Interesse Público

Por uma Assembleia Nacional Constituinte independente e exclusiva

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

27 de abril de 2017, 8h00

Spacca
“Nossa Constituição é uma
mistura de dicionário de utopias e
regulamentação minuciosa do efêmero.”

Roberto Campos

A Constituição de 1988 cumpriu seu papel de assegurar a estabilidade institucional, sobrevivendo, inclusive, à cassação de dois mandatos presidenciais, sem qualquer quebra da ordem jurídica. Entretanto, verdade seja dita, ela não foi resultante de uma Assembleia Constituinte e teve origem espúria, num arranjo político então possível. Ela nasceu de simples emenda constitucional, proposta pelo presidente Sarney (EC 26/85), que conferiu poderes constituintes aos membros do Congresso Nacional, os quais, após a conclusão dos trabalhos, continuariam sendo deputados e senadores. Vale notar que o Congresso Constituinte foi eleito com sua composição determinada pelo chamado Pacote de Abril (de 13/4/1977), do presidente Geisel, que fechou o Congresso e editou 14 emendas constitucionais, com o indiscutível propósito de falsear completamente a representatividade, de maneira a garantir a vitória do governo ditatorial nas eleições do ano seguinte.

O resultado mais direto e imediato desse arranjo foi que os “constituintes” legislaram para si mesmos. O capítulo da CF, que dispõe sobre o sistema político, eleitoral e partidário, foi originariamente feito para propiciar a reeleição dos parlamentares, o desnaturamento dos partidos políticos e a perenidade dos caciques regionais. Essa redação original foi sendo piorada ao longo do tempo, de maneira a possibilitar uma absurda pluralidade de partidos e a traição ao eleitor, que, nas eleições proporcionais, não sabe quem vai aproveitar o seu voto.

Não é preciso ir muito longe para falar sobre a má qualidade do texto de 1988, bastando mencionar que ele já foi “corrigido” por uma centena de emendas constitucionais. Em nossa visão pessoal, os “constituintes” atuaram olhando para o retrovisor: resolveram uma série de problemas que existiram no passado (na época da ditadura), ignoraram o presente (a queda do império soviético e a globalização) e não atentaram para as significativas mudanças que certamente viriam com os avanços da tecnologia.

Para quem estiver interessado num exame mais apurado, mais detalhado, dos defeitos da Constituição atualmente em vigor, recomendo que leia o notável trabalho de pesquisa e análise feita pelo consagrado desembargador Ney Prado, sob o título de “A Constituição de 1988 e a crise fiscal” (O Estado de S. Paulo, 12/4/2017, p. A2). Ele mostra, indicando com precisão, que o texto reúne um formidável catálogo de utopias, uma prodigalidade de direitos sociais, um fantástico festival de corporativismo, um assistencialismo absolutamente desmedido, sem a menor preocupação com a fonte de recursos para tudo isso. Vale a pena transcrever uma de suas conclusões: “Outra lamentável confusão dos nossos constituintes foi não distinguir a importante diferença entre garantias onerosas e não onerosas, entre aspirações dignas e direitos adquiridos. Por exemplo, o capítulo sobre direitos individuais é um real avanço. Lista justas liberdades democráticas e nenhum ônus. Mas os chamados avanços sociais representam custos: sobre o total da massa trabalhadora pesam os custos do desemprego; sobre uma boa parte das  empresas  pesam os custos da sobrevivência; sobre os consumidores pesam os custos do aumento no preço dos produtos; sobre o Estado pesam os custos pela perda da receita; e sobre a economia do País pesam os custos pela impossibilidade de competir no mercado internacional globalizado. Em conclusão, a partir da promulgação da Constituição, as consequências do custo social do estatismo jurídico têm sido funestas para o País, principalmente sob três aspectos: o crescimento da burocracia, o estímulo à voracidade arrecadatória e a crise fiscal do governo”.

Some-se ao desastre na economia (13 milhões de desempregados) a catástrofe no ambiente político, governamental e institucional (200 milhões de cidadãos desiludidos e desesperados). Quem são os representantes do povo? Os partidos políticos são totalmente “gelatinosos” e artificiais (mudam ao sabor dos interesses pessoais). O exercício de cargos e funções públicas, nos vários níveis de governo e nos três Poderes é determinado por negociações espúrias, nada republicanas. O exacerbado garantismo impede um rápido e eficiente combate à corrupção. Diante desse cenário dantesco, é forçoso concordar com o advogado e economista Francisco Petros (“A Turquia e o Brasil: Constituinte já”, publicado no informativo Migalhas nº 4.094, de 18/4/2017) no sentido de que “as doenças que infestam as relações econômicas e sociais entre o público e o privado necessitam de reparos e reformas muito além de "emendas constitucionais". Os sinais que recebemos demonstram que as instituições não mais atendem às necessidades do país”.

Na verdade, já estão surgindo, em diversos lugares, manifestações de pessoas e entidades, que atuam tanto no setor público, quanto na empresa privada, quanto na imprensa e, ainda, no campo da intelectualidade, propugnando por uma nova Constituição, fruto de uma verdadeira e legítima Assembleia Nacional Constituinte. Entre essas diversas manifestações, merece especial destaque o “Manifesto à Nação” publicado no jornal O Estado de S. Paulo (9/4/2017, p. A2), assinado pelos juristas Modesto Carvalhosa, Flávio Bierrenbach e José Carlos Dias (depois subscrito por muitas pessoas, entre as quais este articulista), do qual é importante atentar para alguns pontos.

Inicialmente são apontadas as razões que justificam um novo texto constitucional: “Por ser um compromisso de interesses entre as forças que disputavam o poder após a ditadura, a Carta de 88 foi recheada de casuísmos e de corporativismos. Estabeleceu um absurdo regime político que se nutre de um sistema pseudopartidário, excessivamente fragmentado e capturado por interesses de corporações e de facções político-criminosas. Isso torna excessivamente custosa a governabilidade, criando uma relação tóxica entre os Poderes, o que favorece a corrupção, o tráfico de influência e os rombos devastadores nas contas públicas”.

Em seguida, são apontados diversos temas que deveriam constar do novo texto, entre os quais figuram: o fim do foro privilegiado, a eliminação da desproporcionalidade entre as bancadas estaduais na Câmara Federal, o voto distrital puro, a proibição de que parlamentares possam exercer cargos no Executivo durante o mandato, a eliminação dos cargos de confiança na administração pública, a eliminação dos recursos públicos para partidos e campanhas, a eliminação das emendas parlamentares ao orçamento etc.

Porém, realisticamente, o "Manifesto à Nação" consigna a total impossibilidade de que essas medidas sejam aprovadas pelos atuais congressistas, e concluem: “Por isso somente poderemos fazer as reformas estruturais políticas e administrativas indispensáveis com uma Constituinte composta por membros da sociedade civil que não ocupem cargos políticos e, encerrados os trabalhos constituintes, fiquem inelegíveis por oito anos”. Para não deixar a proposta no ar, sem base jurídica, anotam que essa constituinte poderá ser instituída por meio de um plebiscito, previsto na Constituição e disciplinado pela Lei 9.709 de 1998, o qual “deverá ser convocado por iniciativa de um terço dos deputados ou dos senadores e aprovado por maioria simples dos membros de uma das Casas do Congresso”.

Entretanto, a viabilidade jurídica dessa nova e verdadeira Assembleia Nacional Constituinte é contestada por alguns juristas, dentre os quais se destaca, por sua elevada respeitabilidade pessoal e técnica, o ministro Almir Pazzianotto Pinto, que, em artigo publicado com o instigante título de “Constituição Coragem” (O Estado de S. Paulo, 31/3/2017) foi peremptório: “Repelida a hipótese de golpe, trocar de Constituição é impossível na vigência de Estado Democrático de Direito. Inexiste no texto constitucional dispositivo de autodestruição que autorize alguém a propor a mudança por outra, de resultados incertos e imprevisíveis”. Dessa posição respeitosamente divergimos.

Primeiramente porque não faz sentido algum entender que a ordem jurídica, que estiver em um estado de profunda deterioração, só possa ser restaurada por meio da violência. Substancialmente, numa perspectiva eminentemente jurídica, não se pode aceitar o entendimento de que o povo, de onde emana todo o poder, tenha abdicado de sua soberania ao eleger uma constituinte. Se isso vale para uma constituinte verdadeira, o que dizer do agrupamento de conveniência, meramente episódica, que produziu o texto constitucional em vigor! Lembrando Carlos Maximiliano (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª edição, 1984, pág. 166): “Deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis”.

Em resumo, o povo brasileiro não abdicou de sua soberania em 1988, ao contrário, a preservou, por meio dos instrumentos de exercício da democracia direta, como é o caso do plebiscito. Por meio dele é possível, sim, a convocação de uma verdadeira Assembleia Nacional Constituinte, independente e exclusiva, eleita pelo voto popular, independentemente de filiação partidária, que deverá cuidar apenas e tão somente do novo texto constitucional, extinguindo-se ao completar sua tarefa e gerando a inelegibilidade de seus membros por um certo período de tempo, de maneira a evitar os males que tornaram quase imprestável o texto vigente.

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