado, de modo a limitar a atividade estatal e estabelecer parâmetros para a sua atuação, garantindo a pacificação social. Mas isso já não é suficiente nos dias atuais.

Exige-se da segurança jurídica mais que um instrumento garantidor da eficácia das normas jurídicas que conformam o Estado de Direito. Isso porque, aos cidadãos, apresenta-se como cara e importante a certeza de que a observância das normas jurídicas não venham a ensejarsanções indevidas ou arbitrárias, o que está diretamente relacionadoà proporcionalidade das restrições aplicadas em decorrência do princípio da legalidade.

Não se pode deixar de registrar que Paulo Bonavides, ao discorrer sobre a origem do princípio da legalidade, deixa claro que esse se consolidou a partir do anseio social pelo estabelecimento de “regras permanentes e válidas”, buscando-se alcançar um “estado geral de confiança e certeza”[3].

A ideia de segurança jurídica, no Estado de Direito,portanto, deixa evidente a posição estática desse instituto – pouco volátil, muito arraigada às formas e procedimentos pré-estabelecidos, ao culto à lei, e, não, expressamente conectado com a realidade social circundante. Contudo, em contraponto à essa visão estática do instituto da segurança jurídica, também é já possívelvislumbrar uma visão dinâmica,ainda não desenvolvida pela doutrina especializada.

Proponho, nesse contexto, uma visão de segurança jurídica que sejatambém afinada com oconceito de um Estado Constitucional pluralista e aberto, cujo conteúdo se mostra como real expressão de um modelo políticodinâmico. Isso porque, no Estado Constitucional, há a presença de uma “heterogeneidade de fatores e instâncias sociais que influenciam a produção do direito”[4], sendo, portanto, possível vislumbrar, nesse modelo, uma maior dinamicidade dos pilaresdo próprio modelo político.

Não se contesta o fato de que a sociedadeestá cada vez mais e consistentemente dinâmica, sendo as relações sociais e jurídicas voláteis e rapidamente transmutáveis. A velocidade das informações bem como a constante e crescente globalização criaram um campo social extremamente movimentado. Não se pode, nesse campo social em constante devir, enraizar-se uma ciência social aplicada a postulados e premissas sociais fixas, concebidas como imutáveis, pois que o estático de hoje pode não ser mais o de amanhã.

O mesmo vale para as relações jurídicas vividas entre os indivíduos, a segurança jurídica, postulado máximo da positivação jurídica, não pode mais ser reduzida a elemento de previsibilidade ligado ao que está posto no passado. A fluidez moderna não ocorre somente nas relações sociais, mas também no campo jurídico e político, conforme anota Luís Roberto Barroso: “Todos estes casos ilustram a fluidez da fronteira entre a política e a justiça no mundo contemporâneo”[5].

Nesse contexto, se as leis editadas pelo legislativo não conseguem, e delas não se poderia exigir que conseguissem, atualizarem-se na mesma velocidade com que a sociedade se atualiza, é preciso pensar em novas fórmulas de estabilidade. Desse modo, parece ser a melhor solução, até mesmo como forma de se garantir segurança como decorrência direta de uma vida digna, não só a previsibilidade – que também, claro, deve ser respeitada na medida em que se mostre adequada e atual – mas também aprognose,em relação à dinamicidade das relações sociais. 

ZygmuntBauman aponta como marco fundador da era moderna a separação da dicotomia tempo-espaço, de forma que ambos passam a ser caracterizados como categorias distintas e mutuamente independentes[6]. Para Bauman, é na modernidade que o tempo adquire “capacidade de carga”, o que, juntamente com a velocidade do movimento, torna possível a aquisição da “história”[7]. Esse ponto referido pelo sociólogo italiano traz a ideia de que o espaço é algo inflexível, estático, cuja estrutura não permite mutações, sendo, contudo, o tempo o elemento capaz de alterar a forma desse espaço,atualizando suas estruturas e engenhos.

O que é interessante, quanto ao tema da segurança jurídica dinâmica, proposta como uma fórmula de adquirir estabilidade no movimento, é que, ao se admitir a proposta deZygmuntBauman, torna-se clara a necessidade do constante amoldamento da sociedade, inclusive do elemento físico “espaço”, para a melhor adequação ao “tempo”, elemento de grande e constante velocidade.

Nesse contexto, torna-se relevante o embate entre tempo e espaço, pois o espaço se caracteriza como o elemento sólido e impassível, inerte, portanto, e, por outro lado, o tempo como elemento dinâmico e ativo, conquistador e colonizador.[8]

A ideia de segurança jurídica dinâmica, atenta à característica colonizadora do tempo, apropria-se da era da velocidade e da tecnologia, transformando-as em ferramentas de poder dos tempos modernos, cuja essência torna premente a necessidade de movimento em todos os aspectos da sociedade e do espaço, seja no espaço social, seja no espaço físico-urbano, seja, até mesmo, no espaço jurídico.

O sociólogo Franz Bruseke, por sua vez, admite essa dinamicidade social e sua tendência caótica. Para o autor, a sociedade se constitui em um sistema dinâmico inter-referencial. Isso porque o sociólogo admite a ideia de que “as sociedades, encontrando-se em tempos diferentes apesar de estados idênticos, podem mostrar graus modificados de estabilidade”, o que, nas palavras do autor, podem originar “mudanças sociais não-lineares”[9].

Interessante observar esse apontamento no tocante à segurança jurídica. Se se admitirum sistema dinâmico inter-referencial da sociedade, de modo a gerar mudanças sociais não lineares, resta clara a necessidade da atualização constante tanto da vertente interpretativa do Direito, quanto da ideia de estabilidade de seus institutos. Estabilidade, nesse contexto, não se traduz como algo estático, totalmente previsível, inabalavelmente conformado, porque também a estabilidade pode apresentar-se como algo dinâmico, capaz de acompanhar as mudanças não lineares da sociedade, sem provocar desordens, nem rupturas sociais.

No que tange especificamente à segurança jurídica dinâmica, no âmbito da concretização constitucional dos direitos fundamentais, seara em que está localizada a discussão sobre a atuação da jurisdição constitucional, a busca pela estabilidade,que leva em conta a indiscutível dinamicidade dos tempos modernos, não pode ser cobrada apenas dos intérpretes constitucionais formais, principalmentedos magistrados e legisladores, uma vez que esses não seriam capazes de, sozinhos, abstrairtamanha dinamicidade.

Por isso, a melhor proposta para a ativação da ideia de segurança jurídica dinâmica deve vir também da própria sociedade e dos destinatários da norma, os quais também são, e devem cada vez mais querer ser, legítimos intérpretes da norma constitucional.Peter Häberle admite, de forma incisiva, uma relação diretamente proporcional entre o pluralismo social e a necessidade de abertura dos critérios de interpretação constitucional, de modo que “os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade”.

A premissa básica da “sociedade aberta de intérpretes da constituição”  tão cara ao Professor Peter Haberle, encontra-se na afirmação de que todos os que vivem o âmbito normativo dos direitos fundamentaissão diretamente ou, ao menos, indiretamente, intérpretes dessa norma[10]. Assim sendo, o destinatário da norma se mostra não só mero destinatário da norma, ou sujeito passivo, mas, sim, um real participante ativo.

Contudo, pode o leitor se questionar acerca da quantidade de intérpretes admitidos por meio dessa teoria. A resposta é inequívoca: a sociedade pluralistae democrática, portanto, dinâmica, tem que mediar relações sociais e jurídicas cada vez mais complexas a exigir que a interpretação constitucional seja conduzida por um número maior e crescente de intérpretes. E, nesse contexto, de múltiplas e infinitas interpretações também surge a discussão sobre o problema aqui posto: e a segurança jurídica como fica?

Já se afirmou que não são apenas os intérpretes oficiais do Direito, especialmente magistrados e legisladores, que controlam o processo de estabilidade e mudança das relações jurídicas. E, neste ponto teórico é que se localiza a ideia de segurança jurídica dinâmica, ou seja, não mais é possível ter a expectativa deum modelo jurídico infalívelde previsibilidade que seja estático, fechado e imutável,pois a sociedade moderna é regida pela velocidade do tempo e da informação, exigindo novas e melhores metodologias e tecnologias para gerar a almejada estabilização de suas relações.

É preciso reconhecer quese arraigar a fórmulas fixas, estáticas e imutáveis é contrariar a própria vida do nosso tempo, sempre volátil, dúctil e provisória. A necessidade de uma nova metodologia para conduzir-nos arelações estáveis nos ambientes em movimento acaba por ensejar uma virada de copérnico no real e possível conceito de segurança jurídica, uma vez que a sociedade tem que encontrar seu ponto de estabilidade na mudança e na dinâmica de suas concepções, em busca de um conceito de segurança jurídica apto a atualizar constantemente, com um máximo grau de estabilidade, a norma jurídica, conferindo-lhe real legitimação de ser aplicada ao contexto que se é adequada a aplicar.

Como muito bem dito por Roberto Barroso, “as coisas são novas por vinte e quatro horas”[11], o que não é diferente no mundo normativo. A atualidade da norma pode até permanecer atual por mais de vinte e quatro horas, como normalmente ocorre, não estamos aqui falando da mensuração do tempo de atualidade da norma, mas sim de sua volatilidade e inconstância.

É de se concordar que “vive-se a era do poder dos meios de comunicação e da velocidade”[12], o que justifica, mais uma vez, a crescente tendência pelo uso da segurança jurídica dinâmica como meio de assegurar a justiça, por meio da atualidade normativa, de forma a não se permitir que seja aplicado um direito retrógado e ultrapassado à uma sociedade volátil e constantemente mutável.

A Constituição, tendo como pressuposto, de um lado, o pluralismo e, de outro lado, a estabilidade na dinâmica das relações sociais, passa a ser concebida mais comouma proposta de possíveis soluções, coexistentes, para os problemas jurídicos, ou seja, como“um compromisso de possibilidades”, do que um catálogo fechado, rígido e estático de soluções pré-concebidas e previamente conhecidas.

É possível, portanto, afirmar que o modelo de segurança jurídica dinâmica, ao contrário de seu modelo estático, admite a pluralidade social e a dinâmica das relações em sociedade, propondo que se faça uma passagem do modelo de Estado de Direito, pautado na mera previsibilidade legal, para o de um Estado Constitucional, focado na prognose de relações jurídicas estabilizadoras.

Não temos dúvidas de que a proposta de segurança jurídica dinâmica apresenta-se como novidade ainda estranha à dogmática jurídica e constitucional brasileira, de modo que a inevitável convivência de dois paradigmas, um correlacionado ao Estado de Direito – qual seja o da segurança jurídica estática – e outro correlacionado ao Estado Constitucional – qual seja o da segurança jurídica dinâmica, ainda gerará muitos e produtivos confrontos teóricos e práticos.

Contudo, para aqueles e aquelas que vislumbram um modelo de Estado Constitucional em que se possa garantir umasegurança jurídica possível e real ao cidadão, a reflexão sobre a segurança jurídica dinâmica torna-se um imperativo, a fim de que possam ser descobertos e experimentados os necessários instrumentos afinados com adinâmica do âmbito de proteção dos direitos fundamentais, pilar de um Estado Constitucional, lugar de poder e tensões, mas que deve ser, essencialmente,pluralista e aberto.

 


[1] PENARIOL, Eduardo Luiz. A importância da aplicação do instituto da segurança jurídica, no âmbito do Direito Processual Civil brasileiro, frente as frequente alterações legislativas. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 104, set 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11901>. Acesso em: 10 out. 2017.

[2] BREGA FILHO, 1988 apud PENARIOL, Eduardo Luiz. A importância da aplicação do instituto da segurança jurídica, no âmbito do Direito Processual Civil brasileiro, frente as frequente alterações legislativas. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, n. 104, set 2012. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11901>. Acesso em: 10 out. 2017.

[3] BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20.ed. São Paulo: Malheiros Editores. 2013. p.120-122.

[4]PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. La universalidad de los derechos humanos y el Estado Constitucional. Colombia: Universidad Externado de Colombia, 2002. p. 67.

[5]BARROSO, Luís Roberto. Judicialiazação, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: <http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf>. Acesso em: 10nov. 2017.

[6] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 15-17.

[7] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 16.

[8] BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2014, p. 17.

[9]BRÜSEKE, Franz Josef. Caos e ordem na Teoria Sociológica.  Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_22/rbcs22_07.htm>. Acesso em: 29 out. 2017.

[10]HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e "procedimental" da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2002.p.19-29.

[11]BARROSO, Luís Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. Disponível em: <http://www.pge.go.gov.br/revista/index.php/revistapge/article/view/102/86>. Acesso em: 5 nov. 2017.

[12] BARROSO, Luís Roberto. A segurança jurídica na era da velocidade e do pragmatismo. Disponível em: <http://www.pge.go.gov.br/revista/index.php/revistapge/article/view/102/86>. Acesso em: 5 nov. 2017.

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