Excesso de punição a atos de corrupção não favorece interesse público
10 de agosto de 2017, 10h42

Evidente que há se repreender aqueles que praticam atos rotulados legalmente como corruptos considerando os impactos sociais nefastos que sua prática pode provocar. O aumento dos valores dos contratos celebrados por entes estatais, o direcionamento irracional e indevido dos recursos públicos em detrimento das reais necessidades sociais, é exemplo que revela que a corrupção afeta a todos, embora atinja de forma ainda mais brutal a camada economicamente mais frágil da população. Porém não se pode ignorar que o excesso de punição transmuda o remédio em veneno e, antes de salvaguardar o interesse público, acaba por vitimá-lo.
A Lei anticorrupção, cujo elenco de atos infracionais por ela assim considerados consta de seu artigo 5º, estabelece duas espécies sanções de ordem administrativa, multa e exposição da entidade mediante a divulgação da sanção aplicável ao seu comportamento, aplicáveis isoladamente ou não. Não se ignora que o ato repudiado poderá ser rotulado como indevido por outros diplomas legais, que igualmente fixarão sanções também aplicáveis pela esfera administrativa. No ambiente das contratações públicas punições de que cuida a Lei 8.666/1993, por exemplo, poderiam, em princípio, ser aplicadas a entidades igualmente alcançáveis pela responsabilização objetiva da Lei anticorrupção, já que uma mesma infração pode violar ambas as leis. O Decreto Federal 8.420/2015 organiza as apurações, reunindo-as em um só processo administrativo[1], e admite que as sanções restritivas ao direito de participar de certames e celebrar contratos não previstas na lei anticorrupção, mas disciplinadas por exemplo na Lei 8.666/1993[2] se somem às demais. Assim, a infração poderia vir a ser punida com a multa e a exposição de que cuida a lei anticorrupção, sem prejuízo das sanções restritivas ao cenário das contratações.[3]
Nos moldes do Decreto Federal 8.420/2015 evitam-se dois processos administrativos cujos resultados podem ser divergentes e evita-se, assim parece, a incidência de duas multas impostas pela administração pública [4] diante de um só ato. Mas a reação ao comportamento corrupto não se dará apenas na esfera administrativa. O Poder Judiciário poderá ser acionado para apreciar suposto ato corrupto/ímprobo com base na Lei anticorrupção e na Lei de improbidade administrativa.
Assim, a incidência de sanções administrativas não imuniza a entidade quanto a punições oriundas de condenação judicial. Mais do que isso, há o risco de ações, no plural, serem ajuizadas visando a punição da entidade, fundamentadas em leis distintas. [5] Como solucionar a questão considerando que a lei anticorrupção e a lei de improbidade podem servir de fundamento para demandas judiciais?
A Lei de Improbidade Administrativa persegue o agente público responsável pelo ato ímprobo, desonesto, cujos contornos estão disciplinados nos seus artigos 9º a 11. Evidentemente que não se ignora a possibilidade de se verem atingidas outras pessoas físicas para além do agente público, assim como também rechaçado poderá ser o comportamento de pessoa jurídica que tenha induzido ou concorrido para a prática do ato que se condena ou dele se beneficiado de forma direta ou indireta, segundo estabelece o artigo 3º.
A Lei anticorrupção, por sua vez, volta-se a outro propósito porque sua ambição é a responsabilidade[6] objetiva cível e administrativa de pessoas jurídicas por ela alcançadas.[7]
Como antes aqui alertado, para além da responsabilização imposta pela esfera administrativa, a Lei 12.846/2013 estabelece a possibilidade de ajuizamento de ação judicial cujo resultado poderá ser a condenação a outras sanções .
Costuma-se afastar a alegação de bis in idem, considerando que uma única infração pode ensejar distintas responsabilidades, aplicáveis em cenários diversos e por autoridades diversas.
Mas, se algum suporte pode existir quando se argumenta favoravelmente à cumulação das sanções do artigos 6 o e 19, ambos da Lei 12.846/2013, a situação soa diversa diante do que prescreve o art. 30 também da Lei anticorrupção.
O artigo 30 dispõe que a aplicação das sanções previstas na Lei anticorrupção não afeta a incidência de penas decorrentes de atos de improbidade administrativa (inciso I) e atos ilícitos alcançados pela Lei 8.666/1993 ou outras normas que abordam as licitações e contratos (inciso II),
De fato não é difícil reconhecer a aproximação, quando não verdadeira identificação dos atos ofensivos à probidade, à legalidade, ao interesse público. Mas admitir dupla penalização judicial diante do mesmo ato é algo que merece atenção.
Analisando especificamente a situação que configura ao mesmo tempo ato de improbidade e ato tipificado na lei anticorrupção, quer nos parecer, ao menos por enquanto, que há de se afastar a possibilidade da ação (e das sanções a ela correlatas) de que cuida a Lei 8.429/1992 quando inexistir ato ímprobo a envolver agente público. Se o ato ilícito for de autoria da pessoa jurídica, sem envolvimento de agente público, afasta-se a Lei 8.429/1992 e aplica-se a Lei 12.846/2013.
Lado outro, se o ato envolver agente público, atrai-se a incidência da Lei 8.429/1992, afastando-se a Lei 12.846/2013.[8] Aos que poderiam alegar que essa intepretação esvaziaria a lei anticorrupção, lembro que a Lei 12.846/13 veio para suprir lacuna, onde o vazio existisse e que a interpretação aqui desenvolvida ainda reserva largo espaço para a punição nela fundada, na esfera administrativa.
Soluções outras podem ser consideradas. O que mais importa é evitar um excesso de sanções. Embora juridicamente dirigidas à entidade algumas sanções ou o excesso delas atinge acionistas, empregados e fornecedores.[9] Se punir atos de corrupção é preciso, cuidar do interesse público na permanência da entidade (salvo em situações limites) também é crucial.
[1] Art. 12. Os atos previstos como infrações administrativas à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou a outras normas de licitações e contratos da administração pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente, nos mesmos autos, aplicando-se o rito procedimental previsto neste Capítulo.
[2] Art. 16. Caso os atos lesivos apurados envolvam infrações administrativas à Lei nº 8.666, de 1993, ou a outras normas de licitações e contratos da administração pública e tenha ocorrido a apuração conjunta prevista no art. 12, a pessoa jurídica também estará sujeita a sanções administrativas que tenham como efeito restrição ao direito de participar em licitações ou de celebrar contratos com a administração pública, a serem aplicadas no PAR.
[3] A Lei 8666/93 também prevê multa mas como contornos diversos.
[4] A Lei 8666/93 e a Lei 12.846/13 mencionam a multa como sanção.
[5] Já abordamos essa questão em outros artigos.
[6] A discussão sobre o alcance subjetivo da Lei 12.846/13 e sobre a constitucionalidade da responsabilidade objetiva (a administrativa é a que nos parece passível de algum questionamento) escapam aos limites deste artigo.
[7] O art. 3 o da Lei anticorrupção preserva a possibilidade de responsabilidade dos indivíduos, que será objeto de verificação e discussão em outra esfera. O § 1 o do mesmo art. 3 o afasta qualquer dúvida ao prescrever que a pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais referidas no caput.
[8] Essas as ponderações do Professor Luciano Ferraz. FERRAZ, Luciano. Reflexões sobre a Lei no 12.846/2013 e seus impactos nas relações público-privadas: lei de improbidade empresarial e não lei anticorrupção. Revista Brasileira de Direito Público – RBDP, Belo Horizonte, ano 12, n. 47, p. 33-43, out./dez. 2014.
9] A este respeito, escrevemos uma comparação da visão pragmática dos Estados Unidos que, de forma diversa da brasileira, preocupa-se em preservar a entidade. FORTINI, Cristiana; YUKINS, Christopher, AVELAR, Mariana . A comparative view of debarment and suspension of contractors in Brazil and in the USA. Revista de Direito Administrativo e Constitucional A&C Belo Horizonte, ano 16, n. 66, out./dez. 2016
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