Opinião

Precedente não é critério máximo para justificar raciocínio judicial

Autor

  • Bruno Torrano

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

26 de setembro de 2016, 7h40

Toda a ideia de Estado de Direito está assentada em uma premissa básica: vontades pessoais arbitrárias ou impulsivas não têm o condão de gerar deveres jurídicos legítimos. É dizer: o império do direito impõe formas e procedimentos àqueles que desejam ver seus sonhos mais abstratos sobre justiça ou moralidade elevados à condição de “juridicamente vinculantes”. Isso vale não só para o cidadão comum em suas relações particulares, como também – e sobretudo – aos oficiais do sistema.

Magistrados, promotores, auditores fiscais, policiais: por mais diversas que sejam suas funções públicas, todos estão ligados pelo liame da responsabilidade política. Responsabilidade pelo que? Pela aplicação de padrões gerais de conduta elaborados pelo Parlamento, mesmo contra aquilo que, pessoalmente, pensam ser “mais justo” ou “mais correto”, e sempre mediante interpretação razoável daquilo que pode ser objetivamente determinado no exame do texto da Constituição e da Lei.

Este artigo tem, portanto, uma tese essencial: a euforia de alguns setores da doutrina com a “lógica dos precedentes” – prevista, segundo eles, especialmente no art. 926 do Código de Processo Civil de 2015 – já se tem prestado como uma arma fabulosa contra alguns dos mais caros avanços civilizatórios do Rule of Law. Não que precedentes não sejam importantes para, porventura, resguardar a segurança jurídica ou a estabilidade do sistema: convém apenas colocar-lhes no devido lugar. Convém, apenas, não os tratar como o critério máximo de justificação do raciocínio judicial, como que em uma apologia cega à perpetuação de erros interpretativos pretéritos.

Logo retornaremos a isso. Antes, todavia, para mais bem esclarecer a ideia que pretendemos passar, releva trazer ao debate uma recente decisão proferida pelo STF.

Stare decisis como retórica vazia: um exemplo recente do STF

No RE 655.265/DF (ler aqui), julgado na sistemática de repercussão geral (Tema 509), o Supremo Tribunal Federal, vencidos os Ministros Luiz Fux (Relator), Marco Aurélio Mello e Luís Roberto Barroso, assentou a seguinte tese: “A comprovação do triênio de atividade jurídica exigida para o ingresso no cargo de juiz substituto, nos termos do inciso I do art. 93 da Constituição Federal, deve ocorrer no momento da inscrição definitiva no concurso público”.

Quais foram os fundamentos centrais que levaram o Supremo Tribunal Federal a consolidar esse entendimento? Para a finalidade deste ensaio, é suficiente examinar aquilo que consta do voto-vencedor proferido pelo ministro Edson Fachin. O leitor, ao analisar o decisum, poderá sentir uma pontada de frustração. Não há, ali, nada mais do que uma ode ao stare decisis – e, como demonstraremos, uma ode a uma versão terrivelmente incompleta da teoria. Em todo o encadeamento argumentativo presente no voto, não se verifica nenhum esforço hermenêutico quanto aos limites semânticos suportados pela regra jurídica que, em tese, estava em discussão – o art. 93, inciso I, da Constituição da República. A menção ao dispositivo é feita en passant, apenas como o ligeiro prelúdio de uma longa exposição acerca do valor do precedente judicial na consecução da segurança jurídica, como se não fosse tarefa primária do STF construir a decisão judicial a partir da correta delimitação linguística daquilo que está objetivado no texto constitucional.

O ministro Fachin poderia chegar a conclusão diversa após examinar a configuração semântica do art. 93, inciso I? Presumamos que pudesse. O fato é que nunca saberemos sua posição, pois o Ministro não se desobrigou de tecer considerações a respeito. Limitou-se, ao contrário, a esclarecer que o “exato alcance interpretativo” já foi debatido pelo STF dez anos atrás, ocasião em que se consignou ser o momento da inscrição definitiva mais condizente com os ditames da segurança jurídica, da isonomia, e da previsibilidade. Não se justificaria, nesses termos, a modificação da tese outrora firmada, já que não sobrevieram, em suas palavras, “alterações fáticas ou normativas para tanto”.

Note-se que há uma armadilha retórica muito interessante no voto do Ministro. O leitor menos atento, ao deparar-se com a decisão, pode ser induzido a concluir que os votos vencidos não levaram a sério a história institucional do Supremo Tribunal Federal – ou que, no limite, foram uma manifestação menos convincente acerca da doutrina dos precedentes. Isso estaria correto apenas se estivéssemos dispostos a aceitar a ingênua ideia de que o objetivo central do stare decisis reside na estabilização, custe o que custar, de erros judiciais pretéritos, por mais inconstitucionais ou ilegais que sejam. Essa não é, nem de longe, a seiva jusfilosófica que conduz à vida o art. 926 do novo CPC. Ali, prevê-se que a jurisprudência dos tribunais deve ser mantida estável.

Mas nunca à mercê de outro ideal político fundamental: a integridade. Ou seja: o dispositivo traz aquilo que se pode denominar, com Scott Hershovitz¹, de interpretação na integridade (integrity-based view). Nessa concepção, a deferência a precedentes ocorre tanto quando se entende ser normativamente adequado segui-los a despeito da concordância com seus méritos – em ordem a preservar valores políticos como estabilidade e segurança jurídica – quanto nas hipóteses em que se deduzem boas razões em contrário com o fim de colocar em prática o overruling da interpretação anterior. Em ambos os casos, denota-se que a decisão de ontem realizou diferença prática no raciocínio acerca do que deve ser feito hoje.

O ministro Fachin ancora-se na doutrina de Daniel Mitidiero², no sentido de que a superação total de um precedente (overruling) pressupõe ou a demonstração de vulneração da dupla coerência, ou a demonstração de evidente equívoco no entendimento anterior. Mas nem mesmo a doutrina citada sustenta as conclusões a que o ministro chegou. E isso porque, se seguirmos a ferro e fogo o que disse Mitidiero, desembocaremos na inevitável conclusão de que o voto do Min. Edson Fachin, em verdade, violou uma das dimensões do basic overruling principle: isto porque, embora o ministro tenha afirmado inexistir ofensa à consistência sistemática e à congruência social (dupla coerência), ele simplesmente se calou quanto à plausível possibilidade de o entendimento anterior da corte estar errado.

A rigor, ao dar de ombros para a questão da replicabilidade (replicability) da decisão pretérita, foi o ministro Fachin – aquele que mais enfatizou a força normativa dos precedentes – quem incorreu em nítido menoscabo ao que dispõe o art. 926 do CPC. Paradoxal? Nada disso. Vejam: o ministro Luiz Fux, relator vencido, não deixou de esclarecer, no corpo de seu voto, que o Plenário do STF já havia se manifestado, por maioria, na ADI 3.460, pela constitucionalidade de dispositivos infraconstitucionais que estabeleciam a “inscrição definitiva” como critério temporal adequado. Mas, convicto de que o mérito do que fora decidido não retratava a melhor interpretação de nossas práticas, ele foi além. Dialogou com os votos vencidos do referido julgado; apontou para o entendimento consagrado na Súmula 266 do Superior Tribunal de Justiça; e trouxe à memória julgamentos mais antigos do STF que privilegiaram o momento da posse, e não da inscrição definitiva. Isso, por um acaso, não é respeitar a história institucional do direito?

Mais importante: o ministro Fux não deixou de enfrentar – ao contrário do ministro Fachin – a questão da higidez da interpretação anterior. Para superar o “precedente”, obviamente, recaia-lhe às mãos maior carga argumentativa. E, a nosso ver, esse dever qualificado de fundamentar restou devidamente preenchido por Fux. Primeiro, porque foi salientado, com muita propriedade, que a expressão “ingresso na carreira”, prevista no art. 93, inciso I, da Constituição da República, deve ser interpretada como sinônimo de “investidura”. Como bem pontuou o ministro Marco Aurélio Mello³, a obrigação de experiência prévia só faz sentido se for compreendida como capaz de suprir o candidato com as responsabilidades e conhecimentos necessários ao exercício efetivo do cargo.

Por outro lado, o ministro Fux lembrou que a própria resolução julgada na ADI 3.460 não mais está vigente: o CNMP percebeu a incoerência de seu posicionamento anterior e, por intermédio da Resolução 40/2009, com redação dada pela Resolução 87/2012, passou a exigir a comprovação dos três anos de experiência no momento da posse. Por questão de igualdade, Fux argumentou que a interpretação do art. 129, §3º, da Constituição Federal de 1988 deveria ser espelhada àqueles que, com base no art. 93, inciso I, pretendiam ingressar no mundo da magistratura.

Como se vê, os Ministros vencidos trouxeram fortes razões para sepultar, de vez, a estranha interpretação que exige que o candidato passe três anos adquirindo experiência com o objetivo de ser capaz de entregar alguns documentos adicionais à banca examinadora do certame. Do ponto de vista procedimental, não havia melhor hora e local para alterar o referido entendimento: o Plenário do Supremo Tribunal Federal estava reunido com o objetivo de fixar uma tese em repercussão geral. Era ali o momento certo para qualquer evolução jurisprudencial. Apenas uma má-compreensão do art. 926 do CPC/2015 poderia sustentar a conclusão de que o overruling não era possível ou desejável na hipótese.

Realismo jurídico “normativo”?

Talvez aquilo que entorna a superfície nem sequer seja o maior problema. E seja só a ponta do iceberg. Agora que estamos a par do julgado do STF, podemos passar à etapa seguinte: garimpar o não-dito. E é da dimensão do silêncio que extraímos as lições mais valiosas para nossas reflexões e práticas futuras. Qual seria? Esta: corremos sério risco de arruinar o Estado do Direito pela institucionalização jurisprudencial de um realismo jurídico “à brasileira”, dedicado a proclamar a verdade de proposições jurídicas pela mera referência ao fato de terem sido proferidas por órgãos do Poder Judiciário (“O direito é aquilo que os Tribunais dizem que o direito é”), e não à luz de normas jurídicas previamente elaboradas pelo Poder Legislativo. Simples assim. E grave. É a tese de que um “precedente” vale por sua autoridade e não por seu conteúdo. É a velha auctoritas non veritas facit legis, bastando substituir “legis” por “precedente”. Perigo à vista.

Objetará o estudioso da filosofia do Direito: mas não seria o realismo jurídico uma teoria que habita o plano meramente descritivo? Trata-se, de fato, de sua pretensão metodológica assumida – tanto na feição americana, quanto nas feições escandinava e genovesa. Há algo de útil a ser extraído de algumas teses realistas? Sim. Mas há quem lance sérias dúvidas não só quanto ao poder explicativo do realismo jurídico, como também à sua compatibilidade conceitual com ideais políticos democráticos e liberais. José Luis Martí , por exemplo, ao abordar a vertente genovesa, argumenta que o ceticismo realista quanto à interpretação jurídica, que desloca toda a aplicação do direito do plano do conhecimento para o plano da vontade, conduz a incontornáveis incompatibilidades com (i) a separação dos poderes (todos os Poderes pensados por Montesquieu confluem para apenas um: o Judicial); (ii) o estado de direito (se normas não podem ser conhecidas, não faz sentido falar-se em previsibilidade, segurança jurídica, e nem mesmo em leis gerais, abstratas e preexistentes); (iii) a proteção de direitos individuais (se tudo está no âmbito da vontade de magistrados, direitos só podem ser preservados quando eles queiram que sejam); e (iv) a democracia (as noções de representação política e de exercício popular do poder pressupõem normas jurídicas anteriores que as fundamentem).

Como se vê, sustentar o realismo jurídico (mesmo que moderado), por si só, conduz a graves problemas teóricos. No Brasil, todavia, a coisa é muito pior do que se observaria, porventura, em um mundo habitado por verdadeiros adeptos daquilo que autores realistas defendem em suas pesquisas conceituais. O fenômeno presente em votos como o do ministro Fachin, subscrito por relevante parcela da doutrina nacional, é distinto do que teóricos analíticos do direito pensam fazer, do ponto de vista descritivo, em seus gabinetes de estudo: a ênfase no stare decisis não raro é empregada com o intuito de estabelecer padrões normativos para a aplicação do direito, momento habitado pelo comprometimento político e moral do magistrado com aquilo que se decide.

O realismo jurídico “à brasileira”, portanto, é um realismo jurídico normativo ou ético, uma distorção teórica construída para perpetuar interpretações equivocadas pelo mero fato de terem sido proferidas por Juízes, de modo a afastar teorias concorrentes que advogam não só a possibilidade de conhecimento da lei, como também sua necessária primazia no raciocínio judicial. Sob qualquer lado que se olhe, o realismo é uma postura empirista. Transfere o polo de tensão da legislação para a aplicação.

Conclusão: por uma leitura mais responsável do stare decisis.

O que podemos extrair de tudo o que foi dito?  Há um diagnóstico muito claro: a pretexto de obedecer aquilo que demanda a lógica do stare decisis, e sem nem sequer colocar em jogo os relevantes fundamentos do voto-vencido de Luiz Fux quanto à dicção constitucional e a ofensa ao princípio da igualdade, grande parte do esforço argumentativo constante do voto do Ministro Fachin prestou-se a fazer com que a maioria do Plenário do Supremo Tribunal Federal batesse continência não à Constituição, e sim a uma decisão juridicamente defectiva publicada em 2007 e aos termos da Resolução n.º 2009 promulgada pelo CNJ.

Caso o entendimento subscrito por Fachin seja aceito de bom grado pela comunidade jurídica, o deslocamento definitivo dos textos constitucional e legal para a posição de fontes do direito coadjuvantes será mera questão de tempo. Sem meias-palavras: nas entrelinhas da decisão proferida pelo ministro Edson Fachin no RE 655.265 jaz a convicção não verbalizada no sentido de que o peso dado às decisões passadas de juízes, por mais equivocadas que sejam, prepondera em abstrato sobre o conteúdo das normas jurídicas promulgadas pelo Poder Legislativo – inclusive a Constituição da República.

A indagação que fica é bem simples, mas vital: o que estamos dispostos a levar mais a sério? A Constituição e a Lei? Ou uma lógica importada de forma questionável sobre precedentes? Prioridades. Nunca foi tão necessário refletir sobre elas.


1. HERSHOVITZ, Scott. Integrity and Stare Decisis. In: HERSHOVITZ, Scott (ed.). Exploring Law´s Empire: The Jurisprudence of Ronald Dworkin. Oxford: Oxford University Press, 2006, Kindle Edition.

2. MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. São Paulo: Revista do Tribunais, 2013.

3. Ponderou o Ministro Marco Aurélio: “Qual é a razão de ser, de exigir-se que certo candidato tenha determinado período de prática forense? Está na simples inscrição, seja ela provisória ou definitiva? Não! Está no desempenho, consideradas as funções relativas ao cargo. E esse desempenho somente ocorre após a posse”.

4. MARTÍ, José Luis. El realismo jurídico: una amenaza para el liberalismo y la democracia. In: Revista Isonomía, n. 17, Cidade do México, junho de 2002, pp. 259-282.

Autores

  • é mestre em Filosofia e Teoria do Estado, especialista em Direito Penal, Criminologia e Política Criminal e Direito Empresarial. Assessor de ministro no STJ, é autor do livro “Democracia e Respeito à Lei: Entre Positivismo Jurídico e Pós-Positivismo”.

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