Presunção de inocência

"Prisão antecipada é uma resposta à sociedade, mas não segue a Constituição"

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18 de setembro de 2016, 6h46

Spacca
Embora a sensação de impunidade que acomete algumas camadas da sociedade seja “algo muito agressivo”, o Judiciário não tem nada a fazer além de seguir o que está escrito na Constituição. Especialmente quando o texto constitucional é claro e não dá margem a interpretações, como ao permitir o cumprimento da pena só depois do trânsito em julgado.

É o que defende o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, do Superior Tribunal de Justiça. Ele reconhece que a Justiça por vezes demora demais para dar soluções a casos rumorosos, e que isso é um problema que deve ser combatido. “Mas não é com a antecipação da prisão que isso vai se resolver.”

A possibilidade de antecipar a execução da pena de prisão para antes do trânsito em julgado está na pauta do Supremo Tribunal Federal por meio de duas ações declaratórias de constitucionalidade. O julgamento já começou e o relator, ministro Marco Aurélio, já leu seu voto.

O vice-decano do Supremo entendeu que o princípio da presunção de inocência não é sinônimo de garantia do duplo grau de jurisdição. E a Constituição brasileira diz, literalmente, no inciso LVII do artigo 5º que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Napoleão, vice-decano do STJ, concorda. “Quando se toma conhecimento de um caso de impunidade”, comenta o ministro, “em geral há uma reação, às vezes até descontrolada, de revolta, e essa prisão logo depois do julgamento de segundo grau vai no caminho de responder a essa inquietação”.

“É perfeitamente compreensível que assim seja, mas nós temos de resguardar também os direitos das pessoas, as liberdades individuais e as garantias pessoais”, analisa, em entrevista à ConJur. E resume: “Talvez seja melhor se guiar pela Constituição e só se decretar a prisão de alguém quando a condenação se consolidar em coisa julgada”.

Leia a entrevista:

ConJur – Ministro, em 2011, numa palestra na Fiesp, o senhor disse que o problema da Justiça criminal não era o excesso de Habeas Corpus, mas, sim, o excesso de ilegalidades. Continua com essa opinião?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Continuo. É como o Mandado de Segurança, pedidos cautelares e recursos. Por que há pluralidade de recursos? Porque há uma multidão de decisões das quais a parte discorda, não aceita. Assim são o Habeas Corpus e o Mandato de Segurança. O que há é uma multiplicação de ilegalidades, não é uma multidão de HCs, mandados de segurança ou ações cautelares. É porque as ilegalidades vão pipocando cada vez mais e as pessoas procuram as suas defesas através dos meios mais ágeis. Lembro dessa palestra; achei aquilo importante. Por exemplo, mandado de segurança em matéria tributária, por que aumenta? Porque aumentam as exigências fiscais em desconformidade com a segurança das pessoas. Aí o que o sujeito faz? Vai aceitar? Claro que não. Ele vai se inconformar, vai recorrer, e vai para mandado de segurança e ação cautelar e qualquer caminho judicial que o afaste daquela exigência. O que temos de combater não é o Habeas Corpus, nem a cautelar, nem as ações em geral. Temos que combater as ilegalidades, os abusos, os exageros.

ConJur – É possível executar a pena de um réu antes do trânsito em julgado da condenação?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Tenho a impressão de que talvez seja de melhor orientação aguardar o trânsito em julgado. É mais conforme a letra da Constituição e mais de acordo com a tradição do sistema brasileiro. É claro que nos dias correntes essa demora em executar decisões condenatórias provoca um desconforto na sociedade, não podemos ignorar isso. Tem casos famosos em que a decisão demorou anos, às vezes mais de uma década, e isso realmente tem que ser combatido. Mas não é com a antecipação da prisão que isso se possa resolver. É claro que antes do trânsito em julgado pode haver as prisões cautelares, a prisão provisória, a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos do artigo 312. A questão é difícil e o Supremo dará a prova final, mas seria de melhor interpretação aguardar o trânsito em julgado.

ConJur – Por que hoje há esse clamor tão forte pela condenação?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Por causa da impunidade. A impunidade é algo muito agressivo. Quando se toma conhecimento de um caso de impunidade, em geral há uma reação, às vezes até descontrolada, de revolta, e essa prisão logo depois do julgamento de segundo grau vai no caminho de responder a essa inquietação. É perfeitamente compreensível que assim seja, mas nós temos de resguardar também os direitos das pessoas, as liberdades individuais e as garantias pessoais. A Constituição é bastante explícita. Talvez seja melhor se guiar pela Constituição e só se decretar a prisão de alguém quando a condenação se consolidar em coisa julgada. A prisão antecipada serviu como uma resposta à sociedade, mas não segue a Constituição.

ConJur – Outro fenômeno que temos observado é os integrantes do Judiciário cada vez mais preocupados com questões típicas de segurança pública, como criminalidade, sensação de impunidade etc. Esse tipo de resposta pode vir do Judiciário?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Sim, porque tudo termina no Judiciário. Os litígios, as tensões, os conflitos têm que ter um fim, um encerramento; e esse término só ocorre com o pronunciamento judicial. Ou então ficará nas mãos dos próprios litigantes, o que é totalmente nocivo e impensável.

ConJur – Um dia, na Corte Especial, o senhor falou no julgamento de Jesus Cristo e em garantias penais e fez uma comparação com o momento atual. O que o senhor estava querendo dizer?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Falava de quando se faz uma condenação com base no clamor popular. É um episódio muito conhecido, os quatro evangelistas narram a prisão e o julgamento de Jesus. O juiz, que era Pilatos, claramente não queria condenar Jesus Cristo. Disse várias vezes que não encontrava culpa nenhuma nesse homem, que lavaria as mãos e eles que resolvessem, que ele era inocente do sangue desse justo e que "as consequências cairão sobre a descendência de vocês". Pilatos claramente não queria condenar. Os evangelistas falam disso com muito detalhe. É um exemplo de como o clamor público conduz a uma solução injusta. E há outros casos famosos em que o clamor público acaba condenando a pessoa e depois apura que ela não tinha culpa.

ConJur – Mal comparando com um evento histórico de dois mil anos atrás, o senhor acha que essa obediência ao clamor público é fenômeno recente?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Não acho que estejam pautados pelo clamor público, mas o clamor público frequentemente interfere no julgamento. Não é que o juiz queira atender o público, mas ele pressiona a compreensão do juiz e de qualquer pessoa. O clamor público é algo que pesa tanto contra como a favor.

ConJur – Mas hoje é preciso muita coragem para absolver alguém que está sendo exposto em público diariamente como o culpado da vez, num caso de grande repercussão, não?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Os juízes são corajosos. Agora, frequentemente há situações em que a formação da convicção do juiz fica tocada pelo tal clamor público, pela pressão da mídia, pelas redes sociais. Os juízes do passado eram menos acossados, porque não havia redes sociais. Hoje com televisão, jornal, rádio e redes sociais é um circo danado. É fácil achar o juiz e pressioná-lo ou deixá-lo pouco à vontade para decidir. Mas em geral isso não é decisivo, não. Desconforta o juiz, claro, mas não impede que ele decida com a consciência. É mais difícil, mas não é só o juiz, é todo mundo. Quem não tem medo da mídia? Quem disser que não tem medo da mídia está perdendo uma grande chance de ficar calado.

ConJur – Em outra conversa que tivemos, o senhor comentou que os juízes hoje gostam de ser protagonistas da repressão.
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Gostam. Os juízes sempre gostaram de ser protagonistas, mas agora há mais visibilidade. A exposição é muito maior e os juízes têm um protagonismo para um lado ou para o outro. Há juízes mais garantistas que gostam de mostrar que defendem os direitos subjetivos, as liberdades individuais, as garantias processuais. Isso é uma espécie de exibição, ainda que intelectual. E há também aqueles que querem se mostrar mais eficazes no combate a crimes, a atos de improbidade, a desvios de conduta etc.

ConJur – Os garantistas são minoritários?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 São. E essa pergunta é muito importante. O garantismo está vindo com mais força, há uma onda melhor hoje em dia. O garantismo sempre existiu, mas como as tensões eram mais suaves, ou pelo menos não eram tão ásperas e severas como são hoje, as posições dos juízes não eram exigidas em termos de definição do pensamento. Hoje em dia são. No passado não tínhamos por exemplo conflitos por razões raciais. Certamente eles existiam, mas não tínhamos conhecimento; o mesmo para problemas de gênero, de minorias, de homoafetividade, esses problemas eram todos reprimidos. Não eram divulgados, não estavam em pauta como hoje.

ConJur – E esses conflitos agora estão entrando no Judiciário.
Napoleão Nunes Maia Filho –
Os conflitos sempre existiram, mas a necessidade de tomar uma atitude é coisa bem recente. Por exemplo, qual seria a autoridade, judicial ou não, que tomaria uma decisão adversa a índios? Ou aos quilombolas, ou contra o meio ambiente? Ou contra algum direito fundamental, direito das mulheres, direitos dos idosos? Isso dá o protagonismo positivo do juiz. O juiz quer aparecer na sociedade, por exemplo, como o grande defensor do direito das crianças. Eu tenho esse ponto de vista. Gosto de dizer aqui para os meus assessores que não produzo uma decisão contra uma criança. É um protagonismo meu. Tenho vaidade de dizer isso, quero me exibir dizendo isso. Índios também, eu tento proteger o máximo que posso índios, negros, quilombolas.

ConJur – O senhor costuma falar em respeitar as garantias até quando o crime for induvidoso. Isso é uma posição majoritária no tribunal?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Não. Há um sentimento difundido de que quando um crime é violento, bárbaro ou o indivíduo delinque frequentemente, ele se coloca fora do sistema de garantias. Isso é uma concepção que tinha se chamado de direito sancionador do inimigo: o sujeito que é inimigo da sociedade, e inimigo é aquele que delinque gravemente, como terroristas, traficantes, estupradores, assassinos, corruptos etc., está fora do sistema de garantias. Então agir sem garantir as suas prerrogativas não é algo que provoque repulsa. Ao passo de que quando é uma pessoa que comete um delito eventual sem gravidade, agir de maneira enérgica demais contra ele parece não ter o abono de todos.

ConJur – A presunção de inocência é plenamente respeitada aqui no tribunal?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 É respeitada, sim. A presunção de inocência e as garantias, o direito à ampla defesa, o direito de recorrer, o direito de impugnar a testemunha, de produzir a prova. Tudo isso é muito zelado aqui e nos tribunais em geral, pois se desaparecer da jurisdição, desaparece a razão de ser da jurisdição. A jurisdição existe para produzir a equidade, particularmente com relação aos que são acusados de crimes. Quem não está sendo acusado de crime não precisa de garantias. Como Jesus Cristo disse, “eu sou enviado para os doentes”. Quem está sendo processado é que precisa de um juiz atento às garantias dele, para evitar que seja condenado sem prova, que a sanção seja desproporcional à condenação.

ConJur – O que o senhor acha da ideia de se criar a figura do chamado juiz de garantias, separando o juiz que preside o inquérito do juiz que toca a ação penal?
Napoleão Nunes Maia Filho –
 Isso é uma ideia moderna também. Isso se chama sistema acusatório, é para dividir quem acusa e quem julga, e é fundamental para a liberdade, para os direitos e para as garantias. O ministro Hamilton Carvalhido era bastante atento a esse aspecto e dizia o seguinte: se o juiz preside a investigação, preside o inquérito, decreta busca e apreensão, quebra de sigilo, prende provisoriamente o investigado nas hipóteses legais, ele fica praticamente comprometido com aquele empreendimento sancionador. Então talvez seja melhor que outro juiz aprecie a denúncia. Porque aquele que vem desde o começo está envolvido no clima da persecução. Ë uma ideia muito boa e garantista. E eu acho que vai acabar pegando no Brasil.

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