Opinião

De quem é a culpa nos crimes contra a dignidade sexual no meio virtual e físico?

Autores

  • Gisele Amorim Zwicker

    é advogada especialista em Direito Digital e Propriedade Intelectual no Opice Blum Bruno Abrusio e Vainzof Advogados Associados.

  • Maria Cecília Oliveira Gomes

    é advogada especialista em Direito Digital e Propriedade Intelectual no Opice Blum Bruno Abrusio e Vainzof Advogados Associados pós-graduanda em Propriedade Intelectual e Novos Negócios na FGV e membro da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB-SP.

29 de outubro de 2016, 6h14

Atualmente, é possível observar uma forte relação entre o mundo físico e o virtual, pois o acontecimento em uma esfera pode gerar reflexos na outra, assim como um ato ilícito concretizado no mundo físico pode gerar reflexos no virtual e vice-versa.

Dessa forma, verifica-se que existe um ciclo orgânico entre as duas realidades, de tal forma que há uma verdadeira relação de influência entre ambas. Exemplificando, um caso de revenge porn, ato ilícito praticado exclusivamente no meio virtual, pelo qual alguém dissemina fotos íntimas de seu parceiro ou ex-parceiro para fins de vingança, pode gerar reflexos no mundo físico, ou seja, danos de ordem moral e material, reflexos psicológicos na vítima etc., da mesma forma que o crime de estupro, previsto no artigo 213 do Código Penal, apenas possível no meio físico, pode gerar reflexos no meio virtual, como no caso de ser filmado e exposto na rede.

Notadamente nos crimes contra a dignidade sexual, cujas vítimas em sua maioria são mulheres, a interconexão entre o mundo off-line e on-line é muito intensa. É comum que efeitos de um ato ilícito, praticado exclusivamente no âmbito virtual, se estendam para diversos aspectos da vida de um indivíduo, afetando suas relações pessoais, profissionais e familiares.

A título ilustrativo, recentemente foi divulgada uma pesquisa pelo Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), na qual foi constatado que um em cada três brasileiros concorda com a frase “a mulher que usa roupas provocativas não pode reclamar se for estuprada”. Referida frase, bem como o número alarmante de pessoas que concordam com ela, é apenas reflexo de uma sociedade que possui o pensamento de culpa da vítima e, principalmente da mulher, enraizada em seu âmago.

Nesse sentido, uma pessoa que já foi prejudicada por ter sua intimidade exposta no meio virtual passa a ter, além disso, sua posição de “vítima” questionada em seu círculo social, intensificando seu constrangimento decorrente dos fatos danosos.

Tal situação pode ter desdobramentos ainda mais severos na hipótese de um ilícito, concretizado no plano físico, sair da intimidade e privacidade da pessoa ofendida e alcançar publicidade no meio virtual. Isso porque há a real possibilidade da situação se tornar viral, desdobrando seus efeitos e intensificando a gravidade da ofensa sofrida.

Um exemplo clássico que pode ser mencionado é o da mulher que, com base numa expectativa de confiabilidade natural de relacionamentos amorosos, envia fotos íntimas para seu parceiro. Sendo que este, após o término da relação, compartilha fotos com amigos em comum, familiares e até mesmo colegas de trabalho, o que certamente acarretará inúmeros danos nessas esferas.

Essa dialética entre as realidades virtual e física pode ser melhor visualizada com base em um recente exemplo que comoveu o país, quando uma jovem menor de idade foi filmada durante a prática forçada de atos sexuais, tendo sua intimidade e sua imagem expostas, assim como sua reputação questionada e seu passado revirado por terceiros.

Ademais, um dos prejuízos experimentados pela pessoa ofendida, nesse contexto virtual, é que o ilícito pode passar a ser compartilhado pelos usuários, potencializando a ofensa à sua dignidade sexual, imagem e honra, o que torna a reparação ou a superação do fato quase impossível, uma vez que tal conteúdo é difícil de ser completamente removido da internet.

Nesse sentido, a partir do momento em que o ato ilícito se torna viral e a identidade da pessoa ofendida passa a ser pública, verifica-se um fenômeno de exposição, no qual milhares de usuários, usualmente anônimos e que não possuem conhecimento aprofundado dos fatos ou dos indivíduos envolvidos, sentem-se confortáveis para proferirem juízos de valores, unindo-se para formar uma espécie de “tribunal da inquisição”, que objetiva unicamente confirmar um veredicto já alcançado.

Nesse contexto, influenciados pelo pensamento de que usualmente há uma participação ativa da vítima para o acontecimento do ilícito relacionado a vazamento de imagens íntimas, muitos usuários passam a sabatinar sua vida pessoal e privada, criando uma ficta identidade virtual que muitas vezes se sobrepõe a identidade real do ofendido, gerando inúmeros efeitos colaterais na esfera física.

Não suficiente, muitas vezes, tal fenômeno contribui para o cometimento de outras práticas que, igualmente, violam direitos da pessoa ofendida, na medida em que os comentários e postagens proferidos no meio virtual, aparentemente cobertos com o véu da liberdade de expressão, na verdade se configuram atos ilícitos, com reflexos tanto na esfera cível quanto penal.

Exemplificando, um comentário que atinja a honra ou a reputação da pessoa ofendida, em tese, pode configurar os crimes de calúnia, injúria e difamação, previstos nos artigos 138 a 140 do Código Penal. Além disso, é possível observar uma crescente preocupação da sociedade a respeito do comportamento lesivo e leviano de usuários da internet, motivo pelo qual há um movimento de tipificação de tais condutas, como se verifica da aprovação da Lei 13.185/2015, que visa combater o cyberbullying, e o Projeto de Lei 5.555/2013, atualmente em trâmite junto à Câmara dos Deputados, que objetiva alteração na Lei Maria da Penha, tipificação específica para o caso de compartilhamento de imagens íntimas por parte de companheiro em ato de revenge porn.

Entretanto, as pessoas ofendidas que sofrem em decorrência desse comportamento, ainda que excessivo e ofensivo, nem sempre buscam o auxílio das autoridades, principalmente quando as vítimas são mulheres.

Isso ocorre porque, apesar de ser possível verificar um movimento de maior sensibilidade com relação ao assunto, como a sanção da Lei Maria da Penha e a criação de delegacias de defesa da mulher, verifica-se ainda muita falta de sensibilidade na condução desses casos, especialmente em razão de pré-julgamentos, pelos quais a vítima, por vezes, passa a ser vista como ré.

Embora o Código Penal, no artigo 59, efetivamente elenque como um dos parâmetros para fixação da pena a análise do comportamento da vítima, muitas vezes se observa um excesso nessa verificação; isso porque o comportamento a que se refere o caput do artigo deve ser o do momento do fato, entretanto, o que se verifica é o levantamento de um verdadeiro dossiê da vida da vítima, no que muitas vezes parece ser uma tentativa de minimizar a gravidade da conduta ilícita, bem como justificar a ocorrência do crime.

O principal efeito nesse contexto é que muitas vítimas, sentindo-se julgadas e culpadas pelos próprios prejuízos sofridos, optam por não oferecer denúncias ou tentar responsabilizar os verdadeiros agentes dos ilícitos porque temem que a situação, já constrangedora, se intensifique.

A estigmatização da mulher aliada ao constrangimento social imposto pela repercussão da divulgação dos ilícitos por meio da internet e as dificuldades inerentes da investigação destes casos, contribuem para que se crie um movimento que silencia a vítima, colaborando com a impunidade daqueles que são os verdadeiros responsáveis pela situação.

O silenciamento das pessoas ofendidas configura obstáculo tanto à identificação quanto à responsabilização dos agentes dos ilícitos perpetrados, criando óbice à criação de um ambiente onde temas de tal gravidade possam ser discutidos abertamente com o objetivo de desconstruir estigmas acerca do conceito de eventual culpa da vítima, que na verdade inexiste na grande maioria destes casos.

Nesse sentido, faz-se necessária a promoção da conscientização sobre o direito da mulher de exercer a sua liberdade para compartilhar sua intimidade, não sendo razoável a sua responsabilização quando terceiro, quebrando a expectativa de confiança, desrespeita essa liberdade ou se sente no direito de violá-la.

Afinal, de quem é a culpa? A culpa é daqueles que violam direitos alheios, disseminam e compartilham conteúdos ilícitos, e não daqueles que recebem o estigma de culpados devido a uma cultura enraizada na sociedade de culpar a própria vítima pelo ilícito sofrido. Em um mundo cada vez mais sem fronteiras e nem barreiras, com interdependência entre os meios físico e virtual, independentemente de onde ocorram as violações, os danos sempre irão refletir na vida das vítimas como um todo, e elas precisam ser amparadas e protegidas por todos nós.

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    é advogada especialista em Direito Digital e Propriedade Intelectual no Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.

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    é advogada especialista em Direito Digital e Propriedade Intelectual no Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados, pós-graduanda em Propriedade Intelectual e Novos Negócios na FGV e membro da Comissão de Direito Digital e Compliance da OAB-SP.

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